A Lanchera do Ildo
Garçom que marcou época na Lancheria do Parque se prepara para abrir sua própria casa no coração do Bom Fim
Um dos garçons mais benquistos e admirados de Porto Alegre está prestes a inaugurar seu próprio restaurante.
A Lanchera do Ildo foi anunciada nas redes sociais na terça-feira, dia 30/4, pelo mais novo empreendedor do ramo da gastronomia da cidade, o ex-garçom Ildo Berté, que durante 21 anos envergou o jaleco da Lancheria do Parque, ponto clássico do Bom Fim. Em duas horas, a página no Facebook registrou mais de duas mil visualizações, enquanto o celular de Ildo não parava de soar com mensagens de saudações de futuros clientes, algumas delas vindas de lugares longínquos como Inglaterra e Moçambique. A inauguração foi confirmada para acontecer no domingo, dia 16/6, na Rua João Telles, 378 (esquina com Henrique Dias).
— É gente que eu conheci na Lancheria, da mais alta sociedade até a mais humilde, e que deseja conhecer a nova casa, relata ele.
Desde que saiu da Lancheria do Parque, em agosto do ano passado, Ildo estava recolhido ao sítio de Viamão, onde mora com Heloísa Helena, com quem está casado há 18 anos, e o filho Anselmo, de 16 anos. Além de curtir os bons ares viamonenses, a família aproveitava as esticadas até a casa na praia, em Pinhal, para pedalar à beira do mar, um dos passatempos prediletos do ex-garçom.
Não faz muito, Ildo decidiu abrir mão da vida mansa para encarar novos desafios:
— Porto Alegre me deu tantas coisas boas e percebo que hoje anda meio entristecida. Quero criar um ambiente afetivo para que as pessoas voltem a sorrir. Um lugar para encontrar os amigos, sem preconceitos ou discriminação. É uma maneira de retribuir tudo o que a cidade me proporcionou, diz ele.
Ele chegou à capital do RS em 1992, aos 23 anos, vindo de Nova Bréscia, onde havia se formado no magistério e trabalhado na área de saúde da prefeitura, além de ter escrito e dirigido peças de teatro em comunidades de jovens.
A primeira oportunidade surgiu como atendente de uma cafeteria da Casa de Cultura Mario Quintana, onde era obrigado a trabalhar de terno e gravata-borboleta. De lá saiu em 1996 para vestir o jaleco e o boné da Lancheria do Parque, lugar em que se transformou num dos mais famosos garçons da cidade.
— Ildo é o tipo de pessoa que nunca passa despercebida. É um ser iluminado com coração de ouro, diz o músico Flávio Flu Santos, assíduo frequentador da Lancheria do Parque e, certamente, futuro cliente do restaurante a ser aberto na João Telles.
Ildo não virou celebridade à toa. Ele cumpre seu ofício com carisma e eficiência. Sabe, por exemplo, a preferência de bebida e comida da maior parte dos clientes, que conhece pelo nome. Não raras vezes, sentava-se à mesa entre as colunas da Lancheria do Parque para consolar criaturas. Nessas horas, virava até conselheiro sentimental.
— Se via uma menina chorando por ter brigado com o namorado, parava de atender para sentar com ela e conversar. Cuidar das pessoas para mim é o mais importante.
Outra virtude é lidar com o público infantil sem fazer cara feia. Para entreter os pequenos, fingia que ia roubar batata frita do prato deles. Na hora da saída, segurava a mão das crianças como se não fosse deixá-las ir embora.
— Algumas que eu peguei no colo cresceram e viraram clientes depois, conta ele, orgulhoso.
O período de mais de duas décadas servindo sucos mistos, torrada com ovo, x-salada e x-coração, além de muita cerveja, é claro, num dos restaurantes mais populares de Porto Alegre, frequentado por diferentes tribos, representou uma faculdade e tanto. Não bastasse a diversificação de público, a experiência ficou ainda mais rica com as edições do Fórum Social Mundial em Porto Alegre.
