Na velocidade da luz

No limite entre ficção e realidade, as fotografias de Fernanda Chemale retratam 30 anos da cena cultural de Porto Alegre

Fernanda Chemale em foto de Juan Esteves, de 2012

Fernanda Chemale em foto de Juan Esteves, de 2012

“Tudo se faz por contraste. Da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia”.

A frase de Heráclito, filósofo que viveu na Grécia Antiga, cerca de 500 anos a.C., ajuda a compreender o estado de atenção que produz as fotografias ficcionais da artista visual Fernanda Chemale.

É um estágio de consciência em que a pessoa está “distraída, com a mente solta” e ao mesmo tempo pronta para “ver e capturar”.

A partir deste ponto entre polos aparentemente opostos, tão preciso quanto indefinível, Fernanda clica o botão de sua máquina e traz à tona personagens e cenários que refletem de modo vigoroso e original o pulsar e o movimento incessante da cena urbana contemporânea nos últimos 30 anos.

Não são figuras facilmente reconhecíveis. Com duas dezenas de exposições individuais e participação em outras 20 mostras coletivas, além de três livros publicados, Fernanda se move por duas vertentes – autoral e documental – com a intenção deliberada de surpreender o público.

Para isso, ao registrar a paisagem da cidade e da natureza, abre espaço com frequência para estranhos enquadramentos, distorções, superposições, geometrias casuais e desenhos ilógicos.

– Uma tendência que caracteriza o estilo da minha fotografia é transformar a realidade em ficção. A imagem final, capturada de um referencial concreto, é desconectada de sua realidade para se transfigurar numa outra verdade, com novo significado.

Em outras palavras, ao relativizar a fronteira entre realidade e ficção, Fernanda abre novas possibilidades narrativas. O espectador é desafiado a decifrar as imagens.

É uma fotografia paradoxal e subversiva, como demonstra a sequência com flagrantes das bandas Replicantes, Facção Brasil e Defalla, da série Rock Luz Velocidade, de 1990:

Nascida em Osório, perto do mar, Fernanda viveu uma infância "itinerante e telúrica", com parreiras e macieiras no quintal, entre idas e vindas pela região missioneira, antes da mudança definitiva para Porto Alegre.

Esse paraíso idílico se rompeu quando a febre aftosa exterminou a maior parte do gado do pai, José Reduzino, o Neno. Menos mal que, na capital, ele arrumou emprego como técnico eletrônico na CESA (Companhia Estadual de Silos e Armazéns). A separação dos pais marcou o que Fernanda classifica como a “terceira itinerância” da fase inicial de sua vida. Dela restaram poucas recordações impressas – desgostoso com o desenlace, Neno rasgou quase todas as fotografias que se referiam ao casamento com Marilu, mãe da fotógrafa.

– Hoje em dia, as pessoas deletam as imagens nas redes sociais, comenta Fernanda.

Filha única, a moça cresceu num ambiente inspirador de arte e delicadezas, embalado pelo bandonéon do pai e o piano da mãe.

Marilu – professora de Artes Industriais, que chegou a dirigir o Colégio Visconde de Pelotas, no bairro Auxiliadora –, urdia peças de artesanato de cerâmica e porcelana. O talento de moldar o mundo com as mãos se estendia a tias e avós, com seus tricôs, crochês e flores artificiais.

– Havia sempre um atelier na casa de alguém, onde as mulheres da família trocavam ideias e vendiam coisinhas para ganhar um dinheiro extra.

Feira hippie em Ipanema

Fotopintura de Titus Riedl para a série Rastros D’Eus (2017), sequência de autorretratos e imagens de Fernanda produzidas por outros fotógrafos

Fotopintura de Titus Riedl para a série Rastros D’Eus (2017), sequência de autorretratos e imagens de Fernanda produzidas por outros fotógrafos

A certa altura, uma das tias paternas, Sônia, se transferiu de mala e cuia para o Rio de Janeiro.

Formada no curso de Folclore da Escola Nacional de Música, da UFRJ, Sônia Chemale havia feito par em sua juventude com Paixão Cortes em shows de dança gauchesca. Como pesquisadora, ela trabalhou muito para a revitalização de rituais de congadas como a Maçambique de Osório, tradição afro-católica praticada por negros devotos a Nossa Senhora do Rosário no litoral norte do RS.

