Como nossos filhos
Cada vez mais, pais e filhos trabalham juntos e compartilham novos caminhos, como demonstra a agenda musical de dezembro em Porto Alegre. Gilberto Gil celebrou no dia 10, no Teatro do Bourbon Country, os 40 anos do álbum Refavela, em show idealizado e dirigido pelo filho Bem Gil. No dia 19, Caetano Veloso subirá ao palco do Araújo Viana com Moreno, Zeca e Tom Veloso. Parodiando Belchior, autor de Como Nossos Pais, hino da juventude nos anos 1970, a maré virou e hoje em dia não há nada melhor do que viver Como Nossos Filhos. Nesta reportagem, pais, mães e filhos que trabalham juntos contam como é a parceria que ultrapassa a fronteira entre gerações.
Os versos da canção Velhos e jovens, de Arnaldo Antunes e Péricles Cavalcanti, conhecida na voz de Adriana Calcanhoto, vieram à mente do músico Arthur de Faria como um sopro de inspiração naquela tarde de domingo, dia 25 de outubro de 2015.
Atirado na grama do parque da Redenção, Arthur assistia a um espetáculo de Ian Ramil (filho de Vitor Ramil) ao lado de colegas como Cláudio Levitan, Márcio Petracco e Fredi Endres, além do próprio Vitor, todos acompanhados dos filhos, como se aquele encontro ao ar livre fosse uma celebração entre gerações de músicos.
Naquele domingo no parque, Arthur decidiu mudar o rumo de sua trajetória. Por mais de duas décadas, estivera à frente do Arthur de Faria & Seu Conjunto, formado por instrumentistas em média dez anos mais velhos do que ele. A guinada consistia em fundar a Orkestra do Kaos cercado de jovens, dentre eles, dois que se criaram dentro de um círculo próximo de amizades – Erick Endres, filho de Fredi, da Comunidade Nin-Jitsu, e Lorenzo Flach, neto do maestro, pianista e compositor Geraldo Flach, falecido em 2011.
– Eu quis ser o mais velho e renovar mesmo. Então, chamei alguns dos músicos mais legais dessa nova cena de Porto Alegre para tocar comigo, explica Arthur.
Faltava integrar à Orkestra do Kaos sua filha Maria Antônia, que desde criança impressionava a quem se dispusesse a ouvi-la cantar, mas que se mostrava arredia à ideia de acompanhar o pai, apesar dos insistentes convites de Arthur.
– Preferia as rodas de violão e os festivais do Colégio Bom Conselho, conta ela.
A resistência de Maria Antônia a um compromisso mais sério com a música vinha à tona em momentos inesperados. Certa vez, Arthur e a mulher, a atriz Áurea Baptista, escutaram o som de um piano vindo da sala de estar quando saíam do elevador e se dirigiam à porta de casa. Mal a chave girou na fechadura, porém, os acordes cessaram, como se nunca tivessem ecoado no apartamento.
– Acho que temos um gnomo em casa, brincou Áurea, ao fechar a porta.
Até que, em 2016, Aline Stoffel, diretora do selo Loop Discos, numa conversa com pai e filha, como quem não quer nada, sugeriu que a menina se incorporasse à orquestra. Era tudo o que ele queria! Para surpresa de Arthur, Maria Antônia, finalmente, concordou com a proposta.
– É que, até ali, a música era o “trabalho do pai”, esclarece a garota de 19 anos, citando a carga de responsabilidades que, de algum modo, retirava parte da espontaneidade e do prazer do ato de cantar.
No momento, a principal dificuldade é conciliar as atividades da banda com as aulas do segundo semestre do curso de Psicologia na PUC/RS. No ambiente musical, quase tudo rola à noite, seja show, ensaio ou entrevista, período em que também acontecem as aulas. Ela planeja roteiros para conciliar o limite de faltas com os shows em outras cidades, ao passo que os colegas da orquestra, quando necessário, atrasam o começo dos ensaios para esperar que ela chegue da faculdade. Só que o arrego acaba aí: não há tratamento diferenciado por ser a filha do maestro.
– Meu pai nunca me deu privilégios. Às vezes, até tenho vontade que ele dê, é óbvio..., ela diz, soltando risadas.
– Nem precisaria! Ela canta demais!, comenta o pai, orgulhoso.
E quando alguém pergunta por que Maria Antônia não larga tudo para se dedicar exclusivamente à atividade musical, a resposta está na ponta da língua: sim, ela moveria montanhas pela música, mas não agora. No momento, a faculdade é prioridade.
Ela tem até uma teoria para justificar essa opção: cada geração busca sempre algo que se contraponha à maneira com que foi criada.
