Alegria, liberdade e cerveja gelada
A história do Escaler, bar que marcou o Bom Fim como ponto boêmio e cultural ao final do século 20, agora está contada em livro
Poucos lugares representaram tão bem a efervescência dos anos 1980 em Porto Alegre quanto o bairro Bom Fim, principal reduto boêmio e cultural da capital gaúcha ao final do século 20. E, no Bom Fim, havia um ponto de convergência que encantou duas ou três gerações de porto-alegrenses como espaço de cultura e lazer ao ar livre, embaixo de jacarandás e do brilho da lua, junto ao Parque da Redenção: o Escaler, bar fundado em 1982 por Antônio Calheiros, o Toninho do Escaler.
Agora, a trajetória do Escaler está contada em depoimento de Toninho ao jornalista Paulo César Teixeira, editor do Rua da Margem, ao longo das 196 páginas de Escaler: quando o Bom Fim era nosso, Senhor!, livro lançado no dia 31/8, em live no Facebook pela Ballejo Cultura & Comunicação.
Não faltam histórias para contar.
Para quem não sabe, Escaler é sinônimo de bote salva-vidas – tudo a ver com a profissão à qual Toninho se dedicou durante 12 anos (oficial da marinha mercante), antes abrir o boteco em 24 de outubro de 1982, na banca até ali ocupada pela peixaria Guaíba, no Mercado do Bom Fim.
No princípio, era um bar diurno, que oferecia sucos e lanches naturais na onda de boa saúde e harmonia com a natureza, que começava a despontar entre a juventude.
Mas, a partir do verão de 1984, quando estendeu o expediente até tarde da noite, o Escaler passou a reunir uma plêiade de tribos tão díspares quanto punks, góticos e metaleiros, que se juntavam aos remanescentes da onda hippie e aos primeiros rappers da praça.
Essa mistura de galeras distintas convivia harmoniosamente num ambiente democrático, principalmente durante os shows aos domingos, a partir do final da tarde.
— Tinha tudo a ver com a concentração de pessoas ligadas à arte e à cultura – anota o saxofonista King Jim, um dos fundadores da banda Garotas da Rua.
— Era o gueto underground da cidade – acrescenta Marco Aurélio Lacerda, o Coié, líder de grupos de blues como Neon e Rabo de Galo.
Alguns shows do Escaler atraíram milhares de espectadores, caso dos espetáculos das bandas Câmbio Negro e Bandaliera e da cantora Anne Perec. Mas nenhum superou o de Bebeto Alves, em 6 de março de 1988, que aglutinou uma multidão calculada pela Brigada Militar em 8 mil pessoas ao redor do bar e outras 20 mil circulando pelo Bom Fim.
— O Escaler nunca mais foi o mesmo. Mais do que isso, o Bom Fim jamais foi igual depois daquele acontecimento — diz Toninho.
A plateia tomou conta da Avenida José Bonifácio até encostar na porta da Igreja Santa Terezinha, impedindo a entrada dos fiéis que chegavam para a missa das seis da tarde.
— Acho que, pela primeira vez, desde 1931, quando a igreja foi inaugurada, não teve missa dominical na Santa Terezinha. Imagina, era a igreja onde as moças ricas casavam — conta o dono do Escaler.
Para completar a confusão, um dos habitués do bar, totalmente embriagado, subiu ao palco completamente nu, exceto pela gravata amarrada em volta do pescoço.
Na manhã seguinte, uma ação judicial assinada por 17 entidades civis e religiosas exigia o fechamento do bar. Mas a Justiça deu ganho de causa ao Escaler, sob a alegação de que a área do parque era destinada ao lazer e à recreação.
— Nem o Papa fecha o Escaler! — vibrou Toninho.
Ainda assim, depois do escândalo, ele fez um acordo com o padre para que, na hora da missa, o microfone do Escaler silenciasse em sinal de respeito.
Outra fonte de aglomeração eram as reuniões dançantes dominicais, com os DJs Marconi de Mattos, Wilton Souza e Kafu Silva, que Toninho aponta como origem do Baile da Cidade, promovido anos depois pela prefeitura dentro do Parque da Redenção.
