Simplesmente Valéria
Cantora muda de nome e celebra melhor momento da carreira com a abertura de show de Katy Perry e o lançamento de filme e discos
Na hora em que apareceu radiante no Anfiteatro da Arena do Grêmio para abrir o show de Katy Perry, no começo da noite de quarta-feira, dia 14 de março, a cantora Valéria não estava desacompanhada.
No palco, ela representava uma fatia da população que não costuma ter vez e voz.
– Sim, vai ter mulher trans e preta abrindo show internacional!, anunciou Valéria em seu perfil do Instagram, em 26 de fevereiro.
Não faltam motivos para Valéria comemorar. Com agenda lotada de shows, que se expande de Porto Alegre em direção ao Rio de Janeiro, com incursões frequentes a Montevidéu e começando a conquistar o público do Nordeste do Brasil, ela vai lançar dois discos em 2018, além de cantar e atuar como atriz num curta-metragem que estreia no dia 17 de março.
– Ai, está uma coisa louca e linda, apesar de dar muito trabalho, diz ela, suspirando.
A cantora transexual – que até pouco tempo usava o nome artístico de Valéria Houston e agora se apresenta simplesmente como Valéria – já tinha conhecimento de que abriria o show de Katy Perry há cerca de três meses, mas guardou a novidade a sete chaves.
– Vai que não acontecesse, justifica, precavida.
Ela admite que ficou um pouco nervosa diante da perspectiva de cantar para a plateia juvenil da musa do pop adolescente. Ao mesmo tempo, Valéria sabia que a cantora americana é apoiadora da causa LGBT e acredita que isso ajudou para que cativasse a geração mais nova.
– Hoje em dia, os jovens são muito conscientes e engajados, confia.
Nos dias que antecederam o show, a produção de Katy Perry trocou informações e acompanhou as postagens de Valéria nas redes sociais, não se furtando a dar palpites.
– Sei que ela gostou de Controversa {canção de Adriana Deffenti}, pelo menos foi o recado que o estafe da Katy passou para a minha produção.
Mas essa história começou bem antes. Ela é repleta de reminiscências, que se encaixam como um quebra-cabeças. Uma das peças nos transporta à Cidade Luz.
Rainha gay do carnaval
A primeira vez que Valéria avistou a Torre Eiffel foi num quadro pendurado na parede de uma sala de aula.
Ela tinha uma vassoura na mão e cumpria expediente como faxineira de uma escola de idiomas. Naquele ambiente poliglota, aprendeu a se comunicar em francês, espanhol e inglês.
– O meu ouvido nunca me trai, diz ela.
Muito tempo depois, em 2012, quando venceu o Festival da Canção Francesa, promovido pela Aliança Francesa em Porto Alegre, como prêmio ganhou uma viagem a Paris, com direito a cantar no festival de música brasileira Lavage de la Madeleine e em danceterias como o Banana Café. Mais que as apresentações em solo francês, o que a emocionou de verdade foi estar diante da Torre Eiffel:
– Quando eu passei, ela se iluminou diante dos meus olhos. Detalhe: a torre só se ilumina de hora em hora, então foi muita coincidência... Lembrei na hora do cartaz na sala de aula. Foi lindo! É claro que chorei!
Valéria nasceu Rodrigo – Rodrigo Barcellos –, há 38 anos, em Santo Ângelo, na região noroeste do Rio Grande do Sul.
– É uma cidade de colonização alemã de perfil conservador, onde o preconceito de gênero e racial é bastante dissimulado, dispara.
A mãe se chamava Ângela Maria – presságio insofismável do futuro de cantora da filha.
Grávida, Ângela Maria buscou inspiração para batizar a cria em nomes que desfilavam pelas páginas de O Tempo e o Vento, romance épico de Erico Verissimo sobre a história do RS, um de seus livros de cabeceira.
Como queria uma menina, cogitou Bibiana, Ana ou Maria Valéria. Não deu certo: o bebê (aparentemente) era menino. Então, ela decidiu homenagear o Capitão Rodrigo, protagonista de O Tempo e o Vento.
Quando a mãe morreu, em 2002, Rodrigo estava prestes a deixar de existir, embora Valéria Houston ainda não tivesse nascido.
Valéria Houston nasceu, de fato, no concurso de Rainha Gay do carnaval de 2005, em Santo Ângelo. Para concorrer, precisava de um pseudônimo. A amiga transexual Maria Eduarda sugeriu Valéria Houston – mistura do gingado de Valéria Valenssa (a Globeleza) com a voz de Whitney Houston. Parecia perfeito.