– Para a minha geração, o que faltou foi estabilidade e é isso que a psicologia me dá. Vi meus pais lutarem muito na vida como artistas, e não vou passar esse perrengue, arremata ela, decidida.
Arthur está mesmo levando uma vida de saltimbanco, desde que deixou de trabalhar na ULBRA, onde bateu ponto durante 23 anos – nas rádios Felusp, Pop Rock e Mix e na Ulbra TV. De quinta a domingo, toca ao vivo, no Teatro Sesc Vila Mariana, em São Paulo, a trilha sonora que ele próprio compôs para a peça Selvageria, dirigida por Felipe Hirsch, oitavo espetáculo da Companhia Ultralíricos, da qual faz parte.
No resto da semana, ele fica em Porto Alegre, o que possibilita que, na quarta-feira, dia 13 de dezembro, esteja com Maria Antônia e os demais integrantes da Orkestra do Kaos no palco do Gravador Pub, na zona norte da cidade, em espetáculo que terá ainda a participação de Marcelo Delacroix. Ótima chance de conferir o DNA do talento musical desta família!
punks eruditos
Eduardo Normann e Mariana Kircher se conheceram em 1993 no Garagem Hermética, reduto da comunidade underground de Porto Alegre no final do século passado. Nas duas décadas em que foram casados, criaram bandas que se destacaram no circuito alternativo da cidade, como Space Rave, The Clones, Planondas, Dating Robots e Cine Baltimore. Estão separados há quase cinco anos, mas continuam muito amigos e ainda trabalham juntos, de uns tempos para cá na companhia do filho Kim, de 22 anos.
Como não é difícil imaginar, desde cedo Kim ganhou intimidade com os instrumentos. Aos cinco anos, o menino já se prontificava a tocar bateria nos ensaios realizados numa peça do apartamento improvisada de estúdio, que hoje, por sinal, é o quarto do rapaz.
Na adolescência, enquanto os pais discotecavam no Beco e em outras casas noturnas, ele ficava no quarto do apê, da meia noite às seis da manhã, grudado no contrabaixo, totalmente concentrado na tarefa de aprender a tocar as canções dos Beatles que escutava no You Tube. Aos 18 anos, começou a participar de shows e gravações de discos ao lado de Edu e Mariana, mostrando desenvoltura também com a guitarra e os teclados.
A capacidade de concentração explica, em parte, o caminho que Kim escolheu. Ao contrário dos pais, adeptos de uma atitude punk, espontânea e transgressiva, ele busca deliberadamente uma postura metódica, que privilegia o estudo de teoria e até se aproxima em certos momentos das peças eruditas. Não por acaso, começou a estudar música no Centro Universitário Metodista do IPA.
– Éramos mais do “vamos lá, vamos fazer”, sem pensar no que ia acontecer depois, diz Mariana. Ela acrescenta: – Claro, tínhamos referências que buscávamos em discos, fitas cassetes, livros, revistas e fanzines, mas sem a dedicação que ele demonstra para conhecer os mais variados gêneros de música.
– De certo modo, eu fiz isso para me contrapor aos meus pais, admite Kim, com sinceridade. Em seguida, complementa, pensativo: – No início, era algo inconsciente, mas depois percebi que, a partir da influência deles, eu tinha conseguido entender como funciona a música, o que me deu a base para buscar o que realmente me toca no universo musical.
As diferenças não atrapalham, pelo contrário, ajudam – e muito! – na hora de ligar o amplificador e entrar no estúdio ou subir no palco.
– Tocar com meus pais é massa! A comunicação é fácil e dinâmica, diz Kim.
– A gente tem liberdade de falar o que pensa, atesta Mariana. Ela conta uma novidade: – Agora o Kim está compondo e quer que eu faça o vocal.
De fato, Kim está compondo canções num formato já projetado para se moldar ao timbre de voz e ao estilo de interpretação da mãe. E ele pensa em todos os detalhes:
– Tento trabalhar como um maestro – essa é a minha concepção de música e quero expandi-la cada vez mais. Gostaria de deixar uma obra, afirma.
Atualmente, Eduardo trabalha de segunda a sábado no Dub Studio Cidade Baixa. Três dias por semana, conta com o reforço de Kim, que ajuda no batente e vai se ambientando cada vez mais nos espaços que congregam a grande família do rock and roll.
E quando Kim abandonar o ninho? Eduardo acha natural que o filho busque novos rumos ali adiante:
– Adoramos tocar com o Kim, mas é legal para todo mundo que ele cresça e desenvolva novas parcerias, até para alimentar a música que fazemos.