Não por acaso, quem for a Osório encontrará o Largo dos Estudantes Sônia Chemale, área de lazer com palco e espaço para diversão de jovens e crianças, junto à Biblioteca Municipal.

No Rio de Janeiro, a tia de Fernanda alternava a vida de professora e pesquisadora da UFRJ com o atelier no apartamento da Rua Constante Ramos, em Copacabana, onde produzia peças de artesanato que vendia na feira hippie da Praça General Osório, em Ipanema.

Fernanda embarcava na onda riponga da tia ao passar as férias escolares na Cidade Maravilhosa – uma lembrança dessa época é a do quadro com a fotografia autografada da cantora Wanderléa, amiga de Sônia, pendurado na parede. A sobrinha não demorou a criar sua própria coleção de colares e pulseiras infantis para igualmente vender na praça dos hippies e, desse modo, arranjar um dinheirinho.

Enquanto isso, em Porto Alegre, a mãe – seguindo a tradição familiar – também havia montado um atelier no apartamento da Avenida Cristóvão Colombo, para produzir bolsas e cintos de couro. Num cantinho, Fernanda criou um anexo para inventar suas bijuterias.

– Com isso, não dependia mais da família para comprar cigarros e ter as minhas coisas.

Quando ingressou no curso de Publicidade da Famecos, na PUCRS, Fernanda se aproximou do mundo das imagens ao iniciar namoro com o colega Fernando Mantelli, hoje professor da Unisinos. Na faculdade, Mantelli fazia parte de um grupo de alunos que produzia vídeos e curtas-metragens.

– Eu batia os roteiros na máquina de escrever, produzia os filmes. Estava apaixonada e achava tudo que ele fazia maravilhoso, recorda ela.

Para se sentir útil e integrada aos jovens cineastas, ela concluiu que precisava ser "especialista em algo". 

Então, se matriculou num curso de Fotografia do SENAC com 80 horas/aula. Encantada com as múltiplas possibilidades que descobriu com a aplicação da técnica fotográfica, não teve preguiça de repetir o curso em outras duas edições, totalizando 240 horas/aula, só para ter a chance de continuar trabalhando no laboratório.

Essa vocação para a inovação e o experimentalismo se manifestaria fortemente em trabalhos futuros, como a série ElefanteCidadeSerpente, originalmente exposta na Galeria dos Arcos da Usina do Gasômetro, transformada em livro em 2008.

Veja alguns fragmentos de ElefanteCidadeSerpente:

Através de Mantelli, Fernanda conheceu Rogério Brasil Ferrari, diretor de Vicious, curta-metragem inspirado na figura do sex pistol Sid Vicious, encarnado por Júlio Reny, figura mítica do underground do Sul do País.

Em 1988, Vicious ganhou os prêmios de Melhor Atriz (Márcia do Canto) da 11ª Jornada de Cinema e Vídeo do Maranhão e Melhor Montagem de Curta Gaúcho (Giba Assis Brasil) do 16º Festival do Cinema Brasileiro de Gramado.

Até hoje, há quem acredite ter sido esta uma das primeiras produções da Casa de Cinema de Porto Alegre. Na verdade, a produção é da Enygma Televisão e Cinema, de Rogério Ferrari e Adriana Borba.

Dois possíveis motivos para a confusão, de acordo com Giba, sócio da Casa de Cinema: (1) Ele montou o filme. (2) A Casa de Cinema distribuiu Vicious na série Curtas Gaúchos em VHS, em 1998.

Seja como for, Fernanda participou das filmagens como produtora de set. Certo dia, a pessoa responsável pelas fotografias de cena não apareceu e ela assumiu o posto.

Nascia ali uma fotógrafa profissional. Das melhores que já vimos.

Estreia no Porto de Elis

Wander Wildner, um dos artistas mais fotografados por Fernanda: "Ele me adotou lá atrás. Depois, envelhecemos juntos", diz ela.

Wander Wildner, um dos artistas mais fotografados por Fernanda: "Ele me adotou lá atrás. Depois, envelhecemos juntos", diz ela

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A seguir, ela trabalhou com publicidade e assessoria de imprensa, mas os rumos que deveria seguir na profissão se tornariam mais claros quando se separou do namorado:

– De repente, me vi sozinha e insegura, mas ao mesmo tempo me descobri como artista.

