Voz, corpo e alma
Com um olhar experimental e feminino, Paola Kirst faz do corpo e da voz instrumentos de expressão poética. Conheça a história da cantora que ganhou o troféu Revelação no Prêmio Açorianos de 2019
Cantora, compositora e performer, Paola Kirst construiu em pouco tempo uma trajetória de impacto usando o corpo e a voz como instrumentos de expressão poética. Em suas canções, o cotidiano se transfigura sob o prisma de um olhar experimental e feminino.
Na quarta-feira, 27/3, essa trajetória original e bem-sucedida foi reconhecida com o troféu Revelação do Prêmio Açorianos de Música de 2019, na categoria MPB, distinção ao disco de estreia Costuras Que Me Bordam Marcas na Pele, gravado junto com o Kiai Grupo para o selo independente Escápula Records, com influências de samba. jazz, hip hop e rock.
— Vivo muito cada conquista. Cada coisinha que a gente faz é uma vitória. Eu já me sinto premiada só por lançar um disco. Mas é claro que o Açorianos representa um reconhecimento importantíssimo, ainda mais estando ao lado de tantos amigos talentosos que participaram da premiação, diz Paola.
Antes de ganhar o Açorianos, ela já havia chamado atenção ao abrir shows de Nei Lisboa e Vanessa da Mata e cantar com bandas como Mulamba e Dingo Bells. Tinha feito participações em discos de Thiago Ramil, Dona Conceição, Três Marias e Daniel Debiagi, entre outros. Destacou-se também em festivais como a 32ª Moenda da Canção, em Santo Antônio da Patrulha, em 2018, ocasião em que recebeu o prêmio de melhor intérprete com a música Abandonada, parceria com o violonista Neuro Júnior.
Natural de Rio Grande, no extremo sul do RS, Paola alinha no palco elementos não só de distintos ritmos musicais, mas também de teatro, dança e poesia. A movimentação cênica, em particular, agrega a experiência de intervenções performáticas aperfeiçoadas durante o curso de bacharelado em Artes Visuais na FURG (Universidade Federal de Rio Grande).
Entre as influências que incidem sobre seu trabalho, Paola cita, entre outras, a moçambicana radicada em SP Lenna Bahule, que também usa a voz como instrumento percussivo. Menciona ainda a cantora e compositora Thays Prado e as cantautoras e pesquisadoras da cultura popular do grupo As Três Marias, que igualmente marcam presença no RS.
— Faço parte de uma geração com muita coragem para expor suas entranhas. Tenho a dádiva de estar próxima a mulheres que têm muito a dizer. Estamos sempre juntas, incentivando umas às outras, afirma.
assobio de aia
O músico e jornalista Arthur de Faria conta que escutou pela primeira vez a voz de Paola Kirst num show na Reitoria da UFRGS para o qual foi conduzido por jovens instrumentistas que, junto com ele, integram a banda Orkestra do Kaos.
– Lembro que a Reitoria estava lotada. Os meninos já eram fãs de Paola, mas eu não a conhecia e fiquei espantado. Paola mostrou uma capacidade técnica e uma consciência de cantora e intérprete que eu não tinha visto ainda na geração dela, não só em Porto Alegre, mas no Brasil. É também uma compositora notável, elogia Arthur.
Em julho de 2018, Arthur convidou Paola para participar de um show em São Paulo com a Ultralíricos Arkestra, ao lado de Ná Ozzetti e Mário Manga (do grupo Premeditando o Breque), nomes históricos da vanguarda paulistana, e da percussionista Mariá Portugal (assista ao vídeo aqui).
– O espetáculo tinha músicas que algumas cantoras com longas carreiras em São Paulo se recusaram a cantar em função da complexidade da interpretação. Paola chegou no primeiro ensaio com tudo em cima, e cantou sem dificuldades. Gostaria de trabalhar mais com ela no futuro, sugere ele.
Criada na Vila Junção, bairro de gente humilde em Rio Grande, ninguém antes havia feito carreira de artista na família, mas ela cresceu num ambiente musical, pautado pelas batucadas na mesa feitas pelas mãos do pai, que gostava de pagode, como, de resto, todos os familiares.
Estamos falando de seu João José, bombeiro aposentado e ex-treinador de um time de futsal feminino, além de artesão, curioso, piadista e muito amigo dos três filhos – pela ordem de aparição, Joseane, Diego e Paola.
– Eu carrego muito de meus pais e meus irmãos no que sou hoje, a caçula de 30 anos, com muito orgulho, diz.
Mais que o batuque paterno, o assobio de improviso da mãe – Ana Jurema, agente comunitária de saúde e ex-jogadora de futsal – embalou a infância de Paola. Aos cinco ou seis anos de idade, logo depois de aprender a emitir o som, a criança virou quase um passarinho. A tal ponto que, convidada para exercer o papel de aia no casamento de uma vizinha, distraída, a menina entrou assobiando na igreja. A voz da mãe ressoou na igreja, entre risadas dos presentes:
– Façam essa criança parar de assobiar, pelo amor de Deus!
Goiaba de casa
Mais crescidinha, ela cantava Sandy e Júnior o dia inteiro enquanto a irmã escutava Djavan e o irmão aderia ao rap.
