Faça você mesmo
Empreendedores aprendem a realizar sonhos de modo pragmático e solidário no Galpão Makers
O sol bate com força sobre a fachada do velho depósito da Rua Gaspar Martins ao final da manhã. Poucas árvores amenizam a aridez da paisagem do Quarto Distrito, uma antiga área industrial de Porto Alegre que, aos poucos, ganha novos sinais de vida. Um deles é o Galpão Makers, espaço coletivo de criação e produção de pequenos empreendedores, próximo à esquina com a Avenida Farrapos.
Lá dentro do prédio de 750 metros quadrados, duas dezenas de empreendimentos repartem não só a área física, mas também máquinas e redes de fornecedores. Além de diminuir custos, o compartilhamento permite melhorar a qualidade dos processos de trabalho e da infraestrutura, desde a utilização de ferramentas até a velocidade de internet. Há quem fabrique bicicletas e móveis customizados. Alguns montaram escritórios de arquitetura e design ou ateliês de iluminação e confecção. Não falta quem se dedique a tarefas pesadas de marcenaria, enquanto outros constroem esculturas em pedra e madeira.
– A maior parte vem de experiências profissionais nas quais não se sentiam confortáveis. É o meu caso. Pessoalmente, nunca fui feliz trabalhando de forma convencional, diz logo no começo da conversa o arquiteto Lucas Busato, um dos cinco gestores do Galpão Makers.
O galpão foi fundado há dois anos e meio por Fábio Schmidt, da Solabici, que monta bikes com quadros feitos à mão pela República da Bicicleta, outra empresa com base no antigo depósito revitalizado da Rua Gaspar Martins. Nenhum dos gestores fez grandes investimentos para dar início à empreitada. Foi tudo no peito e na raça.
– Cada um disponibilizou o corpo, as ferramentas e a vontade de trabalhar, diz Lucas.
Ao se mover pelo primeiro piso, Lucas precisa levantar a voz. Este é o território da produção movida por máquinas que rugem e espalham sujeira pelo chão. Fabrício Mentiaca Diehl é o marceneiro mais experiente – corta a madeira desde os 16 anos de idade (hoje está com 32). Para ele, a principal vantagem de trabalhar aqui é a colaboração entre os parceiros.
– Um ajuda o outro. Você pode contar com as outras pessoas na hora do aperto, seja para conseguir uma ferramenta ou um pedaço de madeira que está faltando.
Fabrício é um dos residentes que dividem a área coletiva por R$ 300 mensais. Outra categoria é a dos conectados, que usam eventualmente o lugar ao custo de uma diária de R$ 75. A modalidade mais cara é dos residentes fixos, que possuem baia privativa – o valor da mensalidade oscila entre R$ 600 e R$ 1.600 de acordo com a metragem ocupada. É o caso de Leandro Pantera, que trabalha com design, corte e gravação a laser. Além de acesso 24 por dia ao galpão (o expediente dos demais se limita ao horário comercial), ele tem direito de instalar maquinário próprio nas baias e, eventualmente, até alugá-lo para os colegas, caso esteja disponível.
punk cibernético
Antes de subir a escada para mostrar o restante do galpão, Lucas faz uma parada para explicar a filosofia do Movimento Maker, que inspira o galpão e tem como marco a criação da revista Maker Magazine, nos Estados Unidos, em janeiro de 2005. O lema dessa galera é “faça você mesmo” (em inglês, “do it yourself”), expressão bem mais antiga do que se imagina. Já no começo do século passado tinha sido usada como referência a proprietários que arregaçavam as mangas para realizar por conta própria serviços de manutenção de suas casas.
Nos anos 1950, ganhou a adesão de jovens músicos britânicos com pouca grana, que adotaram o skiffle, uma mistura de folk, jazz e blue executada com instrumentos adaptados de utensílios domésticos, como tábuas de lavar roupa. Consta que a The Quarrymen, banda formada por John Lennon com amigos de escola, em 1957 (antes dos Beatles), usava como contrabaixo um cabo de vassoura preso a uma caixa de chá.