— Tive a chance de conhecer outras culturas, novas ideias. Para um gringo de Nova Bréscia, abriu a cabeça, constata.
Além disso, o ambiente democrático da Lancheria permitia que os garçons acomodassem os fregueses em lugares vagos das mesas, sem que os ocupantes se incomodassem com a presença de um desconhecido. Sim, a boemia do Bom Fim era diferente e a cidade era outra.
— As pessoas tinham a cabeça mais aberta, vinham conversar no bar a respeito de coisas importantes do dia a dia. Hoje, já não acontece com tanta frequência, lamenta.
Já aposentado, em 2015 decidiu dar um tempo no batente para se dedicar à família. Houve comoção geral, com direito a festa de despedida prestigiada por centenas de amigos e clientes, que transbordaram da lancheria, espalhando-se pela calçada da Avenida Osvaldo Aranha.
Um ano depois, retornou para substituir um colega que havia adoecido. O combinado era ficar pouco tempo, mas ele cedeu aos apelos do patrão e de frequentadores para que continuasse na labuta.
Em agosto de 2018, porém, pendurou de vez a bandeja devido a fortes dores na coluna, resultado do árduo esforço feito por mais de duas décadas em turnos de no mínimo 12 horas, mas que às vezes se estendiam por 14 horas, sempre de pé, correndo de um lado para outro da lanchonete.
— O psíquico cansa mais, assegura ele.
De lá para cá, Ildo fez fisioterapia para curar as dores lombares, além de viajar com a família para descontrair. Fora isso, estudou gestão empresarial no Senac, já se preparando para quando aparecesse a oportunidade de fundar o próprio negócio.
— Quando soube que a Simone (Simone Otto, chef e proprietária da Cozinha de Afrodite) queria passar o ponto, vim logo dar uma olhada e vi que o lugar tinha a minha cara.
Ainda não há uma data definida, mas a abertura da Lanchera do Ildo deverá acontecer nos primeiros dias de junho. Antes disso, o espaço vai passar por ampla reforma sob a responsabilidade dos arquitetos Alessandra Fassina e Eduardo Paiva Ribeiro, do escritório Urban de Arquitetura e Urbanismo.
Diferente da Lancheria do Parque, a nova casa é pequena e aconchegante. Ildo pediu aos arquitetos que, na parte interna, se inspirassem nos botecos tradicionais do Rio de Janeiro, onde esteve recentemente. Já está decidido que, do lado de fora, o estilo será arrojado, com mesas pretas e cadeiras cor de laranja.
No cardápio, Ildo vai misturar opções artesanais da culinária gaúcha com pratos cosmopolitas que descobriu na internet. No primeiro caso, estão receitas típicas alemãs como o pernil recheado com cuca, além do chuletão no disco (roda de ferro usada no lugar da chapa) e do gauchíssimo entrevero (prato de carne e legumes).
Da culinária globalizada, Ildo dá a receita de sucesso de um restaurante de Chicago:
— Com a panela cheia de azeite quente, mergulha dez espetinhos de costelinha de porco enrolados em bacon. Deixa fritar até ficar crocante, em seguida dá um banho de vinagre balsâmico e passa farofa. Fica uma delícia, garante.
Não faltará a tradicional A La Minuta. E, para os que não apreciam carne, também haverá opções a exemplo do lanche vegetariano do México, feito de pão, queijo, cenoura, tomate e uma rodela de abacate.
O restaurante funcionará de terça a domingo, das dez da manhã às dez da noite.
– Está faltando em Porto Alegre um lugar como esse, onde as pessoas possam ficar juntas para se fortalecer. Estamos cada vez mais presos a um estilo de vida solitário, em frente ao computador, navegando na internet, e não é isso que sustenta a nossa vitalidade, diz a psicóloga Luciana Knijnik.
Ela acredita que a Lanchera do Ildo poderá suprir com sobras essa lacuna.
– Ildo tem uma afetividade genuína, a gente sente um acolhimento da parte dele, que não exige nada em troca. Isso é o que alimenta a alma, finaliza Luciana.