De magia e movimento
a cidade transversa dos móbiles de nelson de magalhães
A figura de sardas no rosto e sorriso infantil é de Leão, mas tem abraço de urso. Afinal, o artista plástico Nelson de Magalhães agarra a vida com a força e a urgência de uma fera.
Nelsinho – como os amigos o chamam – pertence a uma rara estirpe de artistas, a dos que não rasgam a coerência em nome do conforto. Tem uma virtude essencial, que anda esquecida: a sinceridade.
Gostem ou não, ele escolhe por conta própria suas fontes de inspiração, como se pode comprovar na mostra de móbiles (esculturas aéreas) que está expondo no Nossa Cara – Butique Café, na Rua Felipe Camarão, no Bom Fim.
Formas geométricas suspensas por linhas de náilon – iguais às que se usa para costurar sapatos – se movem ao menor sopro do vento, que se insinua por uma fresta de porta ou janela.
Como um poeta da forma, Nelsinho sugere movimentos de leveza e harmonia.
O rigor do acabamento salta aos olhos: encaixadas umas dentro das outras, as partes não se tocam. Giram em seu próprio eixo, numa rotação de 360º.
Acostumado a tirar o máximo proveito do que é efêmero e precário, até pouco tempo atrás recortava as peças produzidas em MDF (madeira de fibra) com serra elétrica tico-tico.
Só recentemente passou a usar a CNC (sigla de Computer Numeric Control), máquina digital que atua com precisão milimétrica, disponibilizada no Galpão Makers, um espaço coletivo de criação e produção de pequenos empreendedores do 4º Distrito da capital gaúcha.
As madeiras recortadas são protegidas da umidade com um verniz transparente e depois coladas com Super Bonder e pintadas com tinta acrílica.
Rigor e fantasia
Paralela à precisão dos cortes, a fantasia é outro lema que adotou desde quando decidiu produzir arte.
– O foco da arte é a linguagem. É preciso experimentar, inventar sempre. O imaginário é fundamental!
A imaginação de menino vem à tona ao recordar curiosidades precoces, que o assolavam quando observava o avô Ovídio Magalhães esculpir miniaturas de bondes e de personagens populares da capital gaúcha. Ou quando ia ao cinema e fazia a si próprio perguntas irrespondíveis: “Quem nunca quis olhar atrás da tela para ver se tinha alguém ali?”, indaga, sorrindo.
As esculturas de Nelsinho habitam uma “cidade transversa”, lugar imaginário onde reina o que há de mais ancestral.
– O artista é como um médium, que tem a responsabilidade de buscar a verdade do ser humano e ao mesmo tempo inventar o que não existe ainda.
Veja abaixo uma sequência com os móbiles de Nelson de Magalhães:
Há algum tempo, o apartamento em que vive e que também serve de estúdio na Rua da Azenha sofreu um assalto. Em seguida, Nelsinho recebeu a visita de um soldado da Brigada Militar para preenchimento do Boletim de Ocorrência.
Ao se movimentar por entre os móbiles pendurados no teto, o brigadiano se mostrou curioso e não se conteve:
– Diz uma coisa: esse lugar é sagrado?
Nelsinho assegura ter sido este um dos maiores elogios que recebeu na vida.
– O comentário dele puxou um pino na minha cabeça, principalmente por ter vindo de uma pessoa simples, acostumada a um cotidiano de violência, que mesmo assim demonstrou generosidade e sensibilidade.
Caldo cultural
A obra de Nelsinho é uma leitura particular de múltiplas influências, que partem da primeira metade do século 20.
Remete a figuras do construtivismo, como os russos Alexander Rodchenko e Vladimir Tatlin e o americano George Rickey; ao padrão geométrico do holandês M. C. Escher, que produz ilusões de ótica; e à pintura metafísica do grego Giorgio de Chirico, precursor do surrealismo.
Mas não é só. É possível identificar ainda a influência da bauhaus e a busca do insólito que caracteriza o dadaísmo, na expressão de artistas como o alemão Georg Grosz.
Acima de tudo, a criação de Nelsinho presta tributo ao americano Alexander Calder, inventor de móbiles como expressão artística.
– Um caldo cultural, reconhece ele.
