O alambique do Vô Zeca
Cachaça artesanal produzida pela quarta geração da família Souza simboliza a resistência de um estilo de vida secular junto à cachoeira do Macacu
Não faz muito, um homem de negócios estacionou seu carro na rua íngreme de chão batido em frente ao Engenho de Farinha e Alambique Vô Zeca.
O executivo acabara de cruzar a estrada poeirenta que liga as dunas do Siriú à Cachoeira do Macacu, na zona rural de Garopaba, litoral sul de Santa Catarina. Estava ali para apresentar uma proposta tentadora: exportar para os principais mercados do mundo a cachaça produzida de forma artesanal há quatro gerações pela família de José Constâncio de Souza, o Vô Zeca, de 90 anos.
Quem recebeu o rapaz foi Joaquim, o Biluca, o mais velho dos filhos do proprietário do alambique – no total, são quatro homens e duas mulheres, além do sobrinho criado por Zeca desde os cinco meses de idade.
Com a voz mansa, a mesma com que recebe diariamente turistas vindos não só de outras regiões do Brasil, mas também das Américas do Sul e do Norte e da Europa, para comprar ou simplesmente degustar a aguardente, Biluca recusou a oferta.
– Ia dar um dinheirinho, mas aí você não ia vir aqui e não estaríamos conversando agora, explica o primogênito de Zeca ao repórter.
Antes, quem mostrava aos visitantes, passo a passo, o processo de fabricação da cachaça era a esposa de Zeca, dona Nézia, que foi vítima de um AVC em maio do ano passado. Se estivesse viva, ela teria completado 82 anos no último dia 24 de fevereiro.
Muito ativa e determinada, Nézia tinha uma memória privilegiada – quando morreu, uma vizinha ainda comentou:
– Lá se foi o computador da comunidade.
Outra virtude de Nézia era a facilidade com que se comunicava com todos ao seu redor, sempre de forma simples e direta. O gosto pela prosa ela transmitiu aos filhos, como relata Biluca:
– A gente não tem vergonha de falar o que sabe e o que sente, e é assim que tem que ser, diz ele.
Mas não foi só o receio de perder a oportunidade de jogar conversa fora com os clientes que visitam o alambique o motivo pelo qual a família Souza não aceitou a proposta de exportação da cachaça.
Mais que isso, foi a percepção intuitiva de que sujeitar-se a um ritmo de produção industrial poderia comprometer não só a qualidade artesanal da pinga, mas principalmente um estilo de vida secular, cujo alicerce é feito de paz e sossego.
– Tu não queres?, indagou o executivo, incrédulo, assim que ouviu a recusa.
– Não quero, ganhei dinheiro até agora de outro jeito e assim está muito bom, respondeu Biluca.
Em seguida, o filho de Zeca se aproximou do homem e cochichou em seu ouvido:
– Sabes o que eu quero? É deitar a cabeça no travesseiro e dormir.
Diante da expressão de espanto do interlocutor, deu sequência à explicação:
– Hoje tu queres dois litros, amanhã vais querer 20 e daqui a pouco virás aqui para levar 200 litros por dia. E, se fecharmos contrato, teremos que cumprir, porque somos de cumprir a palavra. Imaginas como vai ser a vida da gente dali por diante?
Abaixo, veja uma sequência de imagens do Macacu, com a lagoa e a praia do Siriú ao fundo (Fotos Jaxom Moore)
A cada ano, a família de Vô Zeca produz de quatro mil a cinco mil litros de cachaça.
Indagado acerca do segredo do sabor especial da birita, Biluca destaca inicialmente a qualidade da matéria-prima, plantada pela própria família. Depois, salienta que a fermentação é “do tempo antigo”, feita com batata inglesa.
É também preciso ter controle absoluto do fogo durante a destilação para que a bebida não saia “queimosa”, ou seja, numa temperatura acima do recomendável. Caso isso aconteça, quando mais tarde ela for sorvida, vai produzir a desagradável sensação de “queimar” a garganta do vivente.
– Só não adianta seguir as regras, mas ficar estressado, de cara feia. A cachaça exige paciência e precisa ser feita com carinho. Ontem, por exemplo, fiquei das seis da manhã até às cinco da tarde envolvido no trabalho, completa Joaquim.
