A praia de Porto Alegre
Brique da Redenção completa 41 anos como um espaço de convívio democrático com lugar cativo no coração dos porto-alegrenses
“A partir deste fim de semana, haverá uma grande Feira de Artesanato todos os domingos pela manhã no Parque da Redenção, no trecho da Avenida José Bonifácio junto à igreja Santa Terezinha.”
A nota acima foi publicada pela Folha da Tarde no século passado, mas, com poucas alterações, bem que poderia ter saído na edição de hoje do antigo vespertino.
A Folha da Tarde já não existe, mas o Brique da Redenção – feira que reúne aos domingos, entre nove horas da manhã e seis da tarde, 300 expositores, com 180 artesãos, 40 artistas plásticos e 70 antiquários, além de dez barracas de alimentação – está completando 41 anos com um lugar cativo no coração dos porto-alegrenses. Em dias ensolarados, chega a aglutinar até 60 mil pessoas, que circulam pelos 800 metros de extensão do canteiro da Avenida José Bonifácio, junto ao Parque da Redenção.
— O Brique é a sala de estar de Porto Alegre. A gente chega aqui domingo pela manhã para abrir a sala e receber as pessoas da melhor forma possível, diz João Batista da Rocha, um dos fundadores da feira, dando uma pausa no atendimento ao público na barraca 99, onde expõe bolsas, cintos e acessórios de couro que produz com as próprias mãos.
O hábito dominical se enraizou a tal ponto entre os porto-alegrenses que, hoje, é como se o Brique fosse a “praia” da capital gaúcha – além de atração turística (quem nunca levou algum parente ou amigo vindo de fora para conhecer a feira?), é lugar de passeio e ambiente saudável de convivência democrática a céu aberto, acessível a todos sem distinção de classe, etnia e credo religioso ou político.
Além disso, o Brique é palco privilegiado de manifestações culturais e políticas. Músicos de rua, artistas de teatro e dança, malabaristas, mímicos, capoeiristas e estátuas vivas se misturam a ativistas políticos e candidatos em campanha, em épocas de eleição. A via pública se transforma em cenário de festa e cidadania.
Com tudo isso, a vida pulsa no Brique da Redenção. Ali, há sempre algo agradável à espreita prestes a acontecer, como conhecer novos amigos ou reencontrar velhos conhecidos, os quais havíamos perdido de vista há bastante tempo.
O Brique da Redenção despontou no mapa de Porto Alegre em março de 1978, quando a José Bonifácio passou a abrigar aos domingos a Feira de Pulgas. Com peças raras e colecionáveis, como joias, móveis, livros, revistas e discos de vinil, tinha como inspiração as feiras de San Telmo, de Buenos Aires, e Tristán Narvaja, de Montevidéu. Até os dias atuais, a mostra de antiquários posiciona-se nas duas quadras mais próximas à Avenida João Pessoa, nas redondezas da Travessa da Paz.
O evento ganhou maior dimensão quatro anos depois, a partir da iniciativa de um jovem casal – Berenice Aurora de Medeiros e Paulo Alberto Filber —, que havia se conhecido na Esquina Maldita, aglomerado de bares localizado na Avenida Osvaldo Aranha junto à Rua Sarmento Leite, nas cercanias do campus central da UFRGS.
Boêmia e artesã, Berenice se dedicava à pintura de utensílios domésticos de madeira com temas campestres, seguindo a tradição alemã do bauernmalerei, artesanato rústico com origem no século VII. Professor de Educação Física numa escola para alunos especiais, Paulo Alberto fabricava brinquedos educativos de madeira, que serviam para o desenvolvimento de crianças excepcionais, além de peças que se destinavam à pura diversão.
No início dos anos 1980, o casal notou que a Redenção recebia um público crescente, gente que saía de casa para encontrar amigos, tomar chimarrão ou se jogar no gramado do parque para curtir a natureza, enquanto assistia a incipientes apresentações de música, capoeira e teatro de bonecos.