– Lembro que não gostava da batida do rap, aquele ruído me incomodava, recorda ela.
Inquieta, Paola desde cedo exprimia a intensidade de um corpo que gosta de se mexer, hoje tão nítida no palco. Fazia ginástica olímpica e artes marciais e era baterista numa banda de rock, além de estudar dança e teatro. Sobrava tempo para tocar escaleta (teclado de sopro) na banda marcial do colégio Emílio Luiz Mallet — para quem não sabe, Rio Grande tem larga tradição de fanfarras e bandas marciais.
– Era quase uma brincadeira, mas ajudou a criar um senso de responsabilidade graças aos compromissos de ensaios e apresentações.
Cidade portuária é assim — fluxo constante de gente, idiomas, assobios. Um caldeirão de culturas em movimento, que forja e tempera uma alma de artista.
– A identidade é a mistura, sintetiza Paola.
Não à toa, Rio Grande é berço de músicos reconhecidos nacionalmente, como Marquinhos Fê e Luís Mauro Vianna. Envolvida na cena local, Paola viveu intensamente a agenda de shows e festivais como espectadora antes de conquistar um lugar no palco.
A Goiaba de Casa foi a primeira banda da qual ela fez parte, com Dionísio Souza (baixo), Vinícius Puccineli (violão e percussão), Bernardo Grohs (percussão) e Cleiton Oliveira (violão). A banda privilegiava uma pegada percussiva inspirada numa encruzilhada de sonoridades — entre outras referências, ecoavam os timbres de Os Tincoãs, lendário trio do afro pop brasileiro da década de 1960, surgido no Recôncavo Baiano, e Churupaca, grupo constituído à beira do rio da Prata, em 2011, com uma fusão de ritmos e melodias portenhos, caribenhos, judaicos e balcânicos.
Antes de se dispersar pelas correntes de Rio Grande e do resto do planeta, a Goiaba de Casa deixou um disco gravado há três anos, “quase pronto” para ser lançado, à espera de finalização.
Já do Kiai Grupo ela era fã antes de se integrar à banda formada pelo tecladista Marcelo Vaz, o baterista Lucas Fê (sobrinho de Marquinhos Fê) e o baixista Dionísio Souza, este o mais próximo, com quem já tinha atuado na Goiaba de Casa.
– Eu era louca pelo Kiai. Em todo lugar que eles tocavam, eu ia atrás. Até que fizeram uma reuniãozinha e decidiram me convidar para cantar com eles, conta Paola, com um sorriso maroto.
PEDRA REDONDA
Há cinco meses, Paola se mudou de mala e cuia para Porto Alegre, após ficar três ou quatro anos na ponte rodoviária entre Rio Grande e a capital do Estado.
Para gravar o álbum Costuras Que Me Bordam Marcas na Pele, Paola e os guris do Kiai montaram acampamento na casa do músico e produtor Wagner Lagemann, na zona sul de Porto Alegre, onde opera o Estúdio da Pedra Redonda. Não é figura de linguagem: o disco foi gravado na sala de estar.
– O Wagner literalmente abriu as portas da casa para nós. Ficamos lá uma semana, convivendo intensamente, relata Paola.
Além de produzir o álbum, Wagner captou, mixou e masterizou as faixas guiando-se pelo instinto de deixar fluir ao máximo a sintonia entre Paola e os músicos.
– Eles possuem uma conexão transcendente, assegura ele.
Entre os parceiros que ajudaram a criar o repertório, estão o artista visual e rapper Thiago Madruga (na canção Cais) e Thielle Pinho (Pão com Mel). Uma das canções de maior repercussão, Charlie 04, sobre a violência contra a mulher, é parceria com Juliano Guerra. Já o pintor e escritor Carlos Medeiros, de Rio Grande, é coautor de Inverno.
Além do Kiai Grupo, outro formato com o qual Paola se apresenta ao público reúne Tamiris Duarte (baixo), Neuro Júnior (violão de sete cordas) e Pedro Borghetti (bombo leguero), esse último namorado da cantora. A rigor, nessa formação, são dois casais no palco.
— Somos todos muito amigos e estamos sempre próximos, diz Paola.
Paola conheceu Pedro num festival em São Lourenço do Sul. Sobre o pai do namorado, o acordeonista Renato Borghetti, o Borghettinho, ela diz:
– É um grande incentivador das carreiras dos filhos, por consequência, da minha também.
Por sinal, Paola vai se apresentar na Fábrica de Gaiteiros, projeto que o sogro promove em Barra do Ribeiro, no dia 13 de abril. Mais tarde, em 8 de maio, vai mostrar pela primeira vez um show completo no Theatro São Pedro com o Kiai Grupo no Festival El Mapa de Todos — o espetáculo terá tradução em LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) de Joseane Kirst, irmã de Paola, para que o público surdo também possa vivenciar a música e compreender suas letras.
Antes disso, neste final de semana, no sábado dia 30/3, Paola estará ao lado da bailarina Paula Finn no bar Parangolé, na Cidade Baixa, num espetáculo com participação especial do violonista Thiago Colombo. Excelente oportunidade para conferir a imensa capacidade de expressão poética de uma artista que reúne a um só tempo voz, corpo e alma.