Redenção esquina roda-gigante
Para ampliar ainda mais o movimento, Toninho inventava ações de marketing, que eram divulgadas preferencialmente em spots na Ipanema FM. Aliás, a voz de Kátia Suman, hoje uma das mais conhecidas do público, estreou nas ondas do rádio na propaganda do Escaler que anunciava o novo horário noturno do bar, localizado na “Redenção esquina roda-gigante”.
Na época das Diretas Já (movimento em favor da volta da eleição direta para Presidência da República, após 20 anos de ditadura militar), em 1984, Toninho pôs uma urna dentro do boteco. Para votar, bastava trocar a cédula por uma garrafa de cerveja na boca do caixa. Pelo menos no Escaler, Leonel Brizola realizou o sonho que acalentou por toda a vida: elegeu-se presidente do Brasil!
Já em 1986, foi instalada uma luneta para que os frequentadores pudessem admirar o cometa Halley. Para dar mais graça à campanha Cometa Amor no Escaler, ele ainda chamou três estudantes de Astronomia da UFRGS para que ficassem a postos a fim de dar esclarecimentos aos clientes sobre o fenômeno celestial.
Para facilitar a visualização, o prefeito Alceu Collares até mandou apagar as luzes da Redenção, mas foi tudo em vão – ao contrário de 1910, quando havia deixado um rastro luminoso de tirar o fôlego dos espectadores, na década de 1980 o Halley cruzou o céu discretamente, com pouca visibilidade. Do ponto de vista do marketing do Escaler, não houve decepção:
— A cada manhã, eu juntava uma constelação de garrafas vazias de cerveja espalhadas ao redor do bar — recorda Toninho.
O Escaler foi também palco de movimentos de vanguarda para a mudança de hábitos e costumes na Porto Alegre dos anos 1980.
Entre o prédio do Mercadinho do Bom Fim e a praça de esportes Ramiro Souto, dentro da Redenção, havia um espaço de 20 mil metros quadrados, encoberto por duas fileiras de árvores.
Ali, os frequentadores do Escaler fumavam maconha longe dos olhos dos PMs que patrulhavam o parque. Batizada de fumódromo, foi provavelmente uma das primeiras áreas livres para se desfrutar do baseado em público na América Latina, deduz Toninho:
— Não fazíamos apologia da maconha, mas defendíamos – já naquela época – a liberdade de escolha de cidadãos e cidadãs adultos e responsáveis por seus atos.
Mencionado pela historiadora Sandra Pesavento como um dos territórios que enraizaram as novas “sociabilidades cotidianas” na capital do Rio Grande do Sul, no livro Memória Porto Alegre – Espaços e Vivências (Editora da Universidade, 1991), o Escaler durou até 2006,
— Foi o local mais libertário e revolucionário do Bom Fim. Em parte, pela sensação de liberdade de se estar ao ar livre, junto à Redenção, mas também – e principalmente – pela proposta do bar, que se somava à onda da contracultura — afirma o jornalista Emílio Chagas.
Modestamente, Antônio Calheiros resume as pretensões do Escaler numa frase:
— Tudo o que eu queria era vender cerveja com democracia e felicidade.
Escaler: quando o Bom Fim era nosso, Senhor! conta ainda o período de declínio do Bom Fim, quando a repressão policial correu solta nas madrugadas da Avenida Osvaldo Aranha & adjacências, decretando o fim do sonho do bairro como um ponto cultural e boêmio.
Revela também um pouco da história pessoal de Toninho, destacando passagens da infância em Pelotas, as viagens de carona pelo Brasil e a América do Sul e a vida de marinheiro em mar aberto.
Para o jornalista Paulo César Teixeira, a leitura do livro é uma oportunidade de reviver as milhares de histórias que ficaram na lembrança e na imaginação dos que frequentaram o Escaler, além de apresentar o bar e aquele período histórico que marcou Porto Alegre às gerações mais jovens.
— O livro deve ser lido como se estivéssemos navegando num bote salva-vidas (afinal, o significado original do nome do bar) em meio a esses tempos caretas e sombrios pelos quais estamos passando — conclui Paulo César.