Apesar disso, a borda da Redenção margeada pela José Bonifácio estava longe de atrair a população, muito em função da prostituição masculina, que até hoje acontece no local à noite. Alheia a preconceitos, Berenice percebeu que havia espaço nesta área do parque para abrigar uma feira de artesãos. E foi à luta.
Além da má fama da José Bonifácio, ela enfrentou a desconfiança que existia em relação ao ofício dos artesãos, ainda erroneamente confundidos pela sociedade da época com a figura de maltrapilhos, sujos ou drogados.
— Tomei chá de banco e escutei grosserias em salas de espera de gabinetes até conseguir autorização de abrir a feira, disse Berenice em depoimento para o livro Esquina Maldita, de Paulo César Teixeira (Libretos, 2012).
Com o sinal verde das autoridades, ela divulgou uma convocação pública para atrair expositores nos jornais Correio do Povo, Folha da Tarde e Zero Hora e na Rádio Bandeirantes FM (embrião da Ipanema FM), além de ser entrevistada no programa Guaíba Feminina, apresentado por Tânia Carvalho, na antiga TV Guaíba.
— Eu tremia pra dedéu, mas aí a Tânia me acalmou e eu consegui falar tudo direitinho em frente à câmera, contou Berenice.
No dia da inauguração da feira (24 de abril de 1982), apareceram 60 artesãos, que ocuparam a área junto ao alambrado do Estádio Ramiro Souto, dentro do parque, mas não por muito tempo.
Quer saber como era a feira de artesanato no começo da década de 1980? Clique nas fotografias abaixo (a exemplo da foto acima de Berenice com Mano José, estas também fazem parte do acervo pessoal da fundadora do Brique e foram cedidas para a elaboração do livro Esquina Maldita).
De vez em quando, a bola de futebol explodia na cerca, fazendo com que as bolsas penduradas no alambrado se espalhassem pelo chão. Mas esse não foi o maior problema.
A galera se viu obrigada a abandonar o local por exigência da Secretaria do Meio Ambiente, uma vez que a legislação já naquela época proibia a realização de feiras dentro de parques. O que fizeram os artesãos?
Paulo Eduardo Grala tinha escutado a mensagem de Berenice na Bandeirantes FM e se apresentado para expor no primeiro dia da feira. Ele lembra que, quando veio a ordem de levantar acampamento, juntou as tralhas e cruzou a pista da José Bonifácio para fincar âncora no canteiro da avenida, a exemplo dos demais artesãos.
— Na época, nem barraca tinha, era só uma mesinha. Andei numa linha horizontal em direção ao canteiro e me fixei neste ponto onde estou até hoje, relata o dono da barraca 81, entre as ruas Santa Terezinha e Vieira de Castro.
Na verdade, o que era para ser um transtorno – a proibição de trabalhar dentro do parque – se transformou em vantagem comercial. No canteiro, a feira ganhou visibilidade e passou a atrair cada vez mais compradores.
— As pessoas paravam os carros para olhar a novidade. A cada domingo, aumentava o movimento, assinala Paulo Eduardo.
O número de expositores cresceu rapidamente até a feira de artesanato alcançar o Mercado de Pulgas, do lado oposto da avenida, contando com a adesão de artistas plásticos, que atualmente expõem telas, caricaturas, xilogravuras e esculturas. Mais tarde, o Brique da Redenção agregou barraquinhas com lanches como quibe, pastéis, empadas e sucos, além de produtos embalados como mel e biscoitos caseiros – parte delas está estacionada junto ao portão do Colégio Militar, outra na esquina com a Rua Santana.
Clique nas imagens abaixo para observar flagrantes da agitação colorida que toma conta da José Bonifácio a cada domingo (Fotos/Maria Inez Gelatti).
