A estrela sobe

A voz potente e a presença de palco de Elisa Meneghetti ganham cada vez mais espaço na cena musical de Porto Alegre

Elisa ganha agenda lotada com shows como o que homenageou Nei Lisboa e prepara CD para agosto (Foto Vilmar Carvalho)

Elisa ganha agenda lotada com shows como o que homenageou Nei Lisboa e prepara CD para agosto (Foto Vilmar Carvalho)

O Brasil é pródigo em cantoras pequenas que se agigantam quando soltam a voz.

Um exemplo é Carmen Miranda, a pequena notável, artista brasileira de maior projeção internacional. Sem falar em Elis Regina, a baixinha que, como um furacão, se transformou na maior intérprete da música popular do País.

No seio dessa tradição, Elisa Meneghetti não destoa.

Com 1 m 54 cm de altura – dois centímetros a mais que Carmen Miranda –, a cantora está ganhando cada vez mais espaço na cena musical de Porto Alegre graças à voz potente e encorpada, aliada a uma presença intensa e segura no centro do palco.

A carreira sobe e ganha impulso com uma agenda lotada de shows – no dia 26 de abril, por exemplo, Elisa apresentou Pra Viajar: Elisa Meneghetti canta Nei Lisboa, no Bar Ocidente. O espetáculo é uma viagem pela obra musical do compositor guiada pela memória afetiva da cantora – afinal, Nei Lisboa fez parte da infância e da juventude de Elisa. 

Em junho, ela entra no estúdio Geraldo Flach, da Secretaria de Cultura de Porto Alegre, para gravar o primeiro CD, que deverá ser lançado até agosto.

– Atualmente, Elisa é uma das melhores cantoras de Porto Alegre, diz Fausto Prado, que produzirá o disco. 

Músico sofisticado, com três CDs gravados à frente do grupo Cidade Baixa, Fausto tem a oportunidade de lapidar a pedra bruta da voz mezzo-soprano de Elisa, que alcança com igual elasticidade tons graves e agudos.

– O bacana na voz de Elisa é que, diferente de boa parte das intérpretes que a gente ouve por aí, ela se sente confortável ao cantar num timbre um pouco mais grave, o que lhe confere uma personalidade especial, elogia a jornalista Kátia Suman, que produz o Sarau Elétrico, no Ocidente, desde 1999.

Arte de berço

(Foto Luciane Pires Ferreira)

(Foto Luciane Pires Ferreira)

Elisa é de uma família extremamente musical.

A mãe, Cláudia Meneghetti, falecida em 2012, foi uma atriz premiada no teatro (Açorianos de 1998 com o monólogo Eternamente Dorothy, de Toninho Neto) e no cinema (Festival de Gramado de 1985 com os curtas-metragens Colombina Forever, de David Quintans, e Madamê Cartô, de Nelson Nadotti).

Embora tenha conquistado maior reconhecimento como atriz, Cláudia iniciou a carreira artística, aos 16 anos, cantando escondida dos pais no bar Clube da Esquina, na Cidade Baixa – o boteco ficava na esquina da Lima e Silva com a Rua da República, exatamente onde hoje está situado o bar e restaurante Pinguim.

A adolescente não corria riscos – quem a acompanhava ao violão era José Guilherme Meneghetti, o Meme, irmão de Cláudia, aliás, o dono do botequim.

– Cláudia cantava muito bem, recorda o radialista Alexandre Brum, o Bola Sete. Atualmente, ele apresenta o programa Avenida Mundi, na Dinâmico FM, às segundas-feiras, a partir das nove horas da noite.

Bola Sete era "sócio atleta" do Clube da Esquina, batendo ponto todas as noites. Ele lembra que o lugar era bastante frequentado por músicos que trabalhavam nas redondezas.

– Na época, havia muito menos bares na Cidade Baixa em relação aos dias atuais. O mais próximo era o Encontro. Um dos músicos de lá, o Gago, em todo intervalo ia para o Clube da Esquina dar uma canja e tocar com a Cláudia, acrescenta ele.

Meme, por sua vez, além de dono de bodega, havia trabalhado numa distribuidora da cachaça Três Fazendas.

Músico e ator, atuou em peças teatrais como O Boi dos Chifres de Ouro, de Ivo Bender, com direção de Camilo de Lélis, em 1988 – neste trabalho, assumiu também a trilha sonora –, e O Inimigo do Povo, de Ibsen, dirigido por Dilmar Messias, em 1993.

No cinema, Meme apareceu como porteiro de bailão no filme Verdes Anos, de Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, em 1984. O tio de Elisa morreu no início dos anos 2000.