A vida de solteira fez com que frequentasse locais como o Porto de Elis, na subida da Avenida Protásio Alves, um dos pontos mais agitados da boemia da cidade no final da década de 1980.

Ela começou a fotografar os shows da casa e, em apenas seis meses, tinha pronta uma série de retratos representativos do rock gaúcho. Boa parte dessa produção abasteceu a primeira exposição individual de Fernanda, Rock Luz Velocidade, realizada ali mesmo, no Porto de Elis, em 1990.

O trabalho da fotógrafa estreante chamou atenção, em primeiro lugar, pelos efeitos alcançados com a técnica de alteração da velocidade do registro das imagens, como vimos na sequência com bandas de rock exibida mais acima, no começo da reportagem. Ela explica:

– Os rostos dos músicos que cantam e se movimentam no palco são captados em baixa velocidade. As fotos foram realizadas na contramão dos fundamentos da fotografia, “estragando e errando”, de modo que o erro permite que a imagem figurativa se transforme num personagem de ficção. 

Além disso, Fernanda batizou cada uma das fotos com nomes relacionados à mitologia, à ficção científica ou à cultura pop, de acordo com as características que ela via no artista em foco. Para se ter ideia, Wander Wildner é o Coringa; Edu K, aparece como Ogue, gigante rei dos amoritas, morto por Moisés na batalha de Edrei; e, como única representante feminina da série, Luciana Tomasi, vocalista e tecladista dos Replicantes, é Ninti, deusa sumeriana responsável pela criação da vida.

Capa do primeiro livro de Fernanda

Capa do primeiro livro de Fernanda

A série Rock Luz Velocidade foi também exposta no Aeroanta, no Largo da Batata, em Pinheiros, um dos templos do circuito alternativo de São Paulo nos anos 1980 e 1990, sempre aberto a novidades – foi o primeiro palco em que se apresentou, por exemplo, Marisa Monte.

Com o sucesso da exposição, as portas do cenário musical se abriram para Fernanda. Ela passou a ser chamada para ilustrar capas de discos e cartazes de divulgação de shows. É dela a imagem que ilustra, por exemplo, o primeiro disco solo de Wander, que havia saído dos Replicantes para tocar acompanhado pela banda Sangue Sujo. 

Aliás, a primeira fase da produção que retrata o cenário musical de Porto Alegre serviu de matéria-prima para o livro Tempo de Rock e Luz, de 2004 – como todas as obras de Fernanda, a edição é da autora com financiamento do Fumproarte (fundo público de incentivo à cultura da prefeitura de Porto Alegre, que se encontra atualmente suspenso por falta de verbas).

"Em suas imagens, Fernanda constrói uma espécie de autobiografia enquanto espectadora, personagem e narradora do clima que nutriu essa época”, escreveu o historiador e crítico de arte Alexandre Santos a respeito de Tempo de Rock e Luz. Por muito tempo, a lente de Fernanda continuaria focada na evolução da cena local do rock and roll

Em 2012, quando o maestro Tiago Flores convidou cerca de 30 artistas da música popular para acompanhar a Orquestra de Câmara da ULBRA nos Concertos Dana. Fernanda pediu permissão para fotografá-los nos camarins. Entre eles, estavam King Jim, Frank Jorge, Jimi Joe, Biba Meira, Julia Barth, Carlos Gerbase, Márcio Petracco, Bebeto Alves, Hermes Aquino, Carlos Eduardo Miranda, Cláudio Heinz, Flu e Nei Van Soria, entre outros. 

Como resultado, lançou a série Retratos Clássicos do Rock Gaúcho, que foi exibida inicialmente no Festival Internacional de Fotografia Paraty em Foco (RJ). Em 2016, a instalação cruzou o Oceano Atlântico para participar do Festival Encontros da Imagem, em Braga, Portugal.

Clique abaixo para conferir as fotos de Edu K e Júpiter Maçã:

Medusa no Largo dos Açorianos

Ninguém pense que, ao retratar a cena cultural de Porto Alegre, Fernanda esteja confinada ao universo roqueiro.

Em Desordem (2015), outra série que se transformou em livro, “artistas vetoriais”, como ela os define, são fotografados em locais icônicos da cidade, em sintonia com os poemas de Gisela Rodriguez.