– Ganhei o título de Rainha Gay e este foi o último acontecimento do qual participei na cidade. Depois disso, me mudei para Porto Alegre.
Com mais experiência e residindo antes na capital do Estado, foi também Maria Eduarda quem, no começo da década de 2000, havia guiado Valéria durante a travessia de gênero.
– Fiz o que a maioria faz e não se deve fazer: “Me diz o que tu tomou, amiga”, pedi. Tratamento por conta própria é loucura, porque pode trazer alterações bruscas de humor e, pior, causar danos ao fígado.
A decisão de abandonar o sobrenome Houston é recente – foi sugestão do cantor e compositor Filipe Catto, que irá produzir um disco de Valéria no segundo semestre de 2018.
– Como vai ser um álbum só de sambas, ele achou melhor abrasileirar o nome. Além disso, eu estou vivendo uma nova fase da carreira, diz ela.
Dito de outra maneira, Valéria não precisa mais chamar a atenção com um nome que lembre alguma superstar, como no início da carreira musical. Mas ela adverte:
– Não vou me livrar jamais da Whitney Houston. Quero cantar as músicas dela a vida inteira.
Hoje, o nome que consta na certidão de nascimento é, efetivamente, Valéria Barcelos, graças às conquistas alcançadas nos tribunais pelos movimentos LGBT nos últimos tempos.
– Fui uma das primeiras a trocar o nome na certidão sem ter feito cirurgia de mudança de sexo, orgulha-se ela.
Embora não tenha passado pelo bisturi, Valéria foi obrigada a apresentar um atestado de psiquiatra da perícia forense.
– A gente só consegue alterar o nome no documento se comprovar que tem um transtorno psíquico que nos obrigue a isso, explica Valéria. Em seguida, ela lamenta: – Em outras palavras, a transexualidade ainda é tratada como doença.
Os movimentos LGBT tentam fazer com que a legislação dispense a obrigatoriedade do atestado psiquiátrico, mas existe o receio de que a tentativa de avanço resulte, ao contrário, numa perda de direitos já adquiridos, diante do cenário de retrocessos que se abate sobre o País.
– Talvez seja melhor continuar sendo doida, conclui Valéria, soltando uma gargalhada.
Abaixo, veja o ensaio fotográfico de Valéria produzido por Joe Nicolay.
A verruga da tia
Quando recua até a mais remota lembrança, a cantora se dá conta de que desde sempre se considerou uma menina.
– O que mais me chocou na infância não foi saber o que eu era, mas o que não era. Nunca me senti um menino.
Na verdade, houve um tempo em que ela acreditava que, no universo, só existissem meninas – algumas tinham um pinto pendurado, outras não.
Na visão da criança, mesmo as que ostentavam o órgão sexual masculino, um dia o perderiam por força da evolução natural do indivíduo. A comparação que fazia era com a verruga no rosto de uma tia – de vez em quando, a mulher arrancava aquela excrescência carnosa junto ao nariz, ainda que depois a protuberância voltasse.
– Eu achava que, assim como a verruga da tia, aquilo que eu tinha no meu corpo ia cair quando eu crescesse.
Até que, lá pelas tantas, quis entrar no banheiro das meninas e foi dissuadida por uma amiguinha. Bem que Valéria tentou argumentar:
– Não te preocupa, não faz diferença, isso aqui daqui a pouco vai cair...
– Não vai cair coisa nenhuma..., respondeu a outra.
- Como assim? Então, vou ter que conviver com isso o resto da minha vida?
Valéria cantarola Meu Mundo Caiu, clássico de Maysa, quando termina de reproduzir o diálogo, antes de soltar outra gargalhada.
Por sinal, a técnica da cantora não é obra de estudos. Pode não parecer, mas Valéria não tem a menor ideia do tom em que está cantando, ainda que não perca a afinação. No caso dela, a música é pura intuição:
– Nunca fiz aula de canto. Sei que é errado, o que me salva é que tenho um ouvido que nunca me trai, repete ela.
Bem, não falta vivência musical para essa autodidata. A música faz parte de sua vida desde cedo – os pais eram da diretoria da escola de samba Princesa Isabel, de Santo Ângelo.
