As cores do invisível

Livro mostra as relações entre negros e imigrantes europeus em áreas pobres de Porto Alegre logo após a abolição da escravatura

Casal de negros da capital gaúcha em 1900 (Coleção Lunara/Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo/Fototeca Sioma Breitman)

Casal de negros da capital gaúcha em 1900 (Coleção Lunara/Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo/Fototeca Sioma Breitman)

Nos anos que sucederam a abolição da escravatura no Brasil, em 1888, os negros que haviam se libertado do jugo de seus senhores coexistiram em áreas pobres e degradadas de Porto Alegre com imigrantes europeus, não apenas italianos e alemães, mas também judeus, pomeranos e poloneses.

Como eram as relações entre essas duas populações de trabalhadores é o tema de Além da Invisibilidade: História Social do Racismo em Porto Alegre durante o Pós-Abolição (EST Edições), livro lançado no dia 5/7 pelo historiador Marcus Vinícius de Freitas Rosa.

Pesquisa tem origem em tese de doutorado de 2014 na Unicamp

Pesquisa tem origem em tese de doutorado de 2014 na Unicamp

Ao contrário da maioria de seus compatriotas recém-chegados ao Brasil, esses europeus não se embrenharam em rincões para ganhar a vida com enxadas nas mãos. Preferiram tentar a sorte na capital gaúcha, o que os levou a repartir ambientes urbanos insalubres com ex-escravos.

As duas classes subalternas foram vizinhas em áreas da Cidade Baixa, como a Rua da Margem (atual João Alfredo), o Areal da Baronesa (onde hoje está instalado o Quilombo do Areal) e a Ilhota (conjunto de casebres próximo à Praça Garibaldi desmantelado nos anos 1960), além da Colônia Africana (na fronteira entre os bairros Bom Fim e Rio Branco).

Uma das descobertas da investigação é a de que, mesmo entre populações pobres, a discriminação por causa da cor se sobrepunha ao nivelamento social, como destaca o historiador:

— A pele branca era um trunfo para os trabalhadores pobres de origem europeia, ainda que fossem todos, brancos e negros, miseráveis, morando à beira de um riacho imundo. É como se dissessem: “Pelo menos, somos brancos”.

Conforme ele, o processo de deslocamento da população pobre das áreas centrais da cidade para regiões periféricas afetou bem mais as comunidades negras do que os agrupamentos de imigrantes. Esses últimos não apenas teriam dado aval para a expulsão dos vizinhos, como pediram, em diversas ocasiões, a intervenção da polícia e das autoridades de higiene do município para afastar a população negra dos locais.

— Até aqui, a maioria dos estudos mostrou que essas ações se davam por iniciativa das elites e do poder público com o pretexto de higienização e modernização do espaço urbano. A pesquisa mostrou que isso, de fato, aconteceu, mas também evidenciou que os moradores brancos, tão pobres e miseráveis quanto os negros, igualmente participaram desse processo, diz Marcus Vinícius.

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“Na relação entre vizinhos brancos e negros, a questão racial se sobrepunha ao nivelamento social”

Marcus Vinícius de Freitas Rosa

O pesquisador formado no curso de História da UFRGS foi atraído pelo tema há 20 anos, quando investigava as origens do carnaval de Porto Alegre e os espaços lúdicos ocupados por trabalhadores negros na virada do século XIX para o XX. O material publicado em livro agora tem origem na tese de doutorado que ele apresentou no PPG de História da Unicamp, em 2014.

Além da Invisibilidade: História Social do Racismo em Porto Alegre durante o Pós-Abolição é o primeiro livro que Marcus Vinícius assina sozinho – em 2017, havia participado da obra coletiva Pessoas Comuns, Histórias Incríveis – A Construção da Liberdade na Sociedade Sul-Rio-Grandense, que relata a experiência de africanas, africanos e seus descendentes na sociedade pós-abolição no RS.

Para realizar a pesquisa, Marcus Vinícius utilizou fontes como plantas da cidade e registros de impostos prediais, além de cruzar informações da crônica policial com dados de processos judiciais sobre conflitos entre vizinhos.

O historiador aponta que o período de desagregação do sistema escravagista – não custa lembrar que o Brasil foi o último país a abolir a chaga social – e a fase pós-abolição coincidiram com o aparecimento de grande quantidade de associações de classe ligadas a profissões como padeiro, pedreiro e estivador, entre outras. À medida que essas entidades lideradas por trabalhadores brancos não davam conta das demandas sociais, econômicas e culturais da população negra, essa criava suas próprias instituições.

Uma das mais antigas é a Sociedade Floresta Aurora, fundada em 1872, portanto, bem antes da abolição da escravatura.

Para se ter ideia, na década de 1890 havia em Porto Alegre 37 associações negras. Além disso, de 1892 a 1930, circulou o jornal semanal O Exemplo, porta-voz das comunidades de ex-escravos e seus descendentes. Com o subtítulo “Jornal do Povo”, foi criado no Salão de Barbeiros Calisto,na Rua da Praia, nº 247. A publicação atendia a um público crescente, uma vez que os negros passaram a se alfabetizar em aulas noturnas fornecidas pelas associações étnicas, as quais supriam a lacuna de um serviço de responsabilidade do poder público.

A Colônia Africana, no limite entre os atuais bairros Bom Fim e Rio Branco, foi um dos espaços repartidos por populações negras e de imigrantes europeus no período pós-abolição

A Colônia Africana, no limite entre os atuais bairros Bom Fim e Rio Branco, foi um dos espaços repartidos por populações negras e de imigrantes europeus no período pós-abolição

Na maior parte dos casos, as aulas eram dadas por negros que haviam se instruído durante o serviço militar ou com apoio de instituições religiosas como a católica Irmandade do Rosário, que promovia a educação para “homens de cor”.

Conforme Marcus Vinícius, todas essas evidências desmentem o senso comum de que a abolição havia pego a população negra desprevenida e desorganizada.

— Ficou a ideia de que os negros estavam perdidos, não sabiam para onde ir depois de 13 de maio de 1888, mas a vida associativa no período anterior e no pós-abolição mostra que a população negra estava organizadíssima, conclui o pesquisador.

O lançamento do livro aconteceu na sala 102 da Faculdade de Educação da UFRGS (Rua Paulo Gama, 110, Campus Central), tendo sido organizado pelo GT Emancipações e Pós-Abolição e o Laboratório de Ensino de História. Na ocasião, o autor deu uma aula pública sobre o tema da obra.

Para quem quiser saber mais detalhes sobre o tema, Além da Invisibilidade: História Social do Racismo em Porto Alegre durante o Pós-Abolição está à venda na Livraria Ladeira (Rua General Câmara, 385, Centro Histórico), além de disponível no portal Estante Virtual.