Antes disso, em 16 de dezembro, o público terá a oportunidade de rever Edu, Mari e Kim no bar Oculto, na Cidade Baixa, em show da Space Rave revigorada com a presença de Bibiana Graeff, que fazia parte da formação original da banda nos anos 1990. Não perca!
a arte do reencontro
Em certos casos, compartilhar o ofício é também uma forma de reconectar caminhos de vida.
É o que está acontecendo com Marco Pilar, um dos mais conceituados artistas gráficos do Sul do País, com um método de trabalho minucioso e exaustivo em busca da perfeição do traço, e a filha Ingrid Vanmalli, que começa a navegar pelas artes visuais sob o impulso de uma criatividade que emerge espontaneamente de seu espírito jovem.
Os estilos e a metodologia de criação são quase antagônicos, mas a linguagem da arte é parte do processo de reaproximação entre eles, que se afastaram durante certo tempo por conta da separação dos pais de Ingrid.
– Eu sempre curti desenhar, desde criança, era algo que gostava de fazer, até por ver de perto o trabalho de meu pai, conta Ingrid. Ela toma fôlego e prossegue: – Depois, a gente se afastou e fui deixando isso meio de lado. De um tempo para cá, estamos nos reaproximando e, nesse processo de estar de novo junto de meu pai, a arte voltou naturalmente. É um ponto em comum que existe entre nós.
Há pouco tempo, Ingrid espalhou desenhos de rabos de baleias, produzidos com a técnica do lambe-lambe, uma vertente da arte de rua, em paredes e muros de Porto Alegre, além de inventar rótulos de cerveja artesanal a pedido de amigos empreendedores. Antes, chegou a cogitar outra profissão:
– Eu sempre fui muito criativa e preciso colocar isso em algum lugar. Comecei a cursar Jornalismo, mas me decepcionei e mudei de área.
Ao perceber o talento da filha para o desenho, Marco incentivou que ela se transferisse para o Instituto de Artes da UFRGS, embora ele próprio tenha sido na juventude um autodidata convicto, influenciado por artistas ligados à pop art como Milton Glaser e Charles White III.
– Eu tinha uma postura antiacadêmica e acreditava que a pintura estava morta, sentencia ele, sem mais delongas.
No momento, Marco se dedica à tarefa de organizar o acervo que construiu ao longo de meio século (“Comecei precoce”, ressalta ele) para a publicação do livro Pop et Pixel, que está em fase de montagem. Já no dia-a-dia de Ingrid, as aulas do segundo semestre do curso de Artes Visuais se dão em paralelo às atividades do Namastê – Centro de Meditação Ativa e Bioenergética, na Rua da República, na Cidade Baixa. Ela anda encantada também com a arte da tatuagem.
Quanto às diferenças de estilo {veja acima uma sequência com dois trabalhos de Marco e um dos rabos de baleia colados por Ingrid em paredes}, fica cada vez mais evidente que elas ajudam a abrir janelas e intercâmbios:
– Ingrid é menos presa à técnica, eu sou mais rígido. Talvez ela também seja rígida, mas do jeito dela ou de uma maneira que à primeira vista não pareça. Outro dia, dei uma aula básica de aquarela para ela, nem sei se serviu para alguma coisa...
– Serviu, sim, pai, rebate Ingrid, com o rosto sério. E sintetiza: – O trabalho do pai é diferente do que eu faço, mas sou fã. Para mim, é uma referência de alguém que sabe muito bem o que faz.
Parceria desafiadora
A união entre pais e filhos não se limita à arte. E, quando eles se arriscam juntos como empreendedores, a confiança que um deposita no outro é geralmente a principal vantagem da colaboração familiar.
É o caso do administrador de empresas e professor da PUC/RS, Ricardo Vital de Souza, que há dois anos divide não apenas nome e sobrenome com o filho, mas também a responsabilidade pela gestão da cervejaria De Bandeja.
Na perspectiva de Ricardo Vital de Souza Filho, é proveitoso contar com a experiência profissional de um executivo que trabalhou em corporações como Taurus, Madef e Kleper Weber. Em contrapartida, o rapaz estimula o pai a adotar uma atitude de desapego:
– O que meu filho agrega é a coragem de empreender, um tema diante do qual eu sempre reagi com cautela.
A De Bandeja surgiu há dois anos como distribuidora de bebidas. Com apoio da Factory Beer, de São Leopoldo, passou a fornecer chope artesanal a domicílio para festas de casamentos, aniversários, formaturas etc. Um ano depois, incorporou o serviço de beer truck com uma Kombi equipada com três torneiras, que abastecia eventos promovidos em praças e ruas da cidade. Há seis meses, os empreendedores abriram um ponto fixo no Pátio 414 – complexo de lojas na Rua Barbedo, no Menino Deus –, onde servem chope e cerveja artesanais das 14h às 22h.
