A Casa da Banda

Sobrado centenário na Cidade Baixa é a nova sede da Banda Municipal de Porto Alegre

Casarão construído em 1919 passa pelas últimas adequações para receber a tradicional instituição da história musical da capital gaúcha

Casarão construído em 1919 passa pelas últimas adequações para receber a tradicional instituição da história musical da capital gaúcha

A Banda Municipal de Porto Alegre está ganhando uma nova casa.

Não era sem tempo. A formação musical que, em 2018, completa 92 anos de atividades está sem abrigo desde a reforma do Auditório Araújo Vianna, reinaugurado em 2012 já sem a sala que durante décadas acolheu os instrumentistas para ensaios.

A nova sede é o casarão localizado na Rua da República, 635, construído em 1919, na Cidade Baixa, que até algum tempo atrás pertencia à escola de ensino fundamental Olintho de Oliveira.

– É um presente que caiu do céu, comemora Marco Antonio Lopes, diretor da Banda.

Lopes ingressou no grupo musical em julho de 1980, com 15 anos de idade, tocando bombardino (instrumento de sopro feito de bronze, pouco menor que a tuba). Depois, passou para o trombone.

O sentimento dele é igual ao dos cerca de 30 instrumentistas e do regente Davi Coelho da Rosa.

Sem teto, a banda peregrinou por diferentes espaços nos últimos anos. Ficou um tempo no prédio da Câmara de Vereadores, depois se refugiou na escola Emílio Meyer, na Medianeira.

Mais tarde, fincou âncora provisória no Teatro de Câmara Túlio Piva até a interdição em 2014 devido a problema estruturais – entre outros percalços, uma parte do teto cedeu durante um temporal.

A peregrinação prosseguiu na Usina do Gasômetro, onde os instrumentistas repartiam o Teatro Elis Regina com os colegas da OSPA.

A orquestra ensaiava pela manhã, a Banda ocupava o espaço à tarde, até a Usina também fechar para reformas em 2017.

O último abrigo foi o Centro Municipal de Cultura, mas era preciso compartilhar o Teatro Renascença e a Sala Álvaro Moreyra com a agenda dos espetáculos ali realizados.

– Estamos felizes, já que, além de ganharmos um local fixo para ensaios, poderemos solucionar questões de infraestrutura e logística relacionadas ao transporte e à guarda de instrumentos, diz o presidente da Associação dos Amigos da Banda Municipal, Luis Carlos Santos de Carvalho, que toca tuba em si bemol. 

Primeira Banda Municipal, em 1926 – ao centro, sentado na primeira fila, José Corsi, que arregimentou músicos na Itália e na Argentina; à sua esquerda, o maestro José Leonardi

Primeira Banda Municipal, em 1926 – ao centro, sentado na primeira fila, José Corsi, que arregimentou músicos na Itália e na Argentina; à sua esquerda, o maestro José Leonardi

Os músicos estão tomando posse aos poucos do sobrado, que ainda passa por adequações como a ampliação da sala reservada para ensaios, mas já sonham com as possibilidades que deverão se abrir em breve quando a transferência estiver concluída. 

Não está descartada a ideia de montar um palquinho para a realização de recitais na sala de ensaios, com lugar para 30 espectadores.

– Por que não promover pequenos recitais de piano e clarinete ou trombone para estudantes ou mesmo para o público em geral? Temos repertório para isso, entusiasma-se Lopes.

O repertório apresentado no último dia 15 de abril, no Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, misturou clássicos da Bossa Nova, como Águas de Março, de Tom Jobim, e canções de compositores gaúchos a exemplo de Teixeirinha e Gaudêncio Sete Luas. Não faltaram peças de trilhas sonoras de filmes como Jurassik Park e das séries 007 e Pantera Cor de Rosa, sem falar de animações como Meu Malvado Favorito. A apresentação fez parte da 14ª edição do PicNic Cultural no Museu.

