O barão da João Alfredo
Dono de casas no coração boêmio do bairro é uma das figuras mais queridas e respeitadas da Cidade Baixa
Pouca gente sabe que a bengala com a qual ele se move em calçadas estreitas e esburacadas é herança do tio-avô. Na longa curva do tempo, a peça servia para escavar a terra e arrancar pedras do chão. Hoje, adaptada, a picareta dá suporte aos passos de uma das personalidades mais benquistas e respeitadas da Cidade Baixa – Sérgio Traunetti, de 74 anos, nascido e criado na Rua João Alfredo.
O caminhar lento e precavido não é só pela fratura do fêmur, alguns meses atrás, numa queda dentro de casa, ao se abaixar para apanhar o jornal embaixo da porta. A todo instante, o senhor simpático e comunicativo é parado para ouvir saudações e trocar um pouco de prosa. Não fosse por outro motivo, a fama tem raízes patrimoniais: ele é proprietário de mais de uma dezena de casas (herança do tio-avô, assim como a picareta) da principal artéria do circuito boêmio da CB, a maior parte alugada para bares, cafés e restaurantes. Tanto é verdade que o apelido é Barão da João Alfredo.
– A turma não perdoa, resigna-se Sérgio, fingindo estar zangado.
arroio sinuoso
Já José Nicolau, pai de Sérgio, ficou conhecido como seu Flora, por causa do Bazar & Ferragem Florida, que pilotou com a esposa, dona Maria, por sete décadas na casa de nº 533 da João Alfredo, esquina com Luiz Afonso. Enquanto atendia aos fregueses, Maria escutava radionovelas da rádio Farroupilha. Numa delas, o príncipe se chamava Sérgio, o que explica o nome de batismo do filho caçula.
– Podia ser pior. A minha tia-avó queria um sobrinho com o nome Rigoletto, personagem do Corcunda de Notre Dame na ópera de Giuseppe Verdi, que ela tinha visto na Itália.
A família Traunetti morava na casa ao lado do bazar, a de nº 537, onde nasceram Sérgio e a irmã Lígia Helena. O arroio Dilúvio ainda não tinha sido retificado e, vindo das imediações da Praça Garibaldi, corria por trás do casario da Rua João Alfredo, colado aos pátios de fundos. Quando chovia muito, as águas barrentas avançavam sobre os quintais e batiam com força nas paredes das casas. Quase ninguém se atrevia a tomar banho no Dilúvio por causa da imundície.
– Até cadáver passava por ali.
O riacho sinuoso atravessava a Rua da República e seguia por trás do terreno do Pão dos Pobres, escoando por baixo da Ponte de Pedra até desaguar no Guaíba numa área próxima à Escola Técnica Parobé. Nesta paisagem bucólica, pequenas embarcações se moviam com carvão, lenha, frutas e hortigranjeiros para abastecer moradores e feiras locais. Alguns barqueiros não usavam remos – de pé, fincavam uma vara no fundo da lama para ganhar impulso e empurrar a canoa para a frente. Vez por outra, crianças como Sérgio pegavam carona só para passear de barco. Pura aventura.
Estrada de Ferro do Riacho
Sérgio se alfabetizou na escolinha de dona Clementina, uma casa de material fincada adiante da Ponte de Pedra, na porção de terra entre o arroio e o Guaíba. Junto à escola, eram ainda visíveis os vestígios da antiga estação da Estrada de Ferro do Riacho, uma linha de trem que conduziu passageiros do Centro para a zona sul da cidade (chegou até o balneário da Pedra Redonda, em Ipanema) de 1900 até a década de 1920, quando os vagões foram trocados por veículos com motores de automóveis e carrocerias de ônibus. Desativada no início dos anos 1940, a Estrada de Ferro do Riacho se fazia presente na infância de Sérgio por meio da vila de trabalhadores e do Clube Aimoré, fundado pelos ferroviários, ainda intactos no local.
Das lembranças da escola, ele guarda o desconforto de ter o braço esquerdo amarrado à cadeira para aprender a escrever com a mão direita.
– Naquele tempo, não aceitavam canhotos. Com isso, me tornei ambidestro.
Após o 5º ano, Sérgio estudou na Escola Rio de Janeiro (atualmente situada na Lima e Silva), que ocupava um casarão da Rua Coronel Genuíno. Consta que o prédio hospedou Pedro II durante visita do Imperador a Porto Alegre.
