Grifes do bem
Ações colaborativas, brechós e marcas sustentáveis inspiram novos conceitos de moda em Porto Alegre
Durante décadas, a prioridade da indústria da moda consistiu em criar produtos com estampas atraentes a um custo competitivo para assegurar as vendas.
À medida que os consumidores passaram a se mostrar cada vez mais atentos a ideias como transparência e sustentabilidade, as empresas se viram forçadas a rever suas atitudes.
O conceito de consumo consciente surgiu na década de 1960, quando – indignada com as imagens exibidas pela televisão mostrando soldados e civis mortos na Guerra do Vietnã – parte da sociedade passou a boicotar nos Estados Unidos e na Europa produtos e serviços de corporações que, de uma forma ou de outra, apoiavam a intervenção militar no sudeste asiático.
De lá para cá, a concepção de consumo responsável ganhou ainda mais amplitude, fazendo com que as organizações empresariais se preocupem em andar na linha em todos os campos de atuação.
– Quando compramos um produto da companhia X ou Y, estamos chancelando as atitudes que a empresa adota, afirma Fê Carvalho Leite, da Lupo Códigos Culturais, que promove pesquisa qualitativa e análise de tendências de mercado.
Às vezes, uma tragédia desencadeia transformações positivas. É o caso do Fashion Revolution, que se realiza anualmente em cerca de 90 países para estimular uma tomada de posição em favor de práticas sustentáveis na cadeia da moda.
O movimento que mobilizou 2,5 milhões de pessoas em 2017 foi criado após o desmoronamento do Rana Plaza – edifício que abrigava quatro oficinas de costura – no dia 24 de abril de 2013, em Daca, capital de Bangladesh.
A maior parte das 1.134 pessoas mortas eram costureiras que produziam para grifes mundiais, como Benetton, The Children's Place, Primark, Monsoon, DressBarn e H&M.
Embora as etiquetas das marcas estivessem à mostra entre os destroços do prédio, como não havia vínculo formal de trabalho, as empresas não se sentiram obrigadas a indenizar as vítimas e seus familiares.
Sob a poeira e os escombros do Rana Plaza, emergiu uma face até então pouco conhecida da indústria da moda e que nada tinha a ver com o glamour das passarelas.
Essa face exibia mazelas como condições de trabalho análogas à escravidão e uso de mão de obra infantil – estima-se que 250 milhões de crianças atuem na indústria têxtil.
Além disso, o setor é um dos que mais causa danos ao meio ambiente – o tingimento de tecidos é responsável por 20% da contaminação das águas do planeta e a produção de uma única calça jeans pode consumir até 11 mil litros de água.
Sem falar que 16% da produção de inseticidas são despejados em lavouras de algodão, matéria-prima essencial das fábricas de vestuário.
Veja o vídeo produzido acerca do tema pelo Fashion Revolution (com direção de Geo Cereça) em Porto Alegre, mais precisamente na Rua da República, no bairro Cidade Baixa:
Entre as 36 cidades brasileiras que participaram do Fashion Revolution em 2017, Porto Alegre apresentou o maior grau de engajamento.
A mobilização dos porto-alegrenses se refletiu no percentual de 40% do total de 4.884 postagens da hashtag #fashionrevolution feitas por brasileiros nas redes sociais.
– Esse engajamento traduz o crescimento do mercado de moda consciente na cidade, diz Lívia Duda, coordenadora da edição de 2018 do Fashion Revolution na capital do RS, realizado na última semana de abril e cujos resultados ainda não foram divulgados.
De fato, Porto Alegre chama atenção pela quantidade de iniciativas e empreendimentos que inspiram novos conceitos no universo da moda.
– Temos aqui designers, produtores, estudantes, professores e consumidores que desejam ver mudanças práticas para que haja mais transparência neste mercado, complementa Lìvia, que é sócia da Envido, marca de roupas produzidas a partir de tecidos reciclados, orgânicos ou biodegradáveis.