A atriz e cantora Cláudia Meneghetti, mãe de Elisa (Foto/Gisa Fenner)

A atriz e cantora Cláudia Meneghetti, mãe de Elisa (Foto/Gisa Fenner)

Com Nei Lisboa, Elisa guarda afinidades que não se restringem ao signo de Capricórnio, do qual ambos são nativos.

Segundo ela, a ligação com o autor de Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina é “intrauterina”, dada a amizade de Nei com Cláudia e Meme, cultivada em meio aos desvarios etílicos do Bom Fim nas décadas de 1970 e 1980.

– É um encantamento que tem a ver com memórias que nem consigo acessar de tão profundas. Existe desde muito antes de eu saber que iria ser cantora.

Como se não bastasse, Elisa viveu a infância na Rua Cauduro, a poucos metros do apartamento em que Nei morava.

Elisa residia com a mãe, o tio e os avós Cláudio e Alda, estes últimos donos de um bazar na Cauduro, que fazia a alegria da estudantada do Anne Frank, com revistas em quadrinhos e mesas de futebol de botão. 

Para não fugir à regra, o velho Cláudio – boêmio contumaz – era um tangueiro nato, embora não fizesse disso um ofício.

– Ele cantava num barzinho da Avenida Venâncio Aires junto com os amigos. Toda noite alguém tinha que ir lá buscá-lo, anota Elisa.

Hoje em dia, o repertório que Elisa apresenta em seus espetáculos – além de homenagear Nei Lisboa – passeia por ritmos e estilos diversos, como samba, bossa nova, rock e blues.

Esse ecletismo é reflexo direto do que ela escutava em casa, quando criança, principalmente na hora do almoço.

Ótimo cozinheiro, Meme se enfurnava na cozinha enfumaçada com o som em alto volume ecoando na sala.

Certo dia, a menina descobriu, entre as pilhas de discos espalhados pela sala, um vinil duplo de Billie Holiday.

– O encarte trazia informações "terríveis" (ela levanta o tom de voz) sobre a vida da cantora, recorda, com a mesma cara de espanto com que pegou o disco pela primeira vez.

Quando a mãe chegou em casa e olhou a cena, puxou a filha para o sofá:

– Eu ia esperar um pouquinho para apresentar essa mulher, mas já que descobriu, vou contar a história dela.

Só que a preferência do clã Meneghetti era mesmo a nata da música popular brasileira. De tanto escutar os discos de Chico Buarque, João Bosco, Elis Regina e Edu Lobo, Elisa chegou a acreditar que os artistas eram amigos da família e que, mais dia menos dia, bateriam à porta do apartamento, de preferência na hora do almoço.

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"Fico imaginando o Nei bebendo cerveja com a mãe e o tio Meme no Lola, na Osvaldo Aranha, na década de 1970. Cantar o repertório do Nei é uma maneira de revisitar meus pares. Mexe muito comigo e me faz bem".

Foto: Ju Rossi

Já com Nei Lisboa, essa mistura entre vida e obra não era só imaginação. Ela se materializava desde quando a guria ia tomar suco na Lancheria do Parque, levada pela mão do avô, e lá estava o cantor e compositor, escondido numa mesa de canto.

Essa proximidade se revelou na mensagem que Nei – com senso de humor pessoal e intransferível – postou numa rede social, antes de se apresentar pela primeira vez ao lado de Elisa na festa de entrega do Prêmio Açorianos, em 2013:

Ele conhece a vizinha desde a barriga da mãe

Ela jura que ouve o cara desde antes de nascer

Hoje estarão juntos...

Índio charmoso

Do pai, Antão Piragibe, um índio bonito e charmoso, com o qual pouco conviveu – não chegaram a morar juntos e ele morreu quando Elisa tinha quatro anos de vida –, retém lembranças esparsas, algumas delas gravadas em VHS.

Numa das fitas, Elisa está na frente de casa, no colo da mãe, cedo da manhã, quando se escuta o som vindo de um alto-falante grudado na carroceria de um caminhão – nesta época, Antão fazia biscate como motorista do Mensageiro da Caridade.

– Elisa, o bebê mais bonito do mundo!, emite a voz metálica do alto-falante.

Quando o caminhão estaciona, Antão salta da boleia e dá um beijo na criança.

– Pô, Antão, bebeu de novo!, exclama Cláudia.

Uma recordação armazenada apenas na memória conduz à peça infantil Bichinho de Maçã, de Ziraldo, no Teatro Bruno Kiefer, da Casa de Cultura Mario Quintana. A menina espera a chegada do pai. A peça inicia, ele não aparece.

De repente, ouve-se um tropeçar entre as cadeiras da plateia. Antão, atrasado, acaba de chegar. 

Há imagens engraçadas, como a de Antão fazendo mágica com um ovo que some num dos bolsos do casaco e reaparece dentro do armário, no apartamento em que o índio morava na Rua Baronesa do Gravataí.

