O salvador da tipuana
Há 45 anos, jovem subiu numa árvore em protesto que marcou para sempre o movimento ambientalista no Brasil
Foi um gesto impulsivo, repentino.
Na manhã do dia 25 de fevereiro de 1975, Carlos Alberto Dayrell saiu da Casa do Estudante da UFRGS, no Centro de Porto Alegre, onde morava, para fazer a matrícula do semestre no curso de Engenharia Elétrica. Assim que pisou na calçada, escutou um rangido estridente de motosserras, vindo da calçada oposta da Avenida João Pessoa.
Nas mãos de funcionários da Secretaria Municipal de Obras e Viação (SMOV), as máquinas abatiam uma série de tipuanas – árvores altas, com alongados ramos de flores amarelas, apreciadas pela generosa sombra, que, naquele momento, obstruíam o caminho para a construção do viaduto Imperatriz Leopoldina.
Ao perceber que “ninguém mexia um dedo para salvar as árvores”, Dayrell aproveitou o descuido dos servidores da prefeitura para subir numa das tipuanas em frente à Faculdade de Direito. Lá de cima, de uma altura que calcula de sete a oito metros, ele gritou:
— Parem os cortes!
Nascido em Sete Lagoas (MG), na região metropolitana de Belo Horizonte, em 1953, Dayrell vivia em Porto Alegre desde 1970. Além de estudar na UFRGS, trabalhava na agência local do Banco Mineiro do Oeste, mais tarde incorporado ao Bradesco.
Nos últimos tempos, havia se transformado num assíduo espectador das palestras do agrônomo e ecologista José Lutzenberger, fundador da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), entidade pioneira na defesa do meio ambiente no país, criada em 1971.
Numa delas, Lutzemberger (falecido em 2002, aos 75 anos) contara o episódio de ambientalistas que haviam se acorrentado a árvores para evitar a derrubada de uma floresta em meio à construção de uma rodovia na Alemanha.
— No Brasil, nós já fizemos tanta coisa, mas ainda não fomos ouvidos. Agora, façam vocês. Subam em árvores! – conclamou Lutzenberger, diante da plateia de jovens.
Essas palavras ainda ecoavam na cabeça de Dayrell naquela abafada manhã de fevereiro de 1975, quando ele decidiu atender literalmente à convocação. De imediato, os trabalhadores silenciaram as motosserras.
— Quando me dei conta do que havia feito, bateu medo. Mas já era tarde. Não podia mais descer – conta Dayrell.
Por meia hora, os operários esperaram que ele descesse, por cansaço ou temor, depois desistiram. Ao invés disso, Dayrell ganhou a companhia de amigos – Teresa Jardim, que cursava Biblioteconomia, foi a primeira a aderir, depois Marcos Saraçol, aluno de Matemática, também subiu.
— Estava passando quando vi o Carlos, que eu já conhecia da Casa do Estudante, e aquele amontoado de gente ao redor da árvore. Resolvi encarar. O pessoal embaixo deu um pezinho e os de cima me puxaram – relembra Saraçol.
A notícia se espalhou rapidamente. As rádios Gaúcha e Continental passaram a dar informes ao vivo diretamente da Avenida João Pessoa. Porto Alegre parou para acompanhar o insólito caso de três estudantes que subiram numa árvore para salvá-la das motosserras.
Enquanto a Brigada Militar se deslocava para debelar o inédito protesto, crescia a plateia que cercava a tipuana para assisti-lo de camarote. Por volta das duas da tarde, havia 500 pessoas em volta da árvore. Lá pelas tantas, alguém arrumou caneta e papelão para que Dayrell, aboletado no topo da árvore, escrevesse a mensagem “+ verde - concreto” num cartaz.
Escalado pela BM para ajudar nas negociações, o diretor da Faculdade de Engenharia, Adamastor Uriartt, pediu que os universitários descessem para a calçada. Em troca, ouviu o convite de Teresa para que ele subisse para conversar. Sob aplausos do público, o diretor da Engenharia não hesitou em escalar a tipuana.
