O anjo do Bom Fim
Conheça a história de seu Ivo, fundador da Lancheria do Parque, que acaba de reabrir após sete meses de fechamento por causa da covid-19
Pouca gente sabe que, antes de se transformar num dos restaurantes mais populares de Porto Alegre, a loja do nº 1086 da Osvaldo Aranha abrigava uma agência do Banrisul. Quem descobriu o ponto foi Neuro, sobrinho de seu Ivo, fundador da Lancheria do Parque, que, aliás, acaba de ser reaberta após sete meses de fechamento por causa da epidemia da covid-19.
O ano era 1982. Já havia algum tempo que a Esquina Maldita entrara em decadência. Os bares da junção da Osvaldo Aranha com a Sarmento Leite haviam perdido o glamour e, com isso, a fauna boêmia buscava abrigo em outras paragens. Junto com o Ocidente e o Escaler, a Lancheria do Parque estava prestes a formar um Triângulo das Bermudas, território no qual notívagos perderiam facilmente o rumo de casa.
Da calçada, Ivo esticou os olhos para ver o que havia por trás das grades da agência bancária, desativada seis meses antes – nesse meio tempo, funcionara ali por breve período um fliperama. Estava escuro lá dentro, mas deu para ver as colunas perfiladas. Além disso, ficou evidente que o recinto era comprido, quase a perder de vista.
Satisfeito com o pouco que viu, Ivo tratou de fechar o aluguel com seu Gregório, dono da imobiliária. Jorge Gueno, velho amigo, de imediato se transformou em sócio do empreendimento. O sobrinho Neuro completou o time como atendente na largada do restaurante.
Assim, no dia 9 de maio de 1982, Ivo abriu a Lancheria do Parque, atualmente um patrimônio afetivo dos porto-alegrenses, que agora está de volta ao dia-a-dia da cidade.
— Quase entrei em pânico nessa quarentena. Estou habituado com o público, não consigo ficar sem trabalhar. Dá uma tristeza. Estava com saudade! — diz Ivo José Salton, o seu Ivo, de 68 anos, criador da Lanchera, apelido carinhoso que identifica o restaurante há quase quatro décadas.
Ele é de uma família de pequenos agricultores de Encantado, no Vale do Taquari, com sete irmãos (um já falecido), sendo quatro homens e três mulheres. Aos 18 anos, viajou a Porto Alegre com o intuito de fazer um treinamento de capacitação para trabalhar em revendas da Volkswagen. Ficou hospedado num hotel da Rua General Vitorino, enquanto assistia às aulas num escritório ao lado da Casa de Estudantes da UFRGS, na Avenida João Pessoa.
— Naquele tempo, os bares do Centro matavam tudo. Ficavam abertos até tarde da noite — recorda.
De volta ao Vale do Taquari, completou o segundo grau em Lajeado, onde arrumou trabalho na Motomecânica, revenda da Volks. Algum tempo depois, voltou a tentar a sorte na Capital, desta vez, frequentando o curso pré-vestibular Mauá, em busca de uma vaga na Faculdade de Agronomia da UFRGS.
— Quando saiu o resultado do vestibular, corri até a frente da Reitoria, para ver a lista dos aprovados. Mas eu não estava lá — conta, a essa altura conformado, já que não era mesmo destino dele estudar em faculdade.
Se a academia perdeu um aluno, ganhamos – todos nós – um dono de restaurante de mão cheia. A trajetória no setor de gastronomia teve início ainda em Encantado, com o bar Colonial, em sociedade com Mairi, uma das irmãs.
De volta a Porto Alegre, trabalhou como garçom na Churrascaria Laçador, na avenida Brasil (bairro Navegantes), antes de adquirir de um português, em 1977, o Ribatejo. Era um pequeno restaurante alojado numa casa velha da Rua Ernesto Alves, no bairro Floresta. A compra do ponto foi feita em 36 suaves prestações.
— Hoje é uma zona pesada, mas naquele tempo havia movimento grande de almoço com funcionários de firmas como a Sogenalda (atacadista de alimentos) e a União Seguradora, sem falar no pessoal da antiga estação ferroviária.
Em paralelo, Ivo abriu uma segunda frente de trabalho ao lado de Lourdes, outra de suas irmãs, administrando mais um restaurante na Rua Augusto Pestana, nos costados do bairro Santana. A vontade e a disposição de trabalhar não tinham limites. Ele sonhava fincar âncora no Bom Fim. Foi quando o sobrinho Neuro achou o ponto privilegiado na Osvaldo Aranha.
É verdade que, a princípio, a Lancheria do Parque fechava cedo – o público-alvo eram os empregados do comércio do Bom Fim, de modo que, às seis da tarde, Ivo já baixava as cortinas. Mas não demorou para ele se dar conta da vocação boêmia do bairro, passando a prolongar cada vez mais o horário de fechamento, até praticamente virar a noite, em sintonia com o horário dos notívagos.
Por largo período de tempo, a Lancheria funcionou praticamente 24 horas por dia. Em função da correria, Ivo largou o bar da irmã e repassou o Ribatejo para o mesmo português de quem havia adquirido o restaurante alguns anos antes. Já o sócio Jorge Gueno saiu do negócio por considerá-lo “muito puxado”.
Com o tempo, Ivo formou uma família com os funcionários do restaurante, a maior parte vinda do interior do Estado. Tanto é verdade que, hoje em dia, a Lancheria é uma espécie de cooperativa, já que o dono transformou os colaboradores mais antigos em sócios.
— A Lancheria é a vida dele. Se largar, nem sei o que pode acontecer — diz o sócio-gerente Adilar Pederiva, que atua desde 1986 na casa.
De fato, por quase 40 anos, Ivo trabalhou diariamente no caixa da Lanchera, muitas vezes ao lado da esposa, dona Inês, com quem está casado desde 1979. Ela já demonstrou tino para o negócio em várias ocasiões. Exemplo?
Ao observar a fila do cine Baltimore ou do Bristol tomando conta da calçada da Osvaldo Aranha, em direção à Fernandes Vieira, Inês teve a ideia de vender balas azedinhas a preços convidativos. Desse modo, enquanto esperavam a hora de ingressar no cinema, os cinéfilos adiantavam a compra das balas, com valores mais em conta. Nos fins de semana, saiam até 40 quilos de azedinhas do balcão da Lancheria.
Neste ano conturbado de 2020, Ivo cumpriu a quarentena no apartamento em que vive com Inês, localizado exatamente em cima da Lanchera. De vez em quando, entrava no restaurante para acompanhar a reforma promovida para adaptar o espaço às regras de distanciamento social.
— Não consigo ficar longe, é uma vida aqui dentro — diz ele.
Com o retorno das atividades após a quarentena, a ideia é diminuir o ritmo, já que enfrentou problemas de saúde recentemente e, além do mais, faz parte do grupo de risco da covid-19 por causa da idade. Mas Ivo não planeja se aposentar tão cedo. Nem deve, porque nós sentiríamos demais a sua falta.
— O Ivo é um homem de enorme coração e plena bondade, com um profundo conhecimento da alma humana. Ele é um verdadeiro anjo do Bom Fim — diz Antônio Calheiros, o Toninho do Escaler, o lendário bar que, embaixo de jacarandás, na Redenção, também agitou a cena boêmia de Porto Alegre na reta final do século XX.
Por sinal, o Escaler vai virar livro, mas essa é uma outra história, que vai ser contada muito em breve, logo ali adiante.