– São músicas que o público, principalmente o infantil, já conhece da televisão, do cinema e da internet, afirma o regente Davi Coelho da Rosa.

No Museu, aliás, está contada a história da Banda Municipal na exposição A Banda e a Cidade, aberta em 15 de março passado, durante a Semana de Porto Alegre. Entre outras raridades, estão expostas peças da primeira formação do grupo, a exemplo do quepe e da batuta do maestro José Leonardi e de instrumentos como fagote, trompete, trompa e tímpanos.

A mostra que ficará em cartaz até setembro tem a parceria do CRIAMUS/Laboratório de Criação Museográfica, vinculado à Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS, o qual emprestou os manequins para a apresentação de antigos uniformes da Banda.

Quepe usado pelo primeiro regente José Leonardi, em 1926, uma das peças da exposição sobre a Banda no Museu de Porto Alegre

Quepe usado pelo primeiro regente José Leonardi, em 1926, uma das peças da exposição sobre a Banda no Museu de Porto Alegre

Essa história começou quando Otávio Rocha, intendente municipal – cargo equivalente ao de atual prefeito – instituiu a Banda por meio de decreto datado de 19 de maio de 1925. Mas ela só passou a realizar concertos a partir do ano seguinte, como está relatado no livro Subsídios para a História da Música no Rio Grande do Sul, do músico e pesquisador Antônio Corte Real (Editora Movimento, 1984).

Nesse meio tempo, por determinação do intendente, o professor José Corsi, do Centro Musical Porto Alegrense (associação que promovia ações educativas e de divulgação da música junto à população), viajou para Argentina e Itália atrás de um regente e instrumentistas.

De Buenos Aires, Corsi trouxe 18 músicos, entre eles o maestro e trompetista italiano José Leonardi.

Natural da Catania, Leonardi tinha diploma de professor de instrumentação para banda no tradicional Conservatório de Música Vincenzo Bellini, de Palermo.

A amargura diante de uma tragédia familiar – a morte do filho, de quatro anos de idade – fez com que abandonasse o posto de diretor da Banda Municipal de Naso, província de Messina, e fizesse as malas para atravessar o Atlântico.

No Paraguai, foi diretor da Banda Municipal de Assunção. Depois, se incorporou como solista à Banda Municipal de Buenos Aires, além de tocar em orquestras portenhas.

Ao desembarcar em solo argentino, José Corsi tinha o endereço do famoso maestro italiano Gino Marinuzzi, o qual indicou Leonardi para assumir a regência do conjunto musical que estava se formando na capital gaúcha.

Da Itália, indicados por Leonardi, ainda vieram membros da Banda Municipal de Reggio da Calabria, que havia sido extinta, além de músicos de Messina e Catania, na Sicília.

A Banda Municipal de Porto Alegre estreou no Theatro São Pedro num concerto para jornalistas. Por curto espaço de tempo, ela se apresentou no coreto da Praça da Alfândega até ganhar lugar cativo no primeiro auditório Araújo Vianna, inaugurado em 1927 junto à Praça da Matriz, no terreno em que hoje está situada a Assembleia Legislativa. 

Antigo auditório Araújo Vianna, um dos primeiros palcos dos músicos, na Praça da Matriz, onde hoje está a Assembleia Legislativa

Antigo auditório Araújo Vianna, um dos primeiros palcos dos músicos, na Praça da Matriz, onde hoje está a Assembleia Legislativa

Os concertos assistidos por até 1.200 espectadores no auditório erguido em estilo neoclássico, com bancos rodeados por caramanchões, eram transmitidos pelas ondas médias e curtas da rádio Gaúcha, alcançando cidades como São Paulo e Montevidéu.

Contudo, a Banda começou a perder prestígio logo após a morte de seu idealizador – Otávio Rocha faleceu em 1928, quando ainda exercia o cargo de intendente. Havia a queixa de que ela custava muito dinheiro para o poder público.

