Barraco cultural
Espaço colaborativo no bairro Santana sintoniza Porto Alegre com tendências inovadoras de arte, moda e conhecimento
Não é de hoje que o bairro Santana desata inéditas conexões e desbrava novos territórios.
Bem antes de ser domado para se mover em linha reta ao longo da Avenida Ipiranga, o arroio Dilúvio serpenteava entre ruas de diferentes áreas de Porto Alegre, obrigando a que se construíssem pontes para desobstruir a passagem. Uma delas ficava pouco adiante da esquina da Rua Santana com a Laurindo, nas costas do terreno em que hoje se localiza o Colégio Júlio de Castilhos. Construída na década de 1880, a pontezinha de madeira permitiu a travessia de bonde puxado a burro, propiciando o desenvolvimento do Partenon e de outros bairros da zona leste, antes de sumir do mapa da cidade no século seguinte.
Atualmente, a poucos metros desse reduto histórico está situado o Barraco Cultural, um dos primeiros coworkings de Porto Alegre, criado em abril de 2005 num sobrado da Rua Laurindo, que alojou em tempos remotos a fábrica de doces Piratini. A tendência de ambientes colaborativos só viria se alastrar na década seguinte, mostrando que, no século XXI, o bairro Santana ainda preserva a vocação de impulsionar mudanças na capital gaúcha.
No Barraco Cultural, 12 profissionais de moda, design, fotografia, ilustração e arquitetura, entre outros ofícios, compartilham espaço físico, além de experiências, recursos de trabalho e custos como aluguel e outras taxas. Frequentadores assíduos são também o Louco e a Mosca, cães vira-latas que pertencem ao casal responsável pela gestão da casa, o estilista Régis Duarte e o fotógrafo Tiago Coelho.
— Como residentes, somos diferentes uns dos outros e isso nos fortalece e alimenta. A arte nos integra, afirma Régis.
Cada residente do Barraco Cultural desenvolve suas atividades de forma autônoma, mas os profissionais constantemente interagem através de parcerias e iniciativas conjuntas. Exemplo? Recentemente, Régis, Tiago e o designer Paulo Brum produziram fotos e ilustrações de empreendedores impactados pela reformulação da área portuária do Rio de Janeiro, imagens que foram expostas no MAR (Museu de Arte do Rio) a convite do Instituto Marca Brasil e do Sebrae/RJ.
— O Barraco é um espaço vivo, democrático e de muitas trocas, onde sempre me senti muito bem acolhida, diz a fotógrafa Renata Stoduto, que passou de frequentadora a integrante do projeto, depois que montou, no início deste ano, um estúdio no segundo andar da casa.
A ideia de abrir o Barraco Cultural ganhou corpo em 2003, quando Régis retornou a Porto Alegre após temporada de sete anos em Nova York, época em que estudou no FIT (Instituto de Moda e Tecnologia), preparando-se para a atividade que passaria a exercer dali por diante. A princípio, contava com a colaboração da irmã, a produtora de elenco Bárbara Barbosa, que hoje não faz mais parte do coletivo e trabalha na escola de atores Núcleo Set.
Em 2008, Tiago passou a dividir a gestão com Régis. Formado em fotografia documental – vertente que associa narrativa às imagens – pela EFTI (Centro Internacional de Fotografia e Cinema), de Madri, Tiago acumula prêmios conquistados no Brasil, Estados Unidos, Espanha e França, entre outros países. Atualmente, além de atuar como freelancer, é professor da Unisinos.
Às segundas e terças-feiras, Tiago realiza cursos sobre fotografia no Barraco Cultural – por sinal, duas participantes dessas atividades, Francine Lasevitch e Vitória Macedo, foram selecionadas para a Mostra Coletiva do 3º Prêmio Aliança Francesa de Arte Contemporânea, em cartaz até 4/10. As iniciativas didáticas de Tiago no sobrado da Rua Laurindo são desenvolvidas em parceria com o fotógrafo Marco Antônio Filho, residente que improvisou seu atelier num sótão ao qual se tem acesso por uma escadinha de alumínio.
Régis, por sua vez, cresceu entre linhas e carreteis em Uruguaiana, na fronteira oeste do RS. A mãe, Maria Rejane, professora de Artes da rede estadual de ensino, nas horas vagas fazia vestidos para festas de casamento e bailes de debutantes. O rapaz chegou a cursar Arquitetura na UniRitter, antes de enveredar definitivamente pelos caminhos da moda. Hoje, ele ocupa uma mesa num canto do segundo andar do casarão na Santana para desenhar os moldes – a tarefa de transformar os desenhos em peças únicas e exclusivas é de uma costureira e duas crocheteiras de Caçapava do Sul.