Outra referência da primeira hora são as capas de vinis de Clara Nunes, Alcione e Elis Regina, pertencentes à mãe.
– Eu não tinha a pretensão de ser cantora, mas me via fazendo pose de artista naquelas fotografias.
Cá entre nós, Valéria tinha outros planos quando era criança. Queria ser professora – como Clenir, uma “linda mulher com cheiro de mimeógrafo” que tomava conta de sua turma na pré-escola.
Foi Clenir, aliás, quem primeiro prestou atenção na voz de Valéria. Aos seis anos, cantarolava ao léu quando ouviu da professora:
– A escola vai promover um festival e cada classe irá indicar um representante. Já te escolhi.
Foi o primeiro de muitos festivais estudantis dos quais participou, apesar de se mostrar sempre receosa de que alguém fizesse queixa para a mãe a respeito do timbre feminino de sua voz.
Valsa de Strauss
Já perto dos 18 anos, foi convidada a atuar como crooner da banda Balança Brasil, o que fez com que saísse da zona de conforto do samba e ampliasse o repertório das canções:
– Em bailes de debutantes e festas de formatura, casamento ou réveillon, se toca de música regionalista do RS até valsa de Strauss.
Embora ainda não se vestisse como mulher, a vocalista já exibia uma silhueta feminina. Não por acaso, havia iniciado pouco antes o tratamento hormonal para se tornar transexual, o que incomodava os colegas da Balança Brasil. Por imposição deles, usava, por exemplo, uma faixa no peito para disfarçar os seios salientes.
– Com o tempo, a relação com a banda ficou estranha. Eu não estava feliz ali.
Quando buscou oportunidades em Porto Alegre, já havia incorporado de vez a figura de Valéria Houston, o que cativou o público que a escutou cantar pela primeira vez no videokê do Venezianos Pub Café, na Cidade Baixa.
Valéria estava hospedada na casa de tia Heloísa, em Novo Hamburgo, e precisava que os amigos pagassem não só a passagem para Porto Alegre, mas também o ingresso de entrada no bar.
Menos mal que, impressionada com seus dotes vocais, a dona do Venezianos na época, Vera Ardais, convidou a moça para ajudar na produção do videokê e ainda dar umas canjas nas noites de terças-feiras.
Ela pensou: “Não é bem o que eu queria, mas pode ser a porta de entrada para uma carreira de sucesso”. Em seguida, veio o convite para cantar também às sextas-feiras, na Roda de Viola promovida pela casa noturna identificada com o publico LGBT, na qual trabalha até hoje.
De lá para cá, a carreira de Valéria alçou voos cada vez mais altos.
Já faz algum tempo, Valéria embarca num avião em direção ao Rio de Janeiro, quinzenalmente na alta temporada e uma vez por mês no resto do ano, para se apresentar na Galeria Café, do ator, cantor e compositor Cláudio Lins (filho de Ivan e Lucinha Lins), em Ipanema. Lá, tem feito duetos com Maria Gadú, Toni Garrido e Rita Benneditto (ex-Rita Ribeiro), entre outros cantores.
No auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre, por sua vez, já dividiu o palco com a cantora francesa Zaz e o pernambucano Johnny Hooker.
O ano de 2018 promete ser um divisor de águas, e não é só pela abertura do show de Katy Perry. Ao longo do primeiro semestre, Valéria estará lançando o primeiro EP, intitulado Sexo Frágil? – atenção: o ponto de interrogação não é erro de digitação.
A ideia é divulgar o repertório pouco a pouco – de 15 em 15 dias, ou até mensalmente – em plataformas digitais como Spotify e Vevo.
Entre as participações especiais do disco, destacam-se as de Bibi McGill, guitarrista da Beyoncé, e de Lan Lan, percussionista de Cássia Eller, além da cantora paranaense Simone Mazzer.
Em tempo: em paralelo à carreira de instrumentista, Bibi McGill é professora de ioga e, volta e meia, dá aulas no Brasil. Numa dessas, assistiu a um show de Valéria na capital gaúcha.
– Ela ficou encantada e se disponibilizou a ajudar a minha carreira no que fosse preciso. Bom, agora chegou o momento, conta Valéria, com um sorriso nos lábios.
Sexo Frágil? é um cartão de visitas do trabalho da cantora, com canções que abordam a “desconstrução de padrões e parâmetros” principalmente relativos à questões de gênero.
