Gurias na ciência
Programa de extensão da UFRGS aproxima meninas das carreiras profissionais nas áreas de ciência e tecnologia
A menina gostava de olhar para o céu e, curiosa, se perguntava por que algumas estrelas – a exemplo das Três Marias – apareciam em determinadas épocas do ano e depois sumiam durante meses sem deixar rastro no firmamento.
Quando cresceu, ela transformou a brincadeira de observar as estrelas numa profissão.
Hoje, a astrônoma Daniela Pavani – diretora do Planetário da UFRGS desde junho do ano passado – sabe que sua trajetória de vida se constitui numa exceção.
Não só porque, nas ruas próximas ao condomínio em que ela morava, junto à Avenida Ipiranga, no bairro Jardim Botânico, ela e as amiguinhas subiam em árvores e jogavam futebol com os guris, mas principalmente em função da pequena participação feminina no mundo das ciências.
– Tive o privilégio de viver uma infância livre, sem diferença de gênero nas brincadeiras de rua, diz Daniela.
As estatísticas mostram que, de cada 20 pessoas com curso superior no Brasil, apenas três ocupam áreas de ciência e tecnologia e, dessas três, só uma é mulher.
– Temos aqui dois problemas gravíssimos, afirma a cientista.
O primeiro é a impossibilidade de o país abrir portas para o futuro sem a garantia de um efetivo desenvolvimento científico e tecnológico. O segundo é a discriminação das mulheres nessas áreas profissionais.
Nos últimos anos, Daniela se envolveu diretamente em programas de extensão universitária que tentam equacionar ambos os impasses. O mais recente é o Meninas na Ciência, que lança as sementes para equilibrar num futuro próximo a balança de gênero atraindo alunas dos ensinos fundamental e médio para as carreiras científicas.
– Essa diferenciação é cultural. Ela vem do costume de separar o que é coisa de homem ou de mulher, o que acaba sendo reproduzido também na escola.
Em outras palavras, por conta da influência do ambiente em que vivem, as garotas não veem a carreira científica como alternativa de profissão.
Para isso, também contribui o modelo pedagógico adotado nas escolas. Nos livros didáticos, é raro que uma mulher seja descrita como protagonista de um laboratório. Pior ainda, já houve casos de históricas contadas por aplicativos de educação científica em que o papel da personagem feminina se restringe a limpar o laboratório,
– A fala dos professores pode aprofundar a diferenciação ou, ao contrário, criar um ambiente para que para meninos e meninas aprendam ciência em condições de igualdade, sustenta a astrônoma.
A oportunidade para a criação do Meninas na Ciência apareceu em 2013, quando o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação) lançou um edital com aporte financeiro e bolsas de estudo para projetos que trabalhassem a promoção de carreiras em áreas como física, engenharia e ciência da computação para estudantes do sexo feminino.
Incentivados pela diretora do Instituto de Física da UFRGS na época, Márcia Barbosa, Daniela e o professor Paulo Lima Jr. – atualmente na UnB (Universidade de Brasília) – elaboraram a proposta que foi aprovada pelo CNPq. Daniela foi a primeira coordenadora do programa, função hoje ocupada pela professora Carolina Brito.
A iniciativa se inspirou, em parte, em experiências anteriores do Instituto de Física, das quais Daniela participou ativamente, que buscavam estimular o interesse dos jovens, independente de gênero, pelo conhecimento científico.
Uma delas é o Observatório Educativo Itinerante, que completou 19 anos. O programa de extensão promove cursos de formação em astronomia para professores de escolas públicas pelo interior do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, indo até os municípios onde eles estão sediados. Os pesquisadores, que se deslocam numa caminhonete Sprinter com telescópio e equipamentos de vídeo a bordo, aproveitam a ocasião para promover eventos de divulgação científica, como observações públicas do céu à noite, em geral na praça central da cidade.
– Foi o primeiro programa móvel da UFRGS, salienta Daniela, que coordena o projeto desde 2011.
Outra referência é o Aventureiros do Universo, programa criado por Daniela em 2012, com foco no aprimoramento do conhecimento em ciência e tecnologia de graduandos de cursos como Pedagogia, Física, Matemática e