A tarde em que Lobão e Evandro Mesquita inventaram o rock brasileiro dos anos 1980
Lobão relembra surgimento da blitz e conta histórias do rock e de seus 50 anos de carreira no podcast do Rua da Margem
Lobão no palco do Opinião, em show da turnê 50 Anos de Vida Bandida, que celebra meio século de carreira (Foto/Ro Lopes)
Com 65 quilos e quase 1,90m de altura, o rapaz sentado na plateia da sessão vespertina do Teatro Ipanema, assistindo à peça Aquela Coisa Toda, do grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, mais parecia um vagalume ou um gafanhoto.
Mas o apelido era Lobão, e ele tocava bateria na banda de Marina Lima, cantora que se apresentava, à noite, no palco da zona sul carioca naquela temporada de 1980.
O Asdrúbal Trouxe o Trombone, com criações coletivas baseadas em improvisações e na experiência pessoal de seus integrantes – entre eles, Evandro Mesquita, Regina Casé, Perfeito Fortuna e Luiz Fernando Guimarães –, era o que havia de mais inovador no teatro brasileiro na abertura da década de 1980.
Celebração de uma carreira “improvavelmente longeva” (Foto/Divulgação/Rui Mendes)
— Vocês precisam assistir a Essa Coisa Toda para se inspirar — recomendou Wally Salomão, que dirigia o show de Marina, junto com Antônio Cícero, aos jovens músicos que acompanhavam a cantora.
Naquela tarde, Lobão se encantou com o formato das canções de melodias simples e letras ácidas, que recheavam a peça do Asdrúbal. Lembrou de um conselho que tinha recebido do britânico Jim Capaldi, baterista da banda Trafic, que morou no Brasil na década de 1970. Depois de escutar uma canção de estilo bossa-novista composta pelo brasileiro, Capaldi disse:
— Só com a quantidade de acordes da sua introdução, eu teria feito um álbum triplo. Seja simples, cara!
Afora isso, o personagem de Evandro Mesquita em Aquela Coisa Toda também era chamado de Lobão. Coincidência? Talvez não.
— Provavelmente, o texto tenha sido escrito pelo poeta Chacal, pensando na sua pessoa — confidenciou Wally ao baterista.
Com tantos augúrios favoráveis, não teve jeito. Ao final da sessão, Lobão se aproximou de Mesquita:
— Lobão, prazer, eu sou Lobão!
É possível que ali tenha nascido o rock brasileiro contemporâneo. Afinal, a partir daquele encontro, surgiu a banda Blitz, que estourou, dois anos depois, com o megahit Você Não Soube Me Amar.
Essas e outras histórias do rock e da trajetória pessoal de Lobão foram contadas no podcast do Rua da Margem, disponível no canal Adjuntos (escute o programa na íntegra no YouTube ou no Spotify). O podcast foi gravado na manhã de 23 de novembro, dia em que o cantor apresentou o show 50 Anos A Mil, que celebra meio século de sua carreira, no bar Opinião, em Porto Alegre.
Franco atirador
Na cena do rock brasileiro, Lobão – como é conhecido João Luiz Woerdenbag Filho, nascido em 11 de outubro de 1957, no Rio de Janeiro – é um franco-atirador, como ele próprio declara na canção Ronaldo Foi Pra Guerra.
Apesar disso, longe de ser um coadjuvante, esteve presente de corpo e alma em algumas das cenas mais emblemáticas da história do rock tupiniquim, como a do ato de fundação da Blitz. Aliás, Lobão também batizou a banda, inspirado em The Police, que tinha excursão agendada para o Brasil naquele período.
Blitz: nome curto e sugestivo. Mas os outros membros da banda detestaram, já que nada tinha a ver com o espírito de paz e amor, herança da era hippie dos anos 1960 e 1970, que ainda comovia a maior parte do grupo. Um imprevisto fez com que mudassem de ideia.
Havia um show marcado na boate Caribe, em São Conrado, no Rio. A hostess do night club, que namorava Evandro, perguntou se a banda já tinha nome. Era uma informação relevante, afinal, ela precisava finalizar o lambe-lambe de divulgação do evento para colar em postes e muros da cidade.
Na correria, ninguém achou denominação melhor do que Blitz. Ficou assim.
A Blitz amargou alguns anos no “semianonimato”, segundo Lobão, antes de virar sucesso nacional com Você Não Soube Me Amar, lançada em compacto simples pela gravadora EMI, em 1982.
Capa da ISTOÉ, em outubro de 1982
A música foi criada a partir de esquetes teatrais do Asdrúbal – de onde saíram tiradas como “Garçom, uma cerveja! Só tem chope/Desce dois, desce mais” ou “Amor, pede uma porção de batata frita/Ok, você venceu: batata frita” –, combinadas com o ritmo e a levada da guitarra de Gotta Get You Into My Life, dos Beatles, conforme sugestão do guitarrista Guto Barros (coautor da canção, junto com Evandro e Ricardo Barreto).
