O guardião do sopapo
Exposição homenageia Giba Giba, nome histórico da cultura negra do sul do brasil e incansável divulgador do mais antigo tambor gaúcho
A história já é quase uma lenda.
Aos 12 anos, Gilberto Amaro do Nascimento, o Giba Giba, tomou nos braços pela primeira vez o sopapo, um tambor de grandes dimensões (1,5 m de altura por 60 cm de diâmetro) produzido a partir de couro de cavalo e troncos de árvores, legado de escravos das charqueadas do século 19.
Historicamente, há registros do ecoar do tambor de timbre grave na região sul do Rio Grande do Sul desde 1826. O certo é que, a partir da década de 1940, foi adotado pelas escolas de samba de Pelotas e Rio Grande.
Quem apresentou o sopapo a Giba Giba foi Boto, um babalorixá de Pelotas, a terra natal do guri.
— Tu vais ser o cara deste instrumento aqui — previu o guia espiritual.
Parte dessa história está contada na exposição Giba Giba – O guardião do sopapo, aberta ao público em 19/11, que deverá ficar em cartaz até fevereiro de 2022 no Museu Júlio de Castilhos, em Porto Alegre.
A mostra é um passeio pelo universo particular do cantor, compositor e percussionista, além de ativista cultural.
— É uma das raras personalidades negras a receber homenagem de um museu no Estado. No século 21, é a primeira {no século passado, também o escritor e jornalista Aurélio Veríssimo de Bittencourt foi homenageado} — afirma Sandra Narcizo, produtora de Giba Giba nos últimos 15 anos da carreira do artista, que morreu em fevereiro de 2014.
Sandra é também curadora da mostra (junto com a diretora do Museu Júlio de Castilhos, Doris Couto) e organizadora do livro O Sopapo contemporâneo – Um elo com a ancestralidade, do músico José Madruga Baptista, pela MS2 Editora, em junho de 2021.
Além do sopapo, estão expostos no Museu figurinos de shows de Giba Giba e imagens do festival CaBoBu, que ele promoveu em Pelotas no início do século 21 para reconstituir as raízes populares do carnaval da cidade.
Em tempo: o título do festival remete às primeiras sílabas dos nomes de três mestres do sopapo – Cacaio, Boto e Bucha.
Complementa a exposição um vídeo inédito com a apresentação de um dos cinco filhos de Giba Giba, Eduardo Nascimento, tocando sopapo.
Peladas no Pão dos Pobres
Nascido em 6 de dezembro de 1936, Giba Giba se mudou com a família para Porto Alegre nos anos 1950, instalando-se numa casa da Rua Joaquim Nabuco.
Naquele tempo, a Cidade Baixa respirava carnaval. Em apenas dois quarteirões da Joaquim Nabuco, havia cinco blocos, que ensaiavam na calçada e até nos pátios das residências. O Seresteiros do Luar, por exemplo, fazia do quintal da casa da família pelotense o reduto dos ensaios.
Como a batucada se prolongava até altas horas da madrugada, lá pelas tantas, Mindoca, apelido de Maria Lúcia, a mãe de Giba, se compadecia dos foliões:
— Devem estar mortos de fome. Vou preparar uns quitutes.
A farra acabava quando Juvêncio Cardoso do Nascimento – o pai de Giba, militar que havia lutado nas revoluções de 1930 e 1932 – batia palmas no quintal. Era o sinal para o pessoal ir embora.
Em frente, tinha o bloco Viemos de Madureira, do tio de Ortunho (lateral-esquerdo que marcou época no Grêmio, nos anos 1960). Já na Rua João Alfredo, reinava o Nós, os Democratas. Havia também blocos humorísticos, como o Tô Com a Vela, que encenava paródias de enterro, carregando caixões pelas ruas do bairro.
Giba Giba dizia que, em meio àquele alvoroço, as famílias da Cidade Baixa tinham o hábito de passar a noite nas calçadas, bebendo chimarrão ou cerveja e comendo pastéis.
— Eram núcleos de convivência social de ambiente saudável. Se fosse hoje, os vizinhos chamavam a polícia — disse ele, em entrevista para a revista Aplauso, em 2003.
Outra diversão eram as peladas no campinho de chão batido da Igreja do Pão dos Pobres, na Rua da República.
Giba era lateral-esquerdo e tinha como ídolo Oreco, que jogou no Internacional de 1950 a 1957.
Ele guardou por muito tempo na memória uma tarde de domingo, quando participou do clássico das redondezas, que juntava os times da Joaquim Nabuco e da Baronesa do Gravataí.
— O campo estava lotado. Entrei de bundinha em pé, as neguinhas tudo em volta, olhando. Eu me sentia o próprio Oreco.
Naquele dia, recebeu do técnico Maquinho a missão de marcar Jorginho, ponta-direita baixinho e atrevido, com a orientação de dar um chutão na bola para bem longe, sempre que estivesse em apuros.
— Eu pensei: ‘Oreco jamais daria um chutão. Vou matar no peito e me consagrar’.
Numa fração de segundos, a bola escapou de seus domínios. O ponta arisco correu até a linha de fundo e cruzou na cabeça do centroavante Carlinhos.
— Sai! Sai! Sai! — gritava Maquinho, à beira do campo.
Placar final: 1 x 0 para o time da Baronesa. Acabou ali a carreira futebolística de Giba Giba.
Menos mal que, em seguida, ele passaria a acompanhar os sambistas que se apresentavam no bar da Dona Doca, na esquina das Ruas Barão e Baronesa do Gravataí, tocando surdo e tamborim.
Para desgosto de Mindoca, que temia as “más companhias” da boemia, o moleque abraçou a carreira de músico.