Em 1990, o trânsito de veículos foi suspenso aos domingos durante a realização da feira por lei municipal para fazer da pista da José Bonifácio uma área de lazer com segurança para o público. Em 2005, o Complexo Brique da Redenção foi declarado Patrimônio Cultural Imaterial do RS por uma lei estadual. Pena que, 15 anos depois, por não ter sido ainda regulamentada, a legislação resguarde apenas o valor simbólico do evento.
– Não surtiu efeitos práticos, determinando, por exemplo, o que deve ser feito para preservar adequadamente o espaço, aponta Evilázio Rodrigues Domingos, presidente da Associação dos Artesãos do Brique da Redenção, entidade criada no ano 2000. Ele expõe objetos de prata na barraca 165.
O descaso do poder público com um dos principais pontos turísticos da cidade se manifesta, por exemplo, na falta de manutenção do banheiro do parque ou de fiscalização da ação de vendedores irregulares. Também não existe cuidado em relação à poda de algumas árvores que, com galhos apodrecidos, ameaçam a segurança física de expositores e transeuntes.
Lá no começo do Brique, não existia calçamento no canteiro da José Bonifácio – uma terra avermelhada cobria os sapatos e sandálias de quem batia pernas na feira. Atualmente, o trajeto está calçado, mas já se perdeu no tempo a data da última reforma do piso. A limpeza do local também não é assídua.
— Somos nós que varremos de manhã cedo, diz Alfredo Larre, uruguaio que expõe trabalhos com madeira e cerâmica na barraca 18, próxima à Igreja Santa Terezinha. Ele veio para Porto Alegre no começo da década de 2000 graças a um intercâmbio da Câmara de Comércio do Uruguai e não mais voltou para Montevidéu. — Conheci uma gaúcha e fiz família. Aí já era..., comenta.
Evilásio acredita que um dos motivos para que as autoridades não priorizem o Brique é a dificuldade de lidar com o padrão de organização da feira, que é independente do poder público. Desde 1984, as regras de funcionamento obedecem a um regulamento criado pelos próprios expositores, com aprovação do departamento jurídico da prefeitura. Entre as normas, está a que institui edital público para admissão de novos participantes do evento.
— É a nossa Bíblia, cita Alfredo.
Seja como for, ninguém duvida que o sonho de Berenice se realizou com plenitude. Paulo Filber morreu em junho de 1992, sendo homenageado no domingo seguinte no Brique com flores brancas e amarelas, que enfeitaram as bancas de artesanato. Algum tempo depois, Berenice decidiu morar com os filhos em Canoa Quebrada, praia ocupada pelos hippies na década de 1970 que, atualmente, é um dos principais pontos turísticos do litoral cearense. A artesã-mãe morreu de parada cardíaca em outubro de 2012, pouco antes de completar 57 anos.
– A Berenice foi a mãe do Brique. Nós somos os agregados que tomaram conta da cria e tocaram o projeto em frente, ressalta Evilázio, com bom humor.
Hoje em dia, a feira de artesanato do Brique da Redenção é a única no Brasil formada exclusivamente por produtores. Mesmo feiras consagradas, como a da Praça da República (em São Paulo), apontada como berço do artesanato de rua no País, da Afonso Pena (Belo Horizonte) ou do Largo da Ordem (Curitiba), já admitem a participação de vendedores que comercializam obras de terceiros.
Não é pouca coisa, ainda mais considerando que o ofício de artesão, algumas vezes, dá a impressão de estar com os dias contados, de acordo com Evilásio:
– Gosto do que faço, mas é uma profissão que está se perdendo, como tantas outras engolidas pela tecnologia. Em Capão da Canoa, onde moro, dos 30 expositores que participam da feira local, só cinco produzem o que vendem. Quer saber? A gente é um pouco como Asterix, diz ele, referindo-se ao gaulês que, no enredo da HQ, resiste na trincheira de uma pequena aldeia à invasão das tropas romanas.
João Batista é outro disposto a resistir:
— Ser artesão é um ideal de vida alternativa, que está na cabeça e no coração. De minha parte, eu continuo sendo hippie, conclui.