No início, a marca Régis Duarte estava mais identificada com camisetas que exibiam detalhes em croché, mas com o tempo a produção se concentrou em blusas, vestidos e caftans. Esses últimos são peças que repousam sobre os ombros, com furos para enfiar a cabeça e os braços. Originalmente masculinas, foram criadas no Império Persa, sendo adaptadas contemporaneamente para a moda feminina como espécie de vestidos soltos.
— Digo que minhas roupas são fluidas, elas ganham espaço longe do corpo. Além disso, os caftans se prestam com perfeição à produção com malhas, tecidos com os quais mais trabalho, destaca Régis.
Outra identidade da marca é a parceria com artistas visuais, como o pintor e gravurista Britto Velho e o cartunista Rafael Corrêa, além do desenhista argentino Ariel de La Vega, os quais recebem royalties pela cessão das estampas.
As roupas de Régis estão à venda em araras no andar térreo do Barraco Cultural, junto com os vestidos autorais de Ursula Beltrame, marca reconhecida pelos trabalhos feitos manualmente em tricô. Ursula atua em parceria com o marido, o designer e artista visual Marcelo Hernandez Borba, que, aliás, produz as estampas no segundo andar do casarão:
— Antes, eu trabalhava em casa. Vim para cá porque desejava um lugar onde pudesse compartilhar vivências com outros artistas e profissionais, diz Marcelo.
No andar de cima, está também o atelier da ceramista Kazue Morita, recém integrada ao Barraco Cultural, além do Estúdio Mar, local de produção de artes gráficas e articulação cultural sob a responsabilidade de Mitti Mendonça e Wagner Mello. O Estúdio Mar organiza atividades para fortalecer a cena artística local em conjunto com outros coletivos e artistas independentes. No sábado, dia 27/7, por exemplo, foi a vez da Feira Mar-Íntima, reunindo ilustrações, fanzines, design de moda e brechó.
Por falar nisso, a promoção não só de feiras, mas também de exposições, oficinas, palestras e lançamentos de coleções de moda, entre outros eventos, movimenta a agitada agenda do Barraco Cultural. Clique nas imagens abaixo para sentir o clima.
Entre os afazeres desenvolvidos no Barraco Cultural, um dos que mais chama atenção é o consultório da psicóloga Bruna Gazzi Costa, uma vez que, aparentemente, poderia se pensar que estivesse descolado das demais atividades. Nada mais ilusório do que essa primeira impressão. Na verdade, a sala de Bruna, localizada nos fundos da casa, com um jardim anexo, expõe sua proximidade com a arte até na denominação. É intitulada Espaço Bloom: Subjetividade e Cultura em homenagem a Leopold Bloom, herói cômico do romance Ulisses, de James Joyce, personagem bastante estudado por psicanalistas como Jacques Lacan.
A estadia não é uma escolha aleatória. Bruna optou conscientemente por se instalar ali, entre outros motivos, por ter “um pezinho na arte” – está complementando a formação acadêmica com a graduação em Artes Visuais na UFRGS. Além disso, rebelou-se contra o padrão impessoal que vigora na maioria dos consultórios médicos, nos quais sobressaem as cores neutras da decoração. Não é o caso, definitivamente, do Espaço Bloom. Para se chegar até a sala de Bruna, é preciso atravessar salas e corredores com paredes de cores vibrantes, algumas delas ornamentadas com obras de arte.
— Muitos colegas defendem a ideia de que o ambiente de consulta não deve conter estímulos que influenciem o paciente. Eu discordo, até por considerar que o minimalismo também não deixa de ser uma forma de estimular as pessoas, diz a psicóloga.
De outra parte, a aparência colorida e dinâmica do Barraco Cultural reforça a proposta de “despatologizar” – em outras palavras, retirar o estigma de doença – a atividade de análise e busca de expressão que ela desenvolve junto aos seus pacientes. Bruna admite que, a princípio, teve receio de que alguns dos frequentadores do consultório, com dificuldades de sociabilização, não se adaptassem ao ambiente, mas a preocupação se desfez integralmente ao constatar que o consultório “está dando super certo”. Tanto que, às quartas-feiras, ela promove grupos de leitura sobre psicanálise, ampliando ainda mais sua atuação no ambiente multidisciplinar.
Por essas e outras, ancorado num dos bairros mais acolhedores de Porto Alegre, marcado pela inovação, o Barraco Cultural é um dos espaços que sintoniza a capital do RS com as mais avançadas tendências contemporâneas de arte, moda e conhecimento.