— A Cidade Baixa foi meu chão. É a capital da brasilidade, onde se concentram os artistas de Porto Alegre — dizia Giba.
senso de ancestralidade
Na década de 1960, Giba Giba trabalhou no Hospital de Pronto Socorro, ao mesmo tempo que fazia shows em barzinhos da Capital.
Com o tempo, a carreira artística se impôs, o que fez com que ele ganhasse protagonismo não só nas lides carnavalescas – é um dos fundadores da Praiana, primeira escola de samba de Porto Alegre, em 1960 –, mas também nos movimentos musicais que agitavam a cidade.
Em 1967, participou do conjunto bossa-novista Canta Povo (com João Palmeiro, Mutinho, Ivaldo Roque e as irmãs Sílvia e Laís Marques) e, em 1970, do grupo tropicalista Mordida na Flor (com Wanderley Falkenberg, Luiz Sant’Anna, Neri Caveira, Siboney e a cantora Maria da Graça Magliani.
Teve ainda experiências teatrais como a montagem de As criadas, de Jean Genet, do grupo Aldeia II, exibida num teatro-garagem na subida da Rua Santo Antônio, em 1969.
Giba Giba aparecia em cena como um dos atores negros que formavam o coro da peça (à maneira das tragédias da Grécia Antiga), que incluía também o coreógrafo e bailarino Rubens Barbot, o marchand Renato Rosa e a artista plástica Maria Lídia Magliani (irmã de Maria da Graça).
Na época, Giba Giba era casado com a antropóloga Maria Bethania Ferreira, com quem teve dois filhos. Foi ela que o incentivou a criar suas primeiras canções (em algumas delas, o casal compunha em coautoria).
— Comecei a registrar por escrito coisas que ele dizia em momentos de inspiração e depois mostrar esses registros para ele. Foi como dar uma chave-mestra. Ele não parou mais de abrir caminhos para textos e melodias — revelou Maria Bethania (hoje radicada na França), em reportagem do Jornal do Comércio.
A partir daí, a trajetória do músico deslanchou, em paralelo à de militante da cultura afro-brasileira.
Giba Giba chegou a ocupar cargos públicos nos anos 1990 – além de integrar o Conselho Estadual de Cultura do RS, foi assessor de assuntos afro-açorianos da Secretaria Municipal de Cultura de Porto Alegre, embora questionasse expressões como “afrodescendente”.
— Alguém é lusodescendente? Francodescendente? Sou negro e pronto, e me orgulho disso — disse ele, certa vez, ao poeta e publicitário Luiz Coronel.
Ele enfrentou a desconfiança de lideranças do movimento negro por se envolver com o aparato estatal.
— Jamais perdeu o senso da ancestralidade. Na cabeça dele, estava abrindo portas para que outros negros também entrassem. Dizia: “Eu preciso estar no lugar em que todos os negros deveriam estar” — defende Sandra Narcizo.
acervo inédito de herança
Em toda a trajetória, Giba Giba gravou apenas um disco individual: Outro um, lançado em LP e CD em 1992 (atualmente esgotado).
O álbum rendeu ao artista o Prêmio Açorianos de Música, nas categorias Melhor Disco e Melhor Compositor, de 1993 (ele também foi agraciado ao longo da vida com outras honrarias, como a Medalha da Cidade de Porto Alegre e o Prêmio Quilombo dos Palmares).
Entre as canções mais conhecidas de Giba Giba, estão Lugarejo e Feitoria. Além das músicas que reconstituem o rastro cultural dos descendentes de africanos, compôs também Tassy, em tupi-guarani, gravada pela dupla Kleiton e Kledir.
Quando morreu, vítima de um câncer no duodeno, planejava comemorar o cinquentenário da carreira com a gravação de outro CD, desta vez, dando ênfase ao samba.
A direção musical caberia a Rildo Hora, maestro pernambucano que produziu discos de sucesso de Beth Carvalho, Fundo de Quintal e Zeca Pagodinho (essa última parceria resultou na conquista de quatro Grammys latinos nos anos 2000). Tia Surica, da Portela, e o uruguaio Rubén Rada também haviam acertado suas participações no CD.
Como se não bastasse, Giba tinha assegurado financiamento da Funarte para realizar uma turnê de 50 shows para divulgar o álbum.
Não deu tempo para nada disso, mas – se serve de consolo – a exposição em cartaz no Museu Júlio de Castilhos é apenas uma pequena amostra da herança criativa que Giba Giba deixou.
Há um acervo inédito, que inclui cartas, crônicas e outros escritos que Sandra Narcizo, responsável pelo espólio artístico, por decisão da família do músico, espera algum dia transformar em livro.
— De letras, já contei 318, cada uma mais incrível que a outra — diz ela.
Há também áudios de canções a capela, algumas gravadas ao telefone.
— Giba não era da Terra, e sim do etéreo. Pouca atenção dava ao registro do que fazia. Então, eu pedia para ele cantar e gravava para que aquilo não se perdesse — acrescenta a produtora.
A intenção é que todo esse material receba abrigo de uma instituição privada, para que possa ser catalogado e preservado em condições adequadas, longe de umidade, fungos e outras ameaças de deterioração. Para isso, já há conversações com duas organizações, incluindo uma grande universidade.
No dia 6 de dezembro, a cantora Maria Lúcia Sampaio, acompanhada de Toneco da Costa, fez show no Museu Júlio de Castilhos, como parte da comemoração dos 85 anos de nascimento de Giba Giba. E, para 2022, a ideia é que a exposição atualmente em cartaz em Porto Alegre percorra um roteiro itinerante por quatro municípios do interior do RS até fechar o circuito em Pelotas.
Homenagem mais do que merecida ao guri que cumpriu à risca a profecia de mestre Boto e se transformou num incansável guardião do mais antigo e autêntico tambor gaúcho.