A saideira do Dinarte
Garçom que marcou época no Bar do Beto lança biografia contando histórias sobre três décadas da noite de Porto Alegre
Desde o guri arteiro do Vale do Taquari e o rapazinho assustado recém-chegado a Porto Alegre até o aprendiz das madrugadas. Também não ficam de fora o estudante incansável e o advogado combativo, muito menos o marido apaixonado e o pai amoroso.
Todas as faces de um dos mais populares e queridos garçons de Porto Alegre estão expostas em textos e imagens em De Bandeja – A História de Dinarte Valentini (Editora Arvoredo Books, 123 páginas), livro que traz depoimento prestado ao jornalista e pesquisador Marcello Campos. O lançamento aconteceu na terça-feira, 25/6, no Bar do Beto.
– Gosto de ler desde criança e esse livro é a realização de um sonho, que venho construindo há duas décadas, desde que retomei os estudos. Espero que também sirva como exemplo de vida. Afinal, boa parte do caminho que percorri até agora não deixa de ser um resumo das alegrias e dificuldades de uma rapaziada que deixa o Interior gaúcho em busca de oportunidades, afirma Dinarte.
A iniciativa do livro foi antecipada por reportagem do Rua da Margem – A Despedida de Dinarte – publicada em 23 de setembro do ano passado, quando ele anunciou a aposentadoria após 30 anos de profissão. No último dia de trabalho, em 22 de outubro, data em que comemorava exatos 26 anos como garçom do Bar do Beto, uma verdadeira romaria de amigos se deslocou até o tradicional boteco da Avenida Venâncio Aires para abraçá-lo.
De lá para cá, Dinarte passou a se dedicar como profissional exclusivamente à advocacia, atividade que já exercia em paralelo desde 2011, além de dispor de mais tempo para curtir a família (casado com Cláudia, tem duas filhas, Caroline, de 26 anos, e Paola, de 23). Frequentemente, ao sair do escritório no Menino Deus, ao cair da tarde, dá uma passadinha no Bar do Beto para rever os amigos.
A tarefa de ajudá-lo a contar a trajetória de vida ficou em boas mãos – biógrafo atento e minucioso, Marcello Campos se especializou na reconstituição da vida cultural de Porto Alegre, especialmente com perfis ligados à música popular. Na bagagem, traz obras sobre Lupicínio Rodrigues (O Almanaque do Lupi), Alcides Gonçalves (Minha Seresta) e Conjunto Melódico Norberto Baldauf (Week-End no Rio).
psicólogo da noite
Marcello conhecia Dinarte apenas como frequentador do Bar do Beto quando flagrou o garçom entre seus alunos do curso supletivo Mauá, onde dava aulas de Arte ao final dos anos 1990. Dinarte, que havia frequentado o ensino formal até o 4º ano primário, estava experimentando os primeiros passos para retomar o aprendizado, missão que seria concluída em 2009, quando se formou em Direito pela UniRitter.
No Mauá, no começo de cada semestre, o professor aplicava um teste para indagar, entre outros itens, quais livros os alunos estavam lendo a fim de tirar a febre a respeito do grau de conhecimento da turma.
— Eram trabalhadores humildes, de pouca leitura, alguns se limitavam a ler a Bíblia, mas Dinarte surpreendeu ao citar a trilogia Sexus, Plexus e Nexus, de Henri Miller. A partir daí, ficamos amigos, conta Marcello.
Em De Bandeja – A História de Dinarte Valentini, a narrativa inicia em 1989, quando Dinarte aos 17 anos de idade deixa a casa dos pais, pequenos agricultores de Doutor Ricardo, para viver uma montanha-russa de emoções em seu primeiro dia na capital do RS. Antes disso, jamais havia ultrapassado os limites da cidade natal. Pior: ao anunciar a intenção de se mudar para Porto Alegre, tinha escutado do pai – seu Paulino – a sentença:
— Já que quer tanto ir, então, vai. Mas não me volta mais para casa, mesmo se der errado.
Havia uma promessa de emprego na Churrascaria São Rafael, na Avenida Protásio Alves, mas ao bater à porta do restaurante soube que a vaga já estava preenchida. Ainda bem que conseguiu pouso no alojamento de funcionários da São Rafael e, alguns dias depois, ganhou a vaga herdada de um garçom que acabara de ser demitido.
Como não poderia deixar de ser, o livro tem passagens divertidas como o dia em que Dinarte quase apanhou de um anão em frente ao Bar do Beto. Relembra também episódios em outros locais de trabalho como o Tia Dulce, onde um bêbado desamarrou os sapatos e tirou os carpins dos pés para apimentar a sopa. Há ainda relatos emocionados de clientes que Dinarte aconselhou em situações de embaraço emocional.
– O garçom é um psicólogo da noite, costuma dizer Dinarte.
Conforme Marcello Campos, Dinarte é um exemplo típico e bem acabado de networking, termo em inglês que indica a facilidade de estabelecer redes de contatos e conexões. Só que, no caso de Dinarte, nada é premeditado, e sim consequência da própria maneira de ser dele, como destaca o pesquisador:
— Por onde passa, Dinarte mantém vínculos e deixa rastros de amizades. A personalidade pública não está desvinculada do ser humano. Não tem como separar, diz Marcello.
Como sobremesa, a biografia traz em suas últimas páginas um mural (imitando o mural de recados pendurado na parede do Bar do Beto) com 130 depoimentos de patrões e ex-patrões, colegas, clientes, amigos e familiares – a lista inclui desde políticos como o ex-governador Olívio Dutra até ex-jogadores de futebol a exemplo de Baidek, ex-zagueiro do Grêmio, passando por músicos nativistas como Daniel Torres. Aliás, o prefácio é assinado pelo cantor e compositor João de Almeida Neto.
Convidado a resumir a personalidade de Dinarte, Marcello não economiza elogios:
— É um sujeito que sabe construir pontes entre as pessoas. Um homem de sorriso largo, mente aberta e coração sempre pronto para o abraço.