Antes que vencesse o primeiro aluguel, pai e filho se jogaram no trabalho pesado de pintar paredes, lixar piso e montar balcão e prateleiras. “Foi um mês respirando poeira”, recorda Ricardo Filho. Está tudo indo bem, mas fica a pergunta: puxar a rotina familiar para dentro do negócio não traz dificuldades? Responde primeiro o filho:
– Quem olha de fora acha que é tudo maravilhoso, mas é claro que existem divergências, como é natural em qualquer família. Pertencemos a diferentes gerações e isso se reflete no modo como cada um acha que deva ser organizado o dia-a-dia da cervejaria.
– É um desafio diário para nós dois, concorda o pai, que se diz o “algodão entre os cristais” nos momentos de conflito por ser mais experiente e também pelo temperamento menos impetuoso. Ele compara: – Geralmente, ao final do expediente a pessoa vai para a casa e a relação profissional cessa até o dia seguinte. Mas quando se misturam trabalho e vida familiar, a convivência se intensifica e, com isso, o desgaste é maior.
Nada disso impede que se chegue a um consenso, até porque o pai é o principal investidor do negócio e, como frisa Ricardo Filho – com bom humor –, escutar o que os investidores têm a dizer é uma política aconselhável para qualquer empresa.
Dança em família
Há quem consiga juntar arte e negócio em família por toda a vida. Criada em 1972, a Escola de Dança Moderna Vera Guerra é hoje administrada pelas filhas da fundadora, Graziela e Anelise Guerra, que praticamente nasceram de sapatilhas. A escola trabalha com jazz, dança moderna e contemporânea e folclore de projeção.
Vera Guerra deu aulas em salas alugadas no Bom Fim durante os anos 1960 até adquirir espaço próprio no início da década seguinte na Avenida Osvaldo Aranha. Graziela e Anelise ajudam a mãe, como monitoras das turmas, desde os 12 ou 13 anos de idade.
Como ainda não existia curso universitário de dança naquele tempo, elas cursaram Educação Física na UFRGS, seguindo um caminho trilhado, aliás, pela própria mãe anos antes. Ao mesmo tempo, as meninas aprendiam balé clássico com João Luiz Rolla, primeiro bailarino do sexo masculino da capital gaúcha, que na década de 1930 havia deixado o atletismo – praticou corrida com obstáculos com a camisa do Internacional – para se dedicar à dança.
– Ele batia com uma varinha em minhas pernas para que eu fizesse os movimentos corretos. Até hoje tenho trauma disso, diverte-se Graziela.
Formadas, as duas irmãs passaram de imediato a dar aulas na escola da mãe. Vera dizia em tom de brincadeira:
– Vocês nunca precisarão ir atrás de emprego.
De fato, as meninas encontraram tudo pronto – escola montada com turmas fiéis – e só se deram ao trabalho de dar prosseguimento à trajetória iniciada pela mãe, que aos poucos passou a delegar a prática docente às filhas. Na década de 1990, assumiram também a parte administrativa da escola.
Bem que ambas haviam deixado uma porta aberta para outras opções profissionais ao cursarem Biologia na PUC/RS em paralelo à Faculdade de Educação Física. Anelise foi a primeira a desistir:
– Não consigo me imaginar fazendo outra coisa senão a dança.
Como ela tinha sido reprovada no teste físico (arremesso de pelota!) para ingressar na Educação Física, precisou esperar uma nova oportunidade até o vestibular do ano seguinte. Neste meio-tempo, cursou Biologia e treinou na Redenção, atirando pelotas ao longe, com a ajuda do pai, Irineu Guerra, fiscal da Previdência Social. Alcançado o objetivo, deixou de lado as ciências biológicas.
Já Graziela foi um pouco mais longe, graduando-se em Biologia e se inscrevendo no mestrado em Entomologia, mas deu meia-volta quando foi avisada pelo professor-orientador de que precisaria dedicar curso integral às aulas no campus do Vale da UFRGS.
– Ainda bem que não passei o resto da vida estudando coleópteros {ordem dos insetos à qual pertencem os besouros}, lepidópteros {borboletas} e himenópteros {vespas e abelhas}, brinca ela.
Desde 1999, a escola funciona na Rua Engenheiro Vespúcio de Abreu, no bairro Santana. Vera está afastada do dia-a-dia da escola, mas faz questão de participar dos espetáculos de final de ano, subindo ao palco com a turma da terceira idade, como aconteceu no último fim de semana de novembro.
– É aquela história de vida de artista. A dança é mais que uma profissão, é paixão, conclui Graziela.
P.S.: E eu, que não sou bobo nem nada, também trabalho com minha filha, Luísa Rosa, que está produzindo junto comigo este site.