Essa ideia não se arrefeceu com o passar de décadas. Embora os músicos tenham sido incorporados ao quadro de servidores municipais em 1949, o que lhes garantiu uma condição econômica estável, o prefeito Leonel Brizola promulgou uma lei, quatro anos depois, determinando que os cargos fossem extintos, à medida que vagassem.

Em 1963, a Banda se apresentou pela última vez, antes de entrar em recesso – o concerto foi no Clube Esportivo Primeiro de Maio, em Petrópolis.

A retomada das atividades se deu apenas na década de 1970. Ao retornar à cena musical, a Banda ganhou uma sala para ensaios no novo Araújo Vianna, construído no Parque da Redenção. Lá ficou até ser desalojada na reforma do auditório, dando início ao período de peregrinação que está terminando agora.

Cabe registrar que o historiador Felipe Bohrer, em artigos como A criação da banda que já existia: disputas identitárias em torno da Banda Municipal de Porto Alegre, sustenta que a banda pioneira da capital do RS foi criada, na verdade, em 1911, “por filhos de operários, possivelmente afrodescendentes, mestiços e imigrantes pobres, vinculados ao Colégio Hilário Ribeiro”, escola da municipalidade que atendia à população de baixa renda.

Conforme Bohrer, a banda original teria sido esquecida pela historiografia oficial devido a “um processo de disputa identitária que omitiu a contribuição e a presença da população afrodescendente”.

O casarão da Rua da República para onde a Banda Municipal está se transferindo pertencia originalmente à família do comendador José Baptista Soares da Silveira e Souza, açoriano vindo da ilha de São Jorge para o Sul do Brasil no século 19.

Marco Antonio Lopes, diretor do grupo musical, em frente ao sobrado

Marco Antonio Lopes, diretor do grupo musical, em frente ao sobrado

Grande proprietário de terrenos e imóveis, o açoriano naturalizado brasileiro possuía também uma extensa chácara na região do estádio Olímpico (antiga sede do Grêmio).

A pequena rua entre a Avenida Azenha e o Largo dos Campeões, nomeada Dona Cecília, homenageia a esposa do comendador, Cecília Barcelos da Silveira e Souza.

Ele próprio foi homenageado com denominação dada à Travessa Comendador Batista, entre a Rua da República e a Sarmento Leite, na Cidade Baixa.

Possivelmente com dificuldades financeiras, a família do comendador transferiu a posse do sobrado da Rua da República para o Estado do RS em junho de 1969. Ali foi instalado o colégio Olintho de Oliveira, que antes funcionava num prédio da Rua José do Patrocínio, entre Joaquim Nabuco e Venâncio Aires. 

Em 1983, o imóvel foi doado pelo governo estadual para a prefeitura, mas continuou sendo usado pela escola.

Embora não seja tombado, o imóvel está inventariado na EPHAC (Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural) de Porto Alegre dentro do critério de “estruturação”, o que significa que devem ser preservadas suas principais características arquitetônicas, como fachadas, esquadrias e cobertura.

Nos últimos tempos, o casarão abrigava a área administrativa, além de biblioteca, sala de audiovisual e arquivo de documentos do Olintho de Oliveira. Era tido como “lugar proibido” pelos alunos não só em função das fissuras e rachaduras nas paredes (fatores que levaram à interdição do prédio, em 2012), mas também pela fama de ser mal-assombrado, como descreve estudo feito por Leandro Balejos Pereira para o PPG em Ensino de História da UFRGS, em 2016.

Para os músicos, certamente não há riscos na utilização do sobrado após as correções providenciadas pela reforma estrutural, que se encontra em fase de conclusão. Quanto aos fantasmas, se é que estão lá, eles certamente estarão entretidos com a boa música executada pela Banda Municipal, instituição que ocupa lugar destacado na história cultural de Porto Alegre.

Paulo César Teixeira