Como em outros trabalhos de Fernanda, figuras conhecidas do público porto-alegrense incorporam personagens fictícios ou mitológicos. A diferença é que, neste caso, ela contou com uma produção requintada, que mobilizou profissionais de diferentes áreas, como figurino, maquiagem e cenografia, sob a direção de Liége Biasotto.

No total, são mais de 20 personalidades retratadas, entre elas, o cineasta de animação Otto Guerra, clicado como Chinaski, alter ego do escritor Charles Bukowski, em plena Avenida Bento Gonçalves; a radialista Kátia Suman, que aparece como Medusa, no Largo dos Açorianos; a atriz Elisa Volpato vestida de Barbie, na Igreja das Dores; além do jornalista e historiador Eduardo Bueno, o Peninha, como Prometeu em Fahrenheit (referência ao filme Fahrenheit 451, dirigido por François Truffaut em 1966), na Vila Flores.  

O design gráfico do livro é de Flávio Wild e os textos de apresentação foram elaborados pelo escritor Paulo Scott e o curador e pesquisador de fotografia Titus Riedl. A série foi a princípio montada na Galeria de Arte Tina Zappoli, de Porto Alegre, e depois no Ateliê da Imagem FotoRio (RJ).

Veja a seguir algumas imagens de Desordem, com a poetisa Gisela Rodrigues (como Ophelia, na Vila Assunção), os atores João Carlos Castanha (Casulo, no SAFE Park Duque de Caxias), Luiz Paulo Vasconcellos e Sandra Dani (Ulisses e Penélope, da Odisseia, de Homero, na Redenção), e a artista plástica Rochele Zandavalli (como a protagonista de Alice no País das Maravilhas, de  Lewis Carroll, fotografada na Biblioteca Pública do Estado do RS):

Outro destaque da obra de Fernanda é a instalação A Rua Suspensa (que ilustra a capa do portal Rua da Margem) sobre a Travessa dos Venezianos, rua estreita e pequena localizada entre a Lopo Gonçalves e a Joaquim Nabuco, na Cidade Baixa.

As 17 casinhas populares, de pé-direito alto e janelas e portas que se abrem diretamente para a rua, foram construídas no início do século passado para acolher populações de baixa renda (jornaleiros, consertadores de guarda-chuva e carvoeiros). Tombadas pelo setor de patrimônio histórico da prefeitura, estão atualmente ocupadas principalmente por restaurantes e ateliês de arte.

A Rua Suspensa mostra a arquitetura e o cotidiano da Travessa dos Venezianos

A Rua Suspensa mostra a arquitetura e o cotidiano da Travessa dos Venezianos

A série continha caixas suspensas com fotos duplas em linhas paralelas à altura dos olhos, possibilitando que o espectador circulasse entre elas, como se observasse as duas calçadas. Numa das faces, as caixas exibiam as fachadas coloridas dos prédios. Na outra, os moradores em ações cotidianas.

A instalação integrou originalmente a exposição coletiva Travessa dos Venezianos – Construção no Tempo, com curadoria de Zorávia Bettiol (viúva de Vasco Prado), concebida para as comemorações dos 70 anos da Associação Chico Lisboa, em 2008.

Alguns personagens foram retratados outra vez para reedição da mostra em 2013 no IEAVi (Instituto Estadual de Artes Visuais) na Casa de Cultura Mario Quintana.

Não poderíamos encerrar este texto sem mencionar as joias autorais da artista visual, uma extensão do trabalho que aprendeu com a mãe e as tias ainda na adolescência. Fernanda produz colares, brincos e anéis estampados com fotografias de sua autoria, que mostram retratos de amigos ou detalhes da arquitetura da capital do RS, como cúpulas e vitrais, além de cenas de viagens e outras imagens impressas em papel fotográfico e coladas nos acessórios.

As peças estão expostas em pontos de venda de museus e centros culturais de Porto Alegre, como Margs. Fundação Iberê Camargo, Santander Cultural e Casa de Cultura Mario Quintana, além de lojas como Azul Cobalto e Beatnik. No Rio de Janeiro, podem ser adquiridas em loja anexa ao Real Gabinete Português de Leitura, apontada como uma das 20 bibliotecas mais bonitas do mundo em pesquisa publicada pela revista Time em 2014.

 

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Paulo César Teixeira