Um exemplo é a Revoada, empresa que usa borracha de câmeras de pneus e material de náilon de guarda-chuvas descartados como matéria-prima para produzir artigos de moda, como carteiras, mochilas e bolsas.
Fundada em 2013 pela publicitária Adriana Tubino e a designer de moda Itiana Passetti, a Revoada representará o Brasil no dia 24 de maio, em Amsterdã, na Holanda, na grande final da Chivas Venture 2018 – uma grande competição global para empreendedores sociais de 29 países, patrocinada pela Chivas Regal, marca de uísque escocesa pertencente ao grupo Pernod Ricard.
Ganhadora da etapa nacional, a Revoada já recebeu US$ 50 mil. Em Amsterdã, o prêmio de US$ 800 mil será compartilhado entre cinco iniciativas selecionadas pelo júri, cabendo a maior parte dos recursos àquela que conquistar o primeiro lugar.
Em 2011, a publicitária Natália Guasso combinou com algumas amigas juntar o excedente de roupas de seus armários para vendê-las num evento aberto ao público.
O gesto espontâneo deu tão certo que, hoje, o Brick de Desapegos é uma das feiras mais bem-sucedidas de moda sustentável do RS – é promovida mensalmente com cerca de 80 expositores em bares como Ocidente, Agulha e Odessa.
Mais que isso, a ação se desdobrou em outros dois eventos: o Brechó de Desapegos, versão mais itinerante do projeto, e a Tour Desapegos, que conduz a feira para cidades do interior gaúcho, como Caxias do Sul, Bento Gonçalves e Canela.
Além de propiciar a troca de roupas usadas, o Brick de Desapegos articula rodas de conversa sobre moda consciente em parceria com projetos como a Closet Detox, consultoria que ajuda as pessoas a vender peças esquecidas no fundo dos guarda-roupas.
– A ideia é desapegar, ter uma vida mais leve, com menos consumo desnecessário, diz Natália. A seguir, ela acrescenta: – Neste sentido, percebo que a moda tem o poder de construir novos comportamentos e ajudar o mundo a ser mais sustentável.
O conceito de consumo consciente é o que inspira a Arara Colaborativa, espaço de compartilhamento de peças de moda feminina que está montado desde o dia 14 de maio, na loja Profana da Rua Lima e Silva, na Cidade Baixa.
Como funciona? As pessoas são convidadas a deixar ali roupas que, por um motivo ou outro, não usam mais e das quais querem se desfazer. Em contrapartida, podem tomar para si qualquer peça que já tenha sido depositada antes na Arara Colaborativa.
Em ambos os casos, não é necessário que as roupas sejam da marca Profana ou tenham sido adquiridas na loja – basta que estejam em boas condições de uso.
Desse modo, a iniciativa da Profana estimula uma troca consciente de produtos que, do contrário, teriam o ciclo de vida abreviado.
A Arara Colaborativa oferece também caneta e papel para que sejam registradas as histórias de vida relacionadas às peças que estão trocando de mãos.
– Gosto de pensar que a roupa carrega consigo uma emoção e um significado para a pessoa, diz Simone Moro, criadora da marca.
Não é a primeira vez que a Profana adota atitudes em favor do consumo consciente.
Há alguns anos, protagonizou um brechó no Bar Pinacoteca, na Rua da República.
E, em novembro de 2017, abriu espaço para o Brechó da Troca, na loja da Lima e Silva, em parceria com a Hellspo – Moda e Psicologia.
No evento, o troca/troca de roupas e acessórios se converteu numa oportunidade de bater um papo a respeito do conceito de desapego aplicado à moda, sob a mediação da psicóloga e consultora de estilo Helena Soares.
Outra ação que busca prolongar o ciclo de vida dos produtos de vestuário é o Clube de Costura Livre, criado pela designer Marina Giongo em janeiro do ano passado.