– A diretora contava essa história, nem sei se é verdade. Pedro II teria plantado um coqueiro gigante no pátio. Pena que derrubaram a casa e o coqueiro para construir um edifício.
Como já estava mais grandinho, ele saía remando sozinho e deixava o barco embaixo da Ponte de Pedra. Na volta do colégio, pegava a canoa e vinha para casa.
– Não tinha razão para me preocupar, ninguém roubava.
Bode de estimação
O moleque gostava de colecionar répteis e mamíferos. No inverno, quando o riachinho tomava conta do quintal, pescava lambaris e cobrinhas d’água, que depois criava dentro do tanque de lavar roupas.
– Quando a mãe descobria, queimava as cobrinhas na boca do fogão.
Criava também garnisés. Chegou a ter onze pequenos galináceos e jura que eram todos adestrados:
– Eu ia até a padaria e eles vinham atrás, obedientes. De noite, um deles corria para o meu quarto, encostava-se junto ao espaldar da cadeira ao lado da cama e baixava a cabecinha para dormir.
Os gansos tinham outra serventia – a mãe utilizava-os para produzir chapéus femininos bordados à mão. Ela pedia ao filho:
– Sérgio, pega um ganso no quintal e tira as plumas para eu fazer os chapéus das madames.
Criança amamentada com leite de cabra, o garoto nutria especial apreço pela espécie, tanto que chegou a ter um bode de estimação. A paixão era tamanha que pediu ao pai que construísse uma pequena carroça a ser puxada pelo bicho para que pudesse passear pela João Alfredo levando a reboque uma amiguinha da vizinhança (Ieda Maria Viana da Silva, a Mãe Ieda de Ogum, que até hoje mora na Cidade Baixa). O único problema era que o bode não podia ver bonde. Saía correndo e se postava em cima dos trilhos, impedindo a passagem do coletivo elétrico.
– Ninguém conseguia tirar dali. Aí eu tinha que intervir: pegava pelas guampas e trazia para casa. A mim ele obedecia.
o sobrinho de cantalice
Nas recordações de Sérgio, ganha destaque igualmente a morte de um vizinho na esquina da Rua da República com a João Alfredo, onde hoje está o bar Ossip. O sujeito trazia a muque, no estribo do bonde, um fogão a lenha para dar de presente à esposa.
– Que força devia ter esse homem para segurar um fogão de ferro!
No balanço da curva, o passageiro despencou com o fogão nos braços, e não resistiu ao peso do regalo que trazia para a amada. Mortes violentas também se registravam nas bandas do Areal da Baronesa, área alagadiça paralela à João Alfredo, entre o arroio e o Guaíba, povoada por gente de modesto extrato social, a maioria descendentes de escravos.
– Muitos moravam em “avenidas”, que eram corredores de casebres enfileirados num só terreno.
Várias pontes cruzavam o Dilúvio em direção ao Areal da Baronesa, a maior delas na Rua da República, mas havia pinguelas espalhadas por todos os lados, inclusive atrás da casa de Sérgio. Do pátio, o garoto espiava brigas que transcorriam na margem oposta do arroio, principalmente ao redor de botecos que se proliferavam na região.
– Sabe como é, o pessoal bebia muita cachaça e a conversa terminava em briga. De vez em quando, um ferido atravessava a pontezinha e vinha cambaleando até tombar na esquina de casa. Como a ambulância demorava muito, minha mãe já tinha à mão uma água destilada e panos bem lavados para acudir.
A lambança mais grave se deu no bar do Vicente, italiano que servia aguardente na Rua Baronesa do Gravataí. Ali apareceu, certa vez, o sobrinho de Cantalice, uma negra de enormes tetas que costumava lavar roupas à beira do riacho. O rapaz, dizem, não batia muito bem da cachola e, de fato, havia passado recentemente uma temporada no Hospital Psiquiátrico São Pedro. Naquele dia, ele fez questão de deixar bem visível o facão que trazia preso à cintura.
Quando um brigadiano fez menção de retirar-lhe o facão, o valentão deu um salto e gritou:
– Ninguém chega perto!