– Não consegui desvendar o que teria sido a presença do pai na minha vida. Era uma figura divertida e que tinha encanto, mas –  definitivamente – ser pai não era o trampo dele.

Numa família tão musical, é natural que a moça se sentisse atraída pela vida de cantora.

Certo dia, com onze anos de idade, ela se trancou no quarto com o violão e só saiu de lá depois que, com a ajuda de uma revistinha com acordes, aprendeu a tocar a canção Quase Sem Querer, da Legião Urbana.

– Que gracinha, parabéns! Mas essa nota dó não está perfeita, ouviu da mãe.

Os primeiros ensaios vocais contaram com a participação discreta de Rafael Erê – atualmente, violonista da cantora Valéria e até hoje um dos melhores amigos de Elisa.

Como Rafael tinha dez anos mais que ela, o avô não permitia que ele entrasse em casa. Então, a menina cantava bem baixinho colada à janela do quarto do apartamento térreo, enquanto o rapaz dedilhava o violão na calçada.

– O Rafael foi quem me tirou essa vergonhinha de cantar, diz ela.

Quando se dá conta, Elisa percebe que a relação com Nei Lisboa a acompanha em coincidências mais que fortuitas. O primeiro show, aos 17 anos, aconteceu num café da Rua Nova York, perto de uma das casas em que o cantor morou por algum tempo.

Outras coincidências, mais doídas, remetem à figura da mãe e à vivência da maternidade.

Quando montou, pela primeira vez, um espetáculo totalmente dedicado ao repertório de Nei Lisboa – no Teatro de Arena, em setembro de 2013 –, ainda abalada pela morte da mãe, Elisa guardava há quase meses um bebê na barriga. 

– Foi como se eu dissesse para Deus: “Você tirou a mãe do meu lado, agora eu vou colocar uma criança no mundo e nós vamos fazer as pazes”.

Dois dias após a apresentação, ela foi obrigada a se internar num hospital – a criança nasceu prematura e não sobreviveu.

Para Elisa, restou o conforto de ter vivido a experiência da maternidade, ainda que por um breve espaço de tempo.

A cidade fala

Com a banda que a acompanha há oito anos: (da esq. para a dir.) Duda Cunha, Filipe Narcizo e Andrei Corrêa (Foto Vilmar Carvalho)

Com a banda que a acompanha há oito anos: (da esq. para a dir.) Duda Cunha, Filipe Narcizo e Andrei Corrêa (Foto Vilmar Carvalho)

O CD a ser gravado em junho já tem título: Fala da Cidade

A ideia surgiu a partir de uma pichação que Elisa avistou na Rua Garibaldi – “Apaixonar-se é mais ou menos como ver uma estrela cadente”.

Na ótica de Elisa, a cidade fala nos avisos postados em muros e paredes, chamando atenção para paisagens e cenários ocultos:

– As pessoas estão cegas e, por isso, não veem as coisas legais que estão acontecendo aqui. É como se houvesse um Muro da Mauá em volta de cada um.

O disco contará com oito canções de compositores locais, como Naddo Pontes, Duda Fortuna e Duda Cunha, além de Fausto Prado. De Nei, Elisa gravará Síndrome de Abstinência, mas – se ela criar coragem – vai pedir uma canção inédita para ele.

Nada mais justo. 

Afinal, entre as falas de Porto Alegre, uma das mais representativas é Deu pra ti, anos 70 –, frase que Nei inscreveu nos muros da cidade em 1979 para anunciar o show com Augusto Licks, no Teatro Renascença, que fecharia aquela década marcada por ditaduras e desbundes.

No disco – como fez no show no Ocidente –, Elisa cantará com a banda que a acompanha há oito anos, formada por Filipe Narcizo no contrabaixo, Duda Cunha na bateria e Andrei Corrêa na guitarra. O espetáculo terá ainda a participação de Naddo Pontes, Ricardo Cordeiro e de King Jim, saxofonista de bandas lendárias como Garotos da Rua, que divide com Nei Lisboa a autoria de Nem Por Força – a música faz referência à Esquina Maldita (Osvaldo Aranha com Sarmento Leite), gueto boêmio da juventude porto-alegrense nos anos 1960 e 1970. 

Por sinal, as canções de Nei instigam a moça a celebrar um Bom Fim mítico, que desapareceu do mapa. Ela fica imaginando Nei, a mãe e o tio bebendo cerveja no Lola, célebre pé-sujo da Avenida Osvaldo Aranha das décadas de 1970 e 1980.

– Cantar o repertório do Nei é uma maneira de revisitar meus pares. Mexe muito comigo e me faz bem, conclui.

Paulo César Teixeira