— Recordo que o pé do diretor ficou escorado no meu ombro durante a negociação – conta Saraçol.
Lá em cima, foi decidido que Dayrell, Lutzenberger e Augusto Carneiro, na época secretário da Agapan, iriam até a sede da prefeitura para resolver o impasse, enquanto Teresa e Saraçol continuariam de guarda no alto da tipuana.
A ideia era falar com o prefeito, mas Telmo Thompson Flores não quis conversa. Mandou que se entendessem com o titular da SMOV. Apesar da desfeita, ninguém saiu de mãos vazias do Paço Municipal. Além da promessa da salvação da tipuana, Dayrell, Lutzenberger e Carneiro receberam a garantia de que ninguém seria preso.
Em torno de quatro e meia da tarde, quando a notícia do acordo chegou à cena do protesto, Teresa e Saraçol concordaram em descer da árvore. Mas, tão logo puseram os pés no chão, foram detidos pela Brigada Militar – na troca de turno, descumprindo o combinado, o novo comandante da operação decidira levá-los para prestação de depoimentos no DOPS (a temível policia política do regime militar).
— Aí a coisa embolou. A massa se revoltou e passou a sacudir o camburão. Lá dentro, eu até achei que ia virar – relata Saraçol.
Na confusão, além dos estudantes, também um jornalista foi posto na viatura sob a acusação de desacato.
Junto com membros da Agapan e outros jornalistas, parte da multidão que acompanhou o protesto se deslocou até o Palácio da Polícia, na esquina das Avenidas João Pessoa e Ipiranga, para aguardar a libertação dos presos, que aconteceu em torno das nove horas da noite.
No DOPS, os universitários sujaram polegares e bateram as clássicas fotografias de porta de cadeia. Não houve agressão física, apenas intimidação verbal. Responderam a um Inquérito Policial Militar, que, ao final de contas, felizmente, não deu em nada.
No dia seguinte, a imagem dos jovens em cima da tipuana correu o mundo, estampada em capas de jornais e noticiários da televisão. Até o New York Times comentou o assunto.
— O protagonista foi o Carlos, mas eu tenho muito orgulho de ter participado, ainda que de gaiato, dessa história – diz Saraçol.
Não é para menos, afinal, a semente plantada por Dayrell deu frutos. O protesto da tipuana é até hoje considerado um marco, que está na origem da expansão do movimento ambientalista no Brasil.
No ano seguinte, seria criada a Secretaria do Meio Ambiente de Porto Alegre, a primeira do Brasil em âmbito municipal. Muito tempo depois, em 2013, ativistas de outra geração repetiriam a atitude de Dayrell durante os protestos contra a derrubada de árvores na Orla do Guaíba.
O melhor de tudo é que, até hoje, a tipuana está de pé na calçada da Avenida João Pessoa. O que parecia impensável aconteceu: os engenheiros responsáveis pela obra alteraram a inclinação do viaduto para que a árvore fosse poupada.
Dayrell não ficou muito tempo em Porto Alegre após o episódio. Em 1976, ele resolveu voltar para Minas Gerais, formando-se em Agronomia pela Universidade Federal de Viçosa, em 1980. Atualmente, trabalha no Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, com sede em Montes Claros.
Em 1998, foi inaugurada uma placa de bronze em reconhecimento ao salvador da tipuana no pátio da Faculdade de Direito. Ainda naquele ano, ele recebeu o título de Cidadão Honorário de Porto Alegre.
Merecidas honrarias a um gesto impulsivo que, 45 anos depois, se mostra ainda atual e, mais que isso, necessário.
— Ainda que os desafios, hoje em dia, sejam muito maiores, em comparação aos da década de 1970, continuo acreditando que a vida deva ser colocada, sempre, em primeiro lugar — conclui Dayrell.