A essa altura, escondido atrás da cerca, Sérgio sugeriu ao homem de farda que desse logo um tiro na perna do atrevido, mas o policial não lhe deu ouvidos. Nisso, interveio Cantalice, que acabara de esticar as roupas no varal:
– É meu sobrinho, deixa que eu resolva.
Cantalice se prontificou a buscar água fresca guardada numa talha para acalmar o rapaz. Ele até pôs de volta o facão na cintura, mas por pouco tempo. Nem bem a água começou a descer por sua garganta, a tia fez um gesto brusco na tentativa de desarmá-lo, mas o sobrinho foi mais rápido e enterrou o facão entre os seios da lavadeira.
A cena que se seguiu ficou guardada na memória do menino de 11 ou 12 anos para sempre. Atingido à queima-roupa por um disparo do policial militar, o jovem despencou com o sangue jorrando da cabeça como se fosse de uma torneira. Ao lado, jazia Cantalice com a faca enterrada no peito.
– De certa forma, eu estava acostumado, era uma zona violenta, sempre foi. Mas aquilo me impressionou. Nunca tinha visto algo igual.
Fiquem tranquilos: Cantalice sobreviveu. Sérgio gostava dela a ponto de ir visitá-la no Hospital de Pronto Socorro, no período em que ela ficou se recuperando.
– Morreu de velha mesmo. Lembro que, na época, o HPS era uma coisa triste. Não sei se tu sabes, na hora de fazer exames, usavam sanguessugas para retirar o sangue das pessoas, comenta ele, já mudando de assunto.
Cadeiras na calçada
Sérgio completou os estudos no Colégio Nossa Senhora das Dores, onde participou da formação da banda escolar, tocando clarinete. Por essa época, o processo de aterramento e retificação do Dilúvio já estava em andamento. Aos poucos, as curvas acentuadas dos braços do riachinho desapareciam, enquanto surgia a Avenida Ipiranga, que logo se tornaria uma das principais vias do trânsito da cidade.
– Canalizaram e depois jogaram terra vermelha em cima do arroio, que ainda está ali embaixo, alerta ele, temeroso de que os canos esclerosados arrebentem depois de tantos anos.
Ele tentou cursar Medicina, mas não passou no vestibular. Construiu, então, uma carreira no banco Sulbrasileiro, onde exerceu cargos de chefia na área de marketing, até se aposentar, na década de 1990. Nas horas vagas, atuava como voluntário na Santa Casa de Misericórdia, auxiliando mulheres pobres que promoviam feiras de artesanato no complexo hospitalar.
Os horários de folga ele guardava para a boemia. A bordo de um Corcel 1969, de cor branca e com quatro portas, agitava a noite de Porto Alegre, o que fez com que adiasse compromissos mais sérios no amor até os 37 anos, quando casou com a cirurgiã-dentista Lúcia Carmelita Cioffi, com quem teve um único filho, também chamado Sérgio, pediatra que vive em Pelotas.
O Barão da João Alfredo já não mora na CB, mas até pouco tempo – quando ainda gozava de boa saúde – estava sempre por perto, atendendo aos inquilinos e revendo amigos. Hoje, ao caminhar pelo bairro, amparado na bengala, recorda cenas da infância, quando andava descalço e soltava pandorgas. Da juventude, sente falta dos carnavais, que atraíam gente de todos os cantos da cidade.
– Minha mãe era uma que recebia convidados de outros bairros. Pudera, o carnaval da João Alfredo era o melhor de Porto Alegre.
Acima de tudo, Sérgio tem saudade do período em que as famílias puxavam cadeiras para conversar nas calçadas noite adentro.
– Hoje não existe uma comunicação frente a frente, ou pelo menos é muito rara. "Ah, eu vou me comunicar com o fulano {finge estar digitando a tela de um celular}"... Tinha uma convivência mais amistosa entre as pessoas, isso eu garanto.
Por conta dos efeitos do diabetes, que o obrigam a cumprir três sessões de hemodiálise por semana, ele acomoda-se atualmente na residência de uma cunhada, no bairro Azenha, mais perto do hospital, mas não vê a hora de retornar para casa em Teresópolis e cuidar do pátio com pereira, caquizeiro, limoeiro e bananeira, sem falar nas orquídeas e no pé de café.
– O senhor conhece algum descendente de italiano que não goste de plantar? Quando eu retornar, vá lá me visitar. O cafezinho é por conta da casa.