Sementes do futuro
Horta comunitária no Centro Histórico lança raízes de uma cidade mais humana e sustentável
Um recanto quase centenário, embora ainda desconhecido de boa parte da população, é o cenário de uma iniciativa que reúne a um só tempo a promoção da saúde e a preservação da memória e do patrimônio histórico de Porto Alegre.
É a horta comunitária que se espalha pela encosta do Morro da Formiga, junto à escadaria entre as ruas Fernando Machado e João Manoel, no Centro da capital gaúcha. De quebra, o projeto ainda fomenta a educação ambiental e fortalece os laços da comunidade local.
O maior contingente da produção livre de agrotóxicos é de ervas e temperos – gengibre, babosa, boldo e cidró, entre outros –, mas há também plantio de frutas como tomate, melão, laranja, limão, araçá e maracujá, além de PANCS (Plantas Alimentícias Não Convencionais).
A ação começou a ganhar forma em fevereiro de 2016, quando a jornalista e publicitária Carmen Fonseca propôs a ideia na página dos Vizinhos do Centro Histórico no Facebook.
– Uma galera pilhou e passou a se reunir na Praça do Aeromóvel (Praça Júlio Mesquita, localizada em frente à Usina do Gasômetro) para viabilizar a proposta, revela Carmen.
Dos encontros na praça nasceu a AHCCH (Associação das Hortas Coletivas do Centro Histórico), um grupo multidisciplinar que aglutina agrônomos, biólogos, advogados, engenheiros, arquitetos, urbanistas, artistas plásticos, jornalistas e publicitários, entre outros profissionais.
Jardim secreto
É bem verdade que, antes de ocupar o Morro da Formiga, a AHCCH tinha outros planos. A princípio, dirigiu o foco para o terreno desocupado na Rua José do Patrocínio, 70, pertencente ao Município, considerado ideal para o cultivo principalmente pela posição solar.
– Uma horta bem manejada ali abasteceria pelo menos cinco bairros vizinhos – Centro Histórico, Cidade Baixa, Menino Deus, Praia de Belas e Bom Fim, confia Carmen, presidente da associação.
A área – apelidada de Jardim Secreto do Centro Histórico pelos integrantes do movimento – possui espécies nativas protegidas pela legislação, portanto, imunes ao corte, além de um coletor pluvial que passa por baixo da superfície, fatores que inviabilizam a sua utilização pela especulação imobiliária.
Algum tempo atrás, chegou a ser usada como estacionamento de uma agência do Banrisul, que já não opera no local. Atualmente, se encontra vazia e acumula lixo e mosquitos, além de servir de habitat para roedores.
– Do jeito como está, representa iminente risco para a saúde pública, adverte Carmen.
Conforme ela, o terreno da José do Patrocínio está propício para a proliferação de pragas e se constitui num potencial criadouro do aedes aegypti, mosquito transmissor de dengue e febre amarela urbana, entre outras doenças.
– Fora isso, tem sido refúgio para moradores de rua, que usam o lugar para consumo de drogas e atividades afins, acrescenta.
Até o momento, a proposição de transformá-lo numa horta comunitária não foi aceita pela prefeitura. Especula-se que poderia ser transferido para o Previmpa (Departamento Municipal de Previdência dos Servidores Públicos do Município de Porto Alegre) como ressarcimento de dívida não paga pelo Executivo Municipal.
Com a negativa da prefeitura, a AHCCH se voltou para uma área particular no Morro da Formiga, igualmente desocupada, que foi cedida em regime de comodato para a construção da horta comunitária.
Além de construir e conservar a horta por meio de mutirões, a AHCCH promove atividades de revitalização do espaço, a exemplo da ação de artistas e grafiteiros que transformaram o terreno e a casa em ruínas, que praticamente preservou apenas as estruturas de divisórias, numa galeria a céu aberto com a pintura de muros e paredes.
A AHCCH promove ainda oficinas abertas à comunidade para ensino de práticas como compostagem ou espiral de ervas (plantio em formato espiralado com diferentes espécies, no qual aquelas que necessitam de maior quantidade de água são posicionadas em nível mais baixo).
Já os eventos culturais ganharam o nome de Vem Sem Medo Para a Escadaria, título provocativo que pretende desmistificar a ideia de que o local não deva ser frequentado por conta do abandono e da depredação.
Durante os shows, o patamar intermediário da escadaria, batizado de “concha acústica”, serve de palco para as apresentações dos artistas. Já foram realizados espetáculos musicais, performances teatrais, exibição de filmes e festas comunitárias.
– Nestas ocasiões, convidamos o público a participar de mutirões de confecção de canteiros da horta, relata Carmen.
Moradora de apartamento no sétimo andar do edifício da Fernando Machado, em frente à escadaria, Carmen faz também o papel de sentinela. Da janela, tem olhar vigilante para evitar atos de vandalismo que danifiquem tanto o patrimônio histórico como a horta comunitária.
– Tudo isso deve ter algo a ver com meu passado riponga, diverte-se ela, lembrando-se da época em que viveu numa comunidade rural em Rolante, no Vale do Paranhana, que seguia os princípios da Antroposofia, doutrina criada pelo filósofo austríaco Rudolf Steiner (1861/1925).
Belvedere do amor
A escadaria construída em alvenaria de tijolos e pedras despontou na paisagem urbana em 1929. Nos últimos anos, embora tenha sido tombada pelo setor de patrimônio histórico da prefeitura, os porto-alegrenses pouco se arriscam a atravessar os 132 degraus que fazem a ligação entre as partes alta e baixa da região central da cidade, receosos diante da sujeira e da falta de segurança no local.
O mirante posicionado na Rua João Manoel, no alto da escada, ficou conhecido como Belvedere do Amor por ser um ponto de encontro de namorados num tempo em que havia segurança no local e antes que os edifícios erguidos no entorno ocultassem a vista aberta para o Guaíba.
Um terço da obra de construção da passagem foi financiado pela família Chaves Barcelos, proprietária de boa parte do casario do quarteirão – o restante pelo poder público.
O projeto é do arquiteto Christiano de la Paix Gelbert, que trabalhou na prefeitura de 1925 a 1953, período em que participou da construção de praças, pontes, hospitais e hidráulicas. Gelbert, que chegou a arquiteto-chefe da Diretoria de Obras, foi responsável também pelo projeto de instalação dos principais pavilhões da exposição do Centenário da Revolução Farroupilha, realizada em 1935, no Parque da Redenção.
As ações de revitalização buscam transformar o recanto histórico numa “pequena vila sustentável”, de acordo com Carmen. É como se a horta comunitária do Morro da Formiga plantasse uma semente para que se construa uma cidade mais humana e prazerosa de se viver no futuro.
– Imagina as pessoas podendo sentar em banquinhos embaixo de árvores frutíferas, com jardins comestíveis de temperos e cercas vivas de maracujás e flores ao redor?, sugere ela.
Dando corda à imaginação, a jornalista visualiza café, restaurante, bicicletário, feirinhas e pontos de pequeno comércio no local.
– Por que não dar vida plena mais uma vez àquele lugar? Assim, teremos um espaço transitável novamente, voltado para a cultura, a educação, o meio ambiente e, principalmente, para a convivência genuína entre as pessoas. É só a gente querer, completa Carmen.