Diferente das escolas de formação profissional, o Clube de Costura Livre disponibiliza oficinas para pessoas que não estão integradas à cadeia da moda. O objetivo é dar-lhes autonomia para que executem os ajustes necessários à manutenção das roupas que já possuem.
Com limite de participação de até quatro pessoas por turno, as oficinas adquirem também um papel terapêutico, afirma Marina:
– Muita gente relata que, no momento em que se dedica a uma atividade prazerosa como a costura, esquece a semana turbulenta.
Em paralelo, o Clube de Costura Livre realiza consultorias para pequenas e microempresas, as quais abordam itens como planejamento estratégico, criação e gestão da marca e desenvolvimento de produtos.
Não basta oferecer alternativas de moda sustentável para o público. É preciso também conscientizar as crianças, como propõe a monografia Um Caminho de Sustentabilidade Para a Indústria de Fast Fashion no Brasil: o Ciclo Fechado, Trabalho de Conclusão do Curso de Graduação em Moda de Bruna Andrade, na Unisinos, em 2017.
– Ganhar a adesão das crianças é um jeito de fazer com que, no futuro, o mundo consolide melhores práticas, argumenta Bruna, com razão.
Além da investigação teórica, o trabalho acadêmico envolveu uma atividade prática – a confecção de uma coleção infantil que possibilitava novas aplicações e utilidades para as roupas. Uma calça se transformava num short, uma bolsa se transmutava num macacão, e assim por diante.
Por causa do avanço de faixa etária, a garotada já é obrigada a trocar os modelos com frequência. A proposta do TCC é que o período de uso de cada peça seja esticado mediante o ato lúdico de transformá-la.
No trabalho, Bruna também procurou identificar os meios pelos quais a indústria de fast fashion pode adotar práticas mais sustentáveis, tomando como exemplo o reaproveitamento de resíduos têxteis.
– A sugestão é que, ao invés de descartá-los, as marcas utilizem os retalhos de produção como matéria-prima a partir do processo de desfibração, esclarece Bruna.
A monografia se debruçou sobre o case das Lojas Renner – na época, Bruna trabalhava no setor de modelagem da empresa.
Coincidência ou não, algum tempo depois, a Renner criou o Laboratório de Sustentabilidade, que busca expandir o uso de tecidos recicláveis dentro de suas coleções.
Atualmente, Bruna trabalha nas Lojas Gang, que lançou em 2018 uma coleção sustentável com peças produzidas com material reciclável, como mix de garrafas PET e tecido de algodão reaproveitado.
Além disso, nesta coleção, a Gang adotou processos de produção alternativos, a exemplo de lavagem com casca de arroz, corantes de frutos e vegetais.
Essas iniciativas de empresas tradicionais indicam que a indústria da moda está tomando uma trilha mais consciente e sustentável?
– É um processo longo e complexo, mas acredito que o mundo chegará num ponto em que não haverá outra opção, diz Bruna.
Para Natália Guasso, o reposicionamento do mercado é resultado de uma transformação cultural impulsionada pelos empreendimentos de menor porte:
– É uma mudança que começou debaixo para cima com os empreendedores pressionando a indústria para que ela tenha outra atitude.
Fê Carvalho observa que, do ponto de vista do acesso à moda consciente, já existe uma maturidade de consumo entre as classes privilegiadas, o que não acontece com as camadas recentemente incluídas no mercado, principalmente em função do preço das roupas produzidas de modo mais adequado.
– Os atores sociais se encontram em estágios diferentes e é complicado inverter a lógica de consumo de forma brusca, analisa Fê, relações públicas com MBA em Estratégia e Ciências do Consumo na ESPM/RJ.
Apesar das dificuldades, Fê se mostra otimista quanto à expansão do consumo consciente, não apenas no mundo da moda.
– Com a crise de representatividade política que estamos vivendo, é preciso pontuar que o ato de consumir talvez seja a maior força de que dispomos, como sociedade, para empreender as mudanças necessárias, conclui.