O repertório do EP inclui uma canção já gravada num single ao final de 2017 – Esmalte Velho, de Benício Bem, piauiense nascido na cidade de Piripiri.
– É um carimbó, uma música solar, por isso, divulgamos no verão. Agora que passou o carnaval, vamos começar a mostrar as demais canções.
Cláudio Lins cedeu duas composições, uma delas em parceria com Pedro Camargo Mariano, filho de Elis Regina. Outra contribuição de peso é a de Paulinho Mendonça, autor de hits dos Secos & Molhados, como Sangue Latino.
No segundo semestre de 2018, Valéria gravará mais um EP, desta vez com a produção de Filipe Catto, como vimos antes, com um repertório feito exclusivamente de sambas.
Sobre este disco, ela prefere não adiantar muita coisa.
– O Filipe contatou compositores importantes, mas não posso dizer quais são. Só depois de assinar os contratos, diz ela, enigmática.
Como se não bastasse, Valéria participa como atriz e cantora do curta-metragem Meu Preço, dirigido por Hsu Chien, com lançamento em 17 de março, no RJ. O filme conta a história de uma transexual que se prostitui, vivida pelo ator Fabrício Santiago.
Não é a primeira experiência de Valéria em frente às câmeras. Em julho do ano passado, foi tema de Me chamo Valéria, documentário biográfico produzido por alunos da Famecos/PUCRS.
A seguir, veja outro ensaio de Valéria, desta vez elaborado por Rodrigo Bragáglia.
À luz do dia
Embora a temática LGBT sempre estivesse presente no trabalho, Valéria não se propunha a ser uma artista engajada até o dia 30 de agosto de 2015, quando sofreu na carne a violência praticada contra os transexuais.
Naquela tarde de domingo, após almoçar num restaurante na Cidade Baixa, foi agredida num primeiro momento com palavras e depois fisicamente por um desconhecido na calçada da Rua da República.
– Sai daqui, lixo!, gritou o sujeito, sem mais nem menos.
Quando Valéria se aproximou para tirar satisfação, foi golpeada nas costas com uma chave de fenda que o homem retirou da mochila.
– Era um senhor bem vestido, sem sinais de embriaguez ou drogadição. Embora fosse um homem negro, ele adicionou ofensas racistas aos ataques vinculados à questão de gênero, relata.
Como a polícia estava em greve, não foi possível registrar de imediato o BO. Quando chegou em casa, Valéria desabafou num “textão” do Facebook, o que gerou enorme repercussão a ponto de, na manhã seguinte, ela ser chamada pela Delegacia da Mulher para formalizar a queixa.
O episódio ao menos serviu para que ficasse sabendo que a Delegacia da Mulher também atende às transexuais e que a Lei da Maria da Penha igualmente as protege.
– Aquela frase do agressor em plena luz do dia – “Teu lugar não é aqui!” – ficou na minha cabeça durante muito tempo.
A partir daí, adotou uma postura de militante frente à situação das transexuais, cuja expectativa de vida – segundo ela informa – não ultrapassa os 35 anos de idade.
Como a grande maioria se vê obrigada a se prostituir diante da falta de oportunidades de emprego, não é de surpreender que a principal causa de morte das transexuais seja a violência que impera nas zonas de prostituição.
– Com 35 anos, a pessoa nem começou a viver direito, observa Valéria. A seguir, como é de seu feitio, não deixa escapar a piada: – Digo sempre que estou no bônus de três anos...
Falando sério, ela acredita que possa contribuir para desnudar a dimensão humana do transexualismo, à medida que, com sua voz e exemplo de vida, consiga ampliar a compreensão da sociedade a respeito desta identidade de gênero para além do viés caricato ou marginal, polos entre os quais oscila a imagem pública dos transexuais.
De certa forma, é o que já vem fazendo ao longo dos últimos anos. Em março de 2016, por exemplo, Valéria ganhou o Troféu Mulher Cidadã, conferido pela Assembleia Legislativa do RS a personalidades femininas que se destacam por relevantes serviços prestados à sociedade rio-grandense.
– É a maior honraria dada a mulheres no RS, então, é lógico que causou polêmica. Alguns {deputados} não queriam dar por isso e aquilo e até buscaram assessoria jurídica para impedir, mas na minha documentação consta Valéria Barcelos como nome, do sexo feminino, não tinha como contestar... De minha parte, queria que mais uma trans ganhasse para acabar com essa coisa de que não somos mulheres, conclui.