Os caminhos do Santiago

obra do cartunista santiago, um dos mais premiados do brasil, é contraveneno para tempos sombrios


Cartum inédito de Santiago, especialmente cedido para Rua da Margem, destaca o posicionamento crítico que marca a obra multipremiada do artista: “Bons desenhos sempre mostram a opinião do cartunista”

Cartum inédito de Santiago, especialmente cedido para Rua da Margem, destaca o posicionamento crítico que marca a obra multipremiada do artista: “Bons desenhos sempre mostram a opinião do cartunista”

O guri era atrevido. No ginásio, fazia caricaturas de professores em sala de aula – alguns achavam graça, outros nem tanto. Quando um político da cidade se elegeu vereador com a plataforma de erguer um mictório na praça central, o jovem desenhou o edil emparelhado com o prefeito, um padre e um general, todos de costas, inaugurando a obra.

— O desenhista é movido a indignação. Humor gráfico sem posicionamento crítico não funciona, afirma Neltair Rebés Abreu, 68 anos, o Santiago, como é mundialmente conhecido.

O apelido é alusão à terra natal, Santiago do Boqueirão, situada na região das missões jesuítas e batizada de Terra dos Poetas, por causa da tradição artística do município.

— Inventaram esse dístico, mas o grande Aureliano de Figueiredo Pinto, um dos maiores expoentes da poesia regionalista, que sempre viveu lá, era de Tupanciretã. Já o Caio Fernando Abreu foi mais importante como contista. Talvez o Túlio Piva (compositor de música popular) conte mais como poeta, esclarece ele.

Em Santiago do Boqueirão, na década de 1960, só havia uma forma de divulgar os desenhos – as imagens corriam de mão em mão entre amigos e conhecidos. A maior parte nem voltava para o autor. Desde então, muita coisa mudou na vida do cartunista.

Santiago se transformou num dos desenhistas de humor mais premiados do Brasil – quando a coleção de troféus ultrapassou a marca de quatro ou cinco dezenas, ele parou de contar. O reconhecimento vem de salões de humor promovidos em países como França, Espanha, Alemanha, Canadá, Japão, Bulgária e Turquia, entre outros. Sem falar nas premiações nacionais – no Salão Internacional de Humor de Piracicaba, por exemplo, foi tantas vezes agraciado que ganhou o cargo de "presidente de honra" do evento, em 1991.

Os diplomas de premiação mais relevantes estão guardados em molduras numa das paredes da sala com janela para a calçada do sobrado em que mora há mais de 20 anos numa travessa da Cidade Baixa. É o escritório de trabalho.

— Eu chamo de meu cantinho de exibicionismo, diz ele, um pouco envergonhado, apontando os quadros na parede. Em seguida, contesta a própria fama de papa-prêmios: — Os cartunistas da nova geração, como Moa (Moacir Knorr Gutterres), Rafael Corrêa e Rodrigo Rosa, já me botaram no chinelo. Hoje em dia, têm muito mais prêmios do que eu.

Pura modéstia. Em 1994, a revista Witty World incluiu Santiago na seleta lista dos 13 melhores desenhistas do mundo no gênero gag cartoon (cartum de uma só cena), ao lado de celebridades como Quino, Sempé e Aragonés.

Santiago: reconhecido e com desenhos expostos em países como EUA, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão e Uruguai

Santiago: reconhecido e com desenhos expostos em países como EUA, Canadá, França, Alemanha, Itália, Japão e Uruguai

Apesar das comodidades da era digital, os trabalhos de Santiago têm, literalmente, a mão do artista, que desenha no papel. Além disso, o colorido é também feito manualmente com aquarela. Só depois a imagem é digitalizada, com mínimas intervenções para corrigir pequenas manchas ou outros defeitos. Não que o criador de personagens como o Macanudo Taurino Fagundes, típica figura do pampa gaúcho, tenha preconceito ou má vontade com o tal do computador.

Para os álbuns em quadrinhos, por exemplo, dispõe de “alfabeto próprio” graças a um software que digitalizou a caligrafia do cartunista. Ainda assim, não raras vezes ele se mostra contrariado com a perfeição das letrinhas:

— Gostaria que fossem mais artesanais. Me falaram de um programa de computador que faz a letra dar uma dançadinha, diz, mostrando-se curioso.

Colecionador de gibis desde criança, Santiago só publicou HQs na idade madura, após se aposentar. Ambos os álbuns – Causos do Santiago (Editora Zarabatana, 2013) e A Menina do Circo Tibúrcio (Libretos, 2017) – misturam lembranças de infância e juventude com descobertas feitas em viagens pelo mundo afora.

— Sobrou mais tempo depois da aposentadoria. Cada álbum de histórias em quadrinhos demora dois anos para ser feito, anota ele, que já tem material esboçado para outra obra de HQs, além do projeto de reunir em livro os cartuns premiados em salões de humor.