Já montou exposições em locais como o Espaço Cultural da ESPM/Escola Superior de Propaganda e Marketing, o Centro Universitário Ritter dos Reis, o Instituto de Artes da UFRGS, a Casa de Cultura Mario Quintana e a Usina do Gasômetro, também em bares como o Zeelig e o Dr Jekyll, além de expor o trabalho em meio ao redemoinho de gente no segundo piso do Mercado Público de Porto Alegre.
– Com orgulho, me submeto a júri popular, brinca.
Para se ter ideia, os móbiles de Nelsinho já foram parar no Hospital Psiquiátrico São Pedro, num tempo que a instituição ainda abrigava parcela considerável de pacientes diagnosticados como doentes mentais. Foi sugestão de uma amiga, enfermeira, com intenções terapêuticas.
A predileção por locais considerados profanos para os padrões convencionais das artes visuais não é casual. É a tentativa de sair da “neblina”, como ele define a paisagem da arte contemporânea, que perdeu "coerência e consistência". A dissolução dos padrões estéticos clássicos soltou as amarras da criação, mas desembocou num beco sem saída.
– Abriu demais a goleira, explica.
Parte da trajetória de Nelsinho como artista plástico está contada no programa Móbile, da TV Cultura, de SP, exibido em 2008 (veja aqui).
A beleza dos números
A arte de Nelsinho também aparece com destaque nos palcos.
No teatro, dirigiu peças para o público infantil como Os Sobrinhos do Capitão, que conquistou os prêmios Tibicuera de Melhor Espetáculo, Direção, Atriz (Rosângela Cortinhas e Licht de Moraes), Cenografia e Figurino (por sinal, produzido pela avó de Nelsinho, Zoé Ribas) de 1986. Já Ali Babá ficou com as premiações de Melhor Direção, Cenografia e Ator Coadjuvante (Guelo Rasbol) em 1989.
Em 1984, Nelsinho já havia ganhado o Prêmio Especial Tibicuera pela direção de Mugnog, espetáculo que encenou com a Companhia Mágika a partir de um texto do Grips Theater, de Berlim. Ele dirigiu ainda Marco Polo, de 1991, adaptado de Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino.
Como cenógrafo, participou de montagens como Manual Prático da Mulher Moderna, dirigida por Patsy Cecato, em 2017, e A Dócil, adaptação da novela de Dostoievski com direção de Nair DAgostini, em 2005. Trabalhou ainda com músicos como Raul Ellwanger e Bebeco Garcia.
Os cenários produzidos para Nei Lisboa constituem um capítulo à parte. Para uma apresentação no Theatro São Pedro, em 2015, aproveitou as sobras de cortes de móbiles que iam ser jogadas fora – em outras palavras, Nelsinho reciclou o próprio trabalho, dando-lhe outro sentido em nova aplicação.
– Aquilo ficou guardado durante quatro anos até que ofereci de presente para o Nei.
As parcerias com o autor de Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina costumam ser atrevidas e originais.
No começo dos anos 1980, para um show na Reitoria da UFRGS, Nelsinho criou uma parede no fundo do palco feita com tiras de papel higiênico, esticadas do chão até o teto, uma ao lado do outra, em diferentes cores e tamanhos.
– De longe, ninguém dizia que aquele enorme fundo em tom pastel era feito de papel higiênico. Eu ainda sugeri que, ao final do espetáculo, o Nei saísse correndo e se atirasse contra a parede de papel. O efeito chocou até a mim, que já sabia o que ia acontecer. O público ficou de cara!
Inquieto, não desiste da ideia de montar uma peça sobre a história da matemática, que marcaria o retorno ao palco.
– Quero trabalhar com a beleza dos números, mas não pode ser um texto chato. No teatro infantil, tudo precisa ser exagerado – a cor, os figurinos – e teatral em dobro, como se fosse desenho animado. Não é fácil segurar as crianças sentadas na plateia durante 80 minutos.
Enquanto não acontece a peça sobre matemática, vale a pena conferir a exposição no Nossa Cara – Butique Café, das amigas Leila Dalpiaz de Mattos, Margarete Moraes e Silvana Barzotto.
A regra primeira e única para os passageiros desta viagem à “cidade transversa” de Nelsinho é não tocar nas peças suspensas, o que não impede ninguém de entrar na brincadeira.
– Assoprar pode, avisa ele.