O alambique do Vô Zeca produz cachaças de butiá, uva, jabuticaba, abacaxi, canela, guaco e mirtilo, entre outros sabores. Algumas receitas são tradicionais, como a da consertada, mistura de folhas de lima, gengibre, café, canela, cravo e, naturalmente, cachaça. No passado, a consertada era servida nas festas de casamento do Macacu:
– Antigamente, a gente produzia cachaça não para vender, mas para beber nas festas, relembra Vô Zeca.
O alambique divide espaço com a produção de melado, açúcar mascavo e farinha de mandioca, seguindo a tradição dos açorianos que colonizaram a região a partir do século 18.
Perto de 70% da cana de açúcar que serve de matéria-prima para a produção da cachaça é cultivada numa roça erguida na encosta acidentada do Morro dos Fortunatos, com a ajuda de um carro de boi. É um lugar de difícil acesso, principalmente quando chove:
– Aí o carro desliza e periga até machucar o animal, conta Rita, esposa de Biluca.
A cana colhida é trazida a muque por Joaquim da roça até o alambique. Caso aumentasse a produção para exportar a aguardente, seria preciso arregimentar um exército de colaboradores.
– Fora isso, eu ia trabalhar com as porta fechadas, ia trabalhar só para um. Não é isso que eu quero, explica Biluca. Em seguida, ele retoma o tema anterior da conversa: – Gosto de trocar ideias com a pessoa que vem aqui. Se vender, vendeu, se não vender, tudo bem... Já valeu a prosa.
Até porque, embora não esteja nadando em dinheiro, o clã dos Souza não passa por dificuldades financeiras.
No começo do século 20, Jacinto, o avô de Zeca, era senhor de um amplo pedaço de terra na região do Macacu – “de morro a morro”, na descrição do dono do alambique.
A extensão das propriedades só rivalizava com a quantidade de descendentes – “uns 40 netos”, Zeca contabiliza –, o que fez com que, de herança, sobrasse um quinhão não tão espaçoso para cada um deles.
Se Zeca gosta de viver aqui? Muito – do que mais gosta é da mata virgem, que cobre as montanhas e desce até o vale à beira da lagoa do Siriú. Talvez por isso, em nove décadas, ele quase não tenha tirado os pés da região do Macacu, no mais das vezes para breves excursões para Florianópolis, que fica a 70 km de Garopaba.
A viagem mais longa de que se recorda é uma esticada até Aparecida, no interior de SP, para acompanhar a festa de Nossa Senhora Aparecida, num dia 12 de outubro já perdido na memória.
– Tinha vontade de ir outras vezes, mas a idade chegou, acautela-se.
Biluca bem que tentou escapar da tradição familiar. Quando jovem, trabalhou na fábrica de sorvetes Nevada, em Porto Alegre. Morava no bairro Floresta, perto da antiga fábrica da Brahma, hoje transformada no Shopping Total.
Um belo dia, Biluca decidiu voltar para o Macacu e reativar o alambique da família.
– Na verdade, eu não sabia produzir a cachaça, mas o pai me ensinou com paciência e, quando a gente tem vontade, aprende rapidinho...
Faltava convencer Zeca de que o negócio ia dar certo. A essa altura, Zeca duvidava que ainda viesse alguém bater à porta do alambique para comprar a cachaça.
– Não tem problema, pai, se a gente não conseguir vender, a gente bebe a cana, respondeu Biluca, com presença de espírito.
Não foi preciso secar os tonéis por conta própria. Aos poucos, a propaganda boca a boca fez com que aparecesse uma clientela a cada dia maior. Para Biluca, o resgate da tradição é o que mais conta:
– Isso não tem preço, até porque os mais jovens não querem mais saber de produzir farinha e cachaça.
Conforme Biluca, aqueles que decidirem montar alambique ou engenho na área rural de Garopaba não irão se arrepender.
– Ah, se trabalhar certinho e produzir bastante, ninguém vai precisar sair do Macacu para ganhar a vida em outro lugar, isso eu garanto.
Palavra de quem sabe o que diz.