A alegria é a prova dos nove

No Carnaval do Bloco da Laje, brincar no espaço público é um ato revolucionário

Bloco da Laje na Vila IAPI no carnaval de 2018: espaço para crítica social e celebração do prazer (Fotos de Guilherme Santos/Divulgação)

Bloco da Laje na Vila IAPI no carnaval de 2018: espaço para crítica social e celebração do prazer (Fotos de Guilherme Santos/Divulgação)

A data do primeiro cortejo é quase uma alegoria aritmética: 12 de 02 de 12 (12 de fevereiro de 2012). Antes disso, uma confluência de sintonias e movimentos configura as etapas de gestação que precedem o aparecimento fulgurante do Bloco da Laje na cena cultural de Porto Alegre.

Cena 1: Ocupações globais

Uma onda de manifestações populares se espalha pelo planeta no começo da década de 2010. A Primavera Árabe cava sulcos nas estruturas seculares de poder no Oriente Médio e Norte da África. Na Espanha, o Movimento 15-M tinge com as cores vivas da indignação a praça madrilena de Puerta del Sol. O protesto contra a demolição do Parque Diren Gezi, no centro de Istambul, para a construção de um shopping center se transforma em confronto aberto com o governo da Turquia. E no Zuccotti Park, no coração financeiro de Nova York, jovens organizam o Occupy Wall Street para denunciar a desigualdade social e a ganância das corporações. 

Cena 2: Bolha de Luta

No rastro das ocupações globais, manifestantes fincam uma dezena de barracas na Praça da Matriz, centro político e institucional de Porto Alegre. Um grupo de amigos com raízes no teatro participa do Ocupa POA, mas se sente incomodado com a "estética obsoleta” marcada por slogans e bandeiras de partidos políticos.

É como se o Ocupa POA não estivesse em harmonia com as demais ocupações contemporâneas, as quais questionam não apenas a ordem social e econômica global, mas também as formas tradicionais de representação política.

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Entre os atores ali presentes, estão Diego Machado e Juliano Barros, que haviam participado de intervenções cênicas em espaços públicos da capital gaúcha com a Cia. de Teatro Porcos Com Asas. Recém-chegado do Rio de Janeiro, Juliano não esconde o entusiasmo com a revitalização dos blocos de rua do carnaval carioca. Num gesto espontâneo, começa a entoar versos que lhe vêm à cabeça no meio da praça, com o acompanhamento instrumental da banda de reggae Bolha de Luta:

Quem quiser brincar/Quem quiser que brinque agora...

Nasce ali, no Ocupa POA, o primeiro hino do Bloco da Laje.

– Queremos afirmar que o ato de brincar na rua é por si só uma ação política. Isso está no DNA do Bloco da Laje, diz Diego, que faz parte do núcleo de fundação do bloco com Juliano, Júlia Rodrigues e Thiago Pirajira. 

Não demora para Juliano soltar a voz outra vez, com novos versos improvisados: 

O Sol é o rei/É o rei/É o rei/A Lua é uma rainha...

Assim, na base do improviso, o futuro bloco já conta com dois números musicais. 

Cena 3: Churrasco na Laje

Diego reúne os amigos na laje do pátio de seu apartamento na Avenida Independência para assar um churrasco antes de pular o carnaval. Não é de hoje que a turma se sente frustrada com a falta de ousadia de cenografia e figurino da maioria dos blocos que comandam a folia na Cidade Baixa. Lá pelas tantas, alguém sugere abrir o guarda-roupa do anfitrião e tomar emprestadas as roupas usadas em peças de teatro para vesti-las no carnaval de rua. "Somos o Bloco da Laje", diz um deles. O nome pegou.

Cena 4: Celebração do afeto

Nasce, assim, um bloco teatralizado, que transita em diferentes segmentos da linguagem artística para transformar o carnaval num espaço ao mesmo tempo de celebração do afeto e crítica social.

Cada participante escolhe o figurino (em vermelho, amarelo e azul, as cores básicas, previamente definidas para representar a Laje), os passos da dança e os movimentos cênicos que irá adotar ao longo do desfile após harmonizá-los com o restante do bloco nos ensaios a céu aberto. Uma amostra da criatividade aplicada nos estandartes, roupas, maquiagem e adereços pode ser vista na sequência de imagens a seguir:

Desse modo, a Laje convida o público a se transformar em coautor da obra. Este é, provavelmente, o principal fator de empatia e integração entre os componentes do bloco. 

– A pessoa determina ela própria a vivência que vai experimentar naquele período de tempo e espaço que corresponde ao cortejo, resume Diego.

O eixo da proposta é o conceito do teatro como a última trincheira de convívio entre as pessoas. A ideia é do crítico e historiador argentino Jorge Dubatti, fundador da Escola de Espectadores, de Buenos Aires. Para ele, a presença de atores e espectadores num mesmo espaço físico, compartilhando experiências frente a frente, é o que diferencia o teatro de outras linguagens como cinema, TV e internet.

Por essa ótica, o teatro reconstitui o vínculo ancestral de convivência entre os seres humanos.

Assim, o Bloco da Laje busca inspiração nas origens das celebrações populares a partir de uma perspectiva visceral e libertadora, democrática, anárquica e humanista. 

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Cena 5: Pororoca de gente

O primeiro ensaio é marcado para um domingo à tarde, no Parque da Redenção. 

Na véspera, os fundadores do bloco flertam com os músicos que encontram pelas ruas, principalmente de sopro e bateria, convidando-os para participar do exercício de preparação. Na data e no local combinados, aparecem 30 pessoas, entre elas, a galera do Teatro Geográfico, já acostumada a se apresentar em espaços não convencionais como locais públicos, casas e prédios históricos.

Recentemente, o Teatro Geográfico havia feito uma releitura do samba A Flor e o Espinho, de Alcides Caminha, Guilherme de Brito e Nelson Cavaquinho, durante uma performance na Casa de Cultura Mario Quintana.

Tire o seu sorriso do caminho/Que eu quero passar com a minha dor... 

De imediato, A Flor e o Espinho é escolhida para abrir o desfile do Bloco da Laje. Brincando, brincando, o repertório já soma três canções!

Na estreia "oficial", outro domingo à tarde, para surpresa de Diego, Juliano & amigos, mais de 2 mil pessoas seguem o bloco, que parte do Largo Zumbi em direção à Rua João Alfredo, na Cidade Baixa.

A ideia é juntar-se à Roda de Samba do Instituto Brasilidades, que acontece na Travessa dos Venezianos.

– Quando olhamos para trás, vinha uma pororoca de gente. Não foi possível parar o desfile para confraternizar com o Brasilidades, conta Diego. 

O ator Diego Machado, do núcleo de fundadores do Bloco da Laje

O ator Diego Machado, do núcleo de fundadores do Bloco da Laje

Cena 6: Overbooking

Nos anos seguintes, o Bloco da Laje estabelece um processo intenso de diálogo e reinvenção dos espaços públicos ao navegar pela geografia da capital do RS.

Em 2014, abandona pela primeira vez a Cidade Baixa – uma zona de conforto como lugar boêmio e carnavalesco –, para ocupar a orla do Guaíba. 

– Um dos objetivos do bloco é chamar atenção para questões ligadas ao espaço urbano. Naquele momento, a luta contra a privatização do cais está na ordem do dia, aponta Diego. 

A cada ano, o público aumenta numa velocidade vertiginosa. O ano de 2015 é um divisor de águas: mais de 20 mil pessoas acompanham o desfile da Praça da Alfândega até a Praça Brigadeiro Sampaio, conhecida como Praça do Tambor, perto da Usina do Gasômetro. 

– A gente se olha e diz: "Não é isso, não é isso" relembra Diego.

Agressões, assaltos, banheiros químicos insuficientes... As coisas fogem do controle. A passagem do Bloco da Laje está agora distante da proposta original de fortalecer o convívio entre as pessoas com base no espírito comunitário de ajuda mútua.

Hora de rever estratégias para evitar "overbooking". 

A primeira medida é alterar o horário do desfile, que se transfere da tarde para o período da manhã. Outra providência é divulgar o local de concentração com poucos dias de antecedência. 

Sob a luz do sol matinal, o público diminui para 12 mil durante o trajeto entre a Igreja da Matriz e a Praça da Alfândega, com parada na CCMQ, em 2016.

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Cena 7: Praia do Cachimbo

O local do desfile de 2017 não está definido quando Diego marca consulta com o dentista Ricardo Pavão, que é também baixista do Bloco da Laje.

O consultório de Pavão fica em Ipanema, na zona sul da cidade, por coincidência perto da escola na qual o ator vai realizar entrevista naquela tarde para dar aulas de teatro.

Para matar tempo entre um compromisso e outro, Diego estaciona sua Kombi na Praia do Cachimbo, junto à Vila Conceição. É uma área de arborização intensa, que tem o Guaíba como pano de fundo. A escolha do local não é casual. Na adolescência, Diego gostava de ir até ali com os amigos para "conversar com os passarinhos". 

– É aqui o lugar do próximo desfile!, pensa ele.

A escolha de uma região elitizada gera críticas de seguidores da Laje no Facebook, como se os organizadores do bloco estivessem se rendendo a um inimigo de classe. Em contrapartida, após o desfile, quem protesta é a associação de moradores da Vila Conceição, revoltada com as cenas de mulheres com seios nus e homens se beijando. 

Na apoteose da festa, foliões mais entusiasmados se jogam às águas turvas do Guaíba e nadam até uma ilhazinha. 

Evoé!!!

Cena 8: Vila operária

Em 2018, o arco da flecha de alegria do Bloco da Laje se estende até a extremidade oposta do eixo norte/sul da cidade.

Comunidade do IAPI participa do carnaval do bloco

Comunidade do IAPI participa do carnaval do bloco

O desfile inicia no Parque Alim Pedro, recanto bucólico entrecortado por ruas sinuosas enfeitadas por margaridas brancas e gerânios cor de rosa, na Vila do IAPI. 

Financiado pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, o bairro foi projetado em 1953 pelo engenheiro Edmundo Gardolinski, descendente de poloneses, que construiu casas baixas e enxutas de estilo francês para abrigar operários porto-alegrenses e suas famílias.

Com 2,6 mil moradias, o IAPI é considerado patrimônio cultural e arquitetônico de Porto Alegre. É apontado como o maior e mais antigo condomínio residencial da América do Sul. 

Entre seus filhos ilustres, está a cantora Elis Regina, homenageada com uma performance durante a passagem do bloco, junto à casa em que nasceu (em 1945), na Rua Rio Pardo.

Cena 9: Laje no Conserto

Com o sucesso dos desfiles de carnaval, o bloco passa a ser assediado cada vez mais para animar eventos da agenda cultural de Porto Alegre, como o Dia Internacional do Teatro, na CCMQ, a solenidade do Prêmio Açorianos, no Teatro Renascença, e o Morrostock, festival de música alternativa em Sapiranga.

É convidado também para se apresentar em casas de shows, como a sede da Banda Saldanha, junto ao estádio Beira-Rio. No bar Opinião, a Laje reúne um público de 1,7 mil pessoas num baile carnavalesco.

O projeto Laje no Conserto é criado em 2016 num formato pocket do bloco para dar conta de tantos convites e viabiliza um calendário contínuo de apresentações ao longo do ano. Para se ter ideia, o desfile de carnaval mobiliza cerca de 150 pessoas, entre músicos, cantantes e brincantes, sem contar as que trabalham nas estruturas de limpeza, segurança e transporte. A Laje no Concerto mobiliza no máximo 30 participantes

– Além disso, o projeto estético que a gente leva ao palco é diferente, uma vez que, nos desfiles pelas ruas, não existe divisão entre atores e público.

A agenda da Laje no Conserto em 2018 abre com uma apresentação no Psicodália, mostra multicultural realizada durante o carnaval numa área com 500 mil metros quadrados de área verde em Rio Negrinho (SC). É atualmente o principal festival de música da região sul do País, contando com a presença de artistas como Jorge Ben Jor, Alceu Valença, Zé Ramalho, Lô Borges, Arrigo Barnabé, Tulipa Ruiz e Mundo Livre S/A, entre outros.

Ainda no primeiro semestre do ano, há shows programados ao lado de nomes de primeira linha da música brasileira, como Liniker, BaianaSystem e Francisco El Hombre.

Cena 10: do outro lado do rio

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Ainda não está batido o martelo, mas algumas intenções já podem ser anunciadas quanto à região que receberá o Bloco da Laje em 2019.

– A tendência é a de retorno para o Centro de Porto Alegre, mas, se der a louca, a gente pode desfilar até em Guaíba, revela Diego, meio sério, meio de brincadeira.

Sem apoio da prefeitura da capital gaúcha, os desfiles da Laje se viabilizam por meio de financiamento coletivo organizado pela plataforma Catarse. Neste carnaval, a meta (R$ 42 mil) foi atingida em dezembro de 2017, cerca de um mês antes da festa no IAPI. 

Além de não contar com ajuda financeira do Executivo Municipal, a Laje paga taxas como a do DMLU, o que é injusto se considerarmos a movimentação que o bloco propicia na economia local, de acordo com Diego:

– Se levarmos em conta a quantidade de pessoas que deixa de ir à praia ou se desloca do litoral até Porto Alegre para participar do Bloco da Laje, fora as que chegam da Região Metropolitana, talvez estejamos falando de 4 mil a 5 mil. É gente que gasta com transporte, alimentação, bebida, num período em que a cidade está com pouco movimento. Será que isso já não paga as taxas que nos cobram?

Diego cita o exemplo de capitais como Recife, que paga os artistas para promover o carnaval com a visão de que, com isso, incrementa o turismo e irriga a economia local, aumentando, indiretamente, a receita pública com o pagamento de impostos.

– Aqui, além de não ajudar, a prefeitura cria dificuldades, complementa.

Se o Bloco da Laje algum dia abandonar Porto Alegre, poderá haver uma insurreição carnavalesca. Afinal, como já dizia o poeta Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago, publicado lá em 1928, “a alegria é a prova dos nove” e, além disso, a liberdade de brincar no espaço público é um direito básico da cidadania numa democracia que se preze, não é mesmo?

Paulo César Teixeira