Dos 18 livros já publicados, um dos que mais gosta é Retroscópio (LP&M Pocket, 2010), narrativa histórica em forma de desenhos, que inicia com a descida do homem à Lua, em 1969 – um cartum amador, que não havia sido publicado antes –, até o registro da eleição do primeiro presidente negro dos Estados Unidos, Barack Obama, em 2008.

Nunca duvidou que abraçaria o ofício do desenho de humor, mas chegou a cursar Arquitetura na UFRGS nos anos 1970. Bem que aproveitou as aulas de perspectiva e ecoline (espécie de tinta aquarela), mas, quando empacou nas cadeiras técnicas, pediu transferência para o Jornalismo, curso que também não concluiu, a exemplo de Belas Artes.

— Costumo dizer que sou formado em três faculdades incompletas, brinca.

Em 1975, os desenhos de Santiago apareceram no Quadrão, seção de humor da Folha da Manhã, editada pelo ex-colega da Faculdade de Arquitetura Edgar Vasques e José Guaraci Fraga. Naquele ano, foi contratado como ilustrador e chargista da Folha da Tarde, que também fazia parte da Companhia Jornalística Caldas Jr. Foi o começo da trajetória profissional, que conta também com passagens pelo Jornal do Comércio e ABC Domingo e publicação em veículos da imprensa alternativa, como O Pasquim e Coojornal.

Atualmente, colabora com os jornais Extra Classe, do Sinpro (Sindicato dos Professores da Rede Privada), João de Barro, da APCEF (Associação do Pessoal da Caixa Econômica Federal) e Brasil De Fato RS.

Com frequência, os desenhos de Santiago aparecem também em livros didáticos, como este cartum reproduzido abaixo, bastante requisitado por publicações escolares que abordam temas ecológicos.

Cartum premiado no Salão Internacional de Humor de Piracicaba (SP), em 1978.

Cartum premiado no Salão Internacional de Humor de Piracicaba (SP), em 1978.

Aliás, a ecologia está presente na obra de Santiago desde o início da trajetória do desenhista.

— Madruguei nisso. Quando cheguei a Porto Alegre, nos anos 1970, o movimento ambientalista era bastante forte, relembra Santiago, que ainda pretende publicar um livro “verde”, só com desenhos ecológicos.

Desenhista é uma profissão solitária. Desde que passou a trabalhar em casa, sente falta do convívio com os colegas de redação, com os quais trocava ideias acerca dos desenhos recém saídos da ponta do lápis. A internet até possibilita compartilhar esboços e trabalhos em andamento com os amigos, nada que substitua o contato pessoal.

— Sou do tempo em que se tomava cafezinho com o Mario Quintana no intervalo do trabalho. Quer coisa melhor do que isso?, pergunta Santiago, que foi colega do poeta na Caldas Jr.

Na arte do humor, Santiago aponta como ídolos representantes da velha guarda, a exemplo de Jaguar, Ziraldo e Quino, mas também é fã das gerações que vieram depois. Além dos já mencionados Moa, Rafael Corrêa e Rodrigo Rosa, cita o autor das tiras do Armandinho, Alexandre Beck:

— O Armandinho segue a linha da Mafalda, do Quino, ao usar a falsa ingenuidade da criança para revelar muitas coisas. Gosto também do Edu Oliveira, que depois de sair da Zero Hora se soltou e tem feito desenhos excelentes.

Merecem elogios igualmente o mineiro Cau Gomez e o paulista Dalcio Machado, além de representantes da novíssima geração, como João Montanaro, de 23 anos, mais jovem cartunista a publicar na Folha de S. Paulo.

A vida dos cartunistas de todas as gerações não anda fácil. Fonte de inspiração e matéria-prima para o humor, a cena política também exala receios e preocupação, especialmente com o avanço da censura, ainda que de forma velada, não só no Brasil.

No começo de julho, o New York Times anunciou a suspensão de sua página de cartuns, depois que uma ilustração foi considerada antissemita pela comunidade judaica nos Estados Unidos. Na caricatura, o primeiro-ministro de Israel, Benyamin Netanyahu, aparece como cão-guia de um cego personificado pelo presidente americano Donald Trump.

Em junho, o canadense Michael de Adder havia sido afastado de alguns jornais com os quais colaborava após desenhar Trump se preparando para jogar golfe sobre corpos de imigrantes afogados.

Para completar a leva de más notícias, a revista Mad, bíblia do humor satírico, com 67 anos de circulação, comunicou que deixará de publicar material inédito, limitando-se a reproduzir antigos cartuns.

Menos mal que – não custa repetir – o desenhista de humor é fustigado por tudo aquilo que lhe causa indignação e, atualmente, sobram motivos para o cartunista se indignar. Com isso, o vigor e a criatividade da produção de humor gráfico constituem um contraveneno indispensável para a sobrevivência em tempos sombrios.