Mas o lema "faça você mesmo" se expandiu para valer na década de 1970, quando os punks passaram a boicotar lojas de grifes para inventar sua própria moda. Além de camisetas, jaquetas, cintos e acessórios, produziam álbuns e shows independentes, sem a ingerência de produtores ou gravadoras. Neste caldeirão de influências, faltava acrescentar mais um ingrediente – o acesso fácil a ferramentas tecnológicas, proporcionado pela popularização da internet no século 21.
– O punk é uma das marcas do movimento. Outra origem é a raiz tecnológica com a ação de hackers e programadores de computação, confirma Lucas. E complementa: – A ideia básica é que você não depende necessariamente de uma estrutura maior para criar aquilo a que se propõe. Por mais que não saiba como fazer, procura aprender e vai fazendo.
Além disso, embora a criação do objeto ou do serviço deva sempre atender a uma necessidade econômica previamente estabelecida, o que importa para os makers é o processo percorrido entre um ponto e outro, no qual prevalecem o aprendizado, a criatividade e o compartilhamento de experiências.
– Para nós, o processo é a chave. A meu ver, este é o maior potencial do galpão: sem deixar de lado a necessidade de cada um se viabilizar financeiramente, o que importa mesmo são as possibilidades de criação, as relações e os encontros humanos.
Lucas retoma o fôlego para superar os degraus que levam até a parte superior do galpão. Conforme subimos, o ambiente se torna mais limpo e sossegado. No segundo andar, está o ateliê Luz Feito à Mão, de Alexandre Lopes Fagundes, que produz peças luminárias a partir de sucatas e outros resíduos.
Alexandre, que também integra a equipe de gestores, acha oportuno fazer um esclarecimento: escaldado em experiências anteriores de trabalho coletivo que não deram certo, o Galpão Makers faz questão de não se enquadrar no conceito de casa colaborativa.
– A principal diferença é o processo de gestão. Numa casa coletiva, a obrigação de pagar as contas é de todos e não é de ninguém. Aqui, os gestores assumem a responsabilidade de pagar o aluguel e as demais despesas.
O terceiro andar é o lugar mais propício para trabalhos que exigem sensibilidade e concentração intelectual por estar distante da bagunça produtiva do primeiro piso. Um exemplo é a confecção de Matheus Dreher Bittencourt, que inaugurou o núcleo de moda do galpão. Antes, ele alugava uma sala comercial na Auxiliadora. Com a mudança, diminuiu os custos em 30%, mas este não foi o maior ganho:
– Lá eu trabalhava sozinho, o que dá sossego, mas às vezes é desestimulante. Até escutava um som para me alegrar. Aqui, existe o convívio e a troca de experiências com os outros residentes.
núcleo de educação e tecnologia
Os planos de expansão incluem a incorporação de uma nova área nos fundos do terreno, para onde será deslocado o maquinário mais ruidoso e que produz mais sujeira. Com isso, será possível ampliar a produção e ainda instalar um café e uma loja no salão da frente do depósito, onde o público será confortavelmente recebido.
– A partir de 2018, a ideia é que as portas do galpão fiquem abertas no horário comercial para que as pessoas possam adquirir os produtos fabricados aqui.
Fora isso, o salão da frente continuará sendo usado para oficinas e workshops, além de festas como o Dalegalpão, evento de celebração regado a música e cerveja artesanal, que ajuda a divulgar o espaço coletivo.
– Não é para gerar lucros. O objetivo é viabilizar os negócios, tanto os nossos quanto das pessoas que nos procuram, ressalta Lucas.
Existe ainda a ideia de instalar uma microcervejaria no local que, atualmente, abriga a cozinha do Galpão. Mas, sem dúvida, o plano mais ambicioso é a criação de um núcleo de educação e tecnologia no mezanino acoplado ao segundo andar do depósito. Iniciativas como essa ajudarão a disseminar o conceito de um modo de produção mais criativo e colaborativo.
– Espero que sim, afirma Lucas, pensativo, alertando que, no capitalismo, até mesmo iniciativas revolucionárias tendem a virar moda e se diluir com o passar do tempo.
Para ele, a contribuição mais valiosa do conceito "faça você mesmo" é mostrar às pessoas que elas podem, sim, mudar as relações entre elas e criar novas formas de produção por meio de ações feitas dentro do próprio sistema, como fazem, por exemplo, os hackers na cultura cibernética. Então, mãos à obra!