O que pouca gente lembra é que o lado B do compacto não tinha uma música completa, e sim um fragmento de Você Não Soube Me Amar (“Nada, nada, nada, nada”), que reverberava na voz de Evandro ao longo de toda a faixa.
Você Não Soube Me Amar alçou a Blitz ao topo das paradas de sucesso, mas Lobão mal teve tempo de aproveitar a súbita fama.
Desgostoso com o pouco aproveitamento das canções de sua autoria no repertório da banda, ele adentrou a sede da gravadora RCA Victor, com a revista ISTOÉ embaixo do braço. Na portaria do prédio, exibiu à recepcionista, orgulhoso, a capa na qual aparecia, sorridente, ao lado dos outros integrantes da Blitz, apontada pela publicação como a banda do momento.
Sem mais delongas, pediu uma audiência com o presidente da companhia.
Contrato assinado, Ronaldo Foi Pra Guerra, LP de estreia da carreira solo (acompanhado por Os Ronaldos), trazia já alguns clássicos da discografia de Lobão, a exemplo de Me Chama, regravado por ninguém menos do que João Gilberto, mais de 20 anos depois. No podcast do Rua da Margem, o cantor também relembra essa história.
Desafio à autoridade
Lobão conta que varou longas madrugadas pendurado ao telefone com João Gilberto, que, do outro lado da linha, mostrava diferentes versões de Me Chama, com arranjos refinados de Waltel Branco.
— Ele ligava um gravador de fita cassete e, depois de mostrar repetidas vezes cada uma das versões, queria saber qual delas eu gostava mais.
Quando a releitura de João Gilberto para Me Chama veio a público, em 2006, Lobão ficou incomodado ao dar falta do verso “Nem sempre se vê mágica no absurdo”, que considera a frase-chave da canção.
— Ele disse que retirou o trecho porque não tinha entendido o que eu quis dizer, mas bem que podia ter me telefonado para esclarecer.
As críticas e farpas disparadas após o incidente mal disfarçam certo orgulho de ter uma composição de sua autoria registrada na voz do gênio da Bossa Nova.
— Fiquei tirando onda no sabor do desafio à autoridade do João, mas, no fundo, fiquei envaidecido. Quase ninguém tem uma música gravada por ele, e eu tenho, ainda mais com um arranjo do Waltel Branco. Foi sublime.
Lobão no Zelig, na Cidade Baixa, em 2007 (Reprodução/Facebook)
No programa do Rua da Margem, Lobão contou ainda que seu primeiro instrumento foi a bateria que pegou emprestada de um primo, quando tinha 4 anos de idade.
Lembrou também a estreia no palco com o musical Feiticeira, estrelado por Marília Pera, com direção de Nelson Motta, em São Paulo. No espetáculo, era o baterista da banda Vimana, da qual também faziam parte Lulu Santos e Ritchie.
Entre as histórias de suas canções, citou Decadence Avec Elegance, uma encomenda feita para a trilha de abertura da novela Ti Ti Ti, da Globo, em 1985, que foi recusada pela emissora em função do elevado teor de ironia da letra (em seu lugar, entrou uma música de Rita Lee).
Lobão não deixou de comentar a sua ligação com a cena do rock do Rio Grande do Sul. Na primeira década do século 21, era figura carimbada em Porto Alegre, época em que editou a revista OutraCoisa, que trazia um CD encartado em cada edição, com artistas iniciantes ou independentes, casos de Wander Wildner e da banda Cachorro Grande (a publicação durou de 2003 a 2008).
Naquele tempo, Lobão frequentava bares de Cidade Baixa, como Ossip e Zelig, onde não se furtava a dar canjas inesperadas.
— A cultura do rock é bastante arraigada no Sul. Isso acontece também em Curitiba, mas aqui é mais forte. Sem dúvida, o RS é o estado mais rock and roll do Brasil — afirma.
Além disso, casado com a gaúcha Regina Lemos, ele diz que, praticamente, já se considera “cidadão” de Cachoeira do Sul, cidade em que ela nasceu:
— Estamos juntos há 34 anos e passamos muitos Natais em Cachoeira — explica.
O show que apresentou no Opinião foi um dos últimos da turnê 50 Anos de Vida Bandida, que será encerrada no próximo dia 14 de dezembro, no RockFun Fest 2024, no Centro Esportivo Tietê, em São Paulo.
— É um momento emblemático comemorar 50 anos de uma carreira improvavelmente longeva. Fico feliz, porque isso desperta emoção nas pessoas.
Para 2025, está no horizonte a gravação do disco Vale da Estranheza, que ele classifica como uma “ópera”, que terá, inclusive, a participação do diretor de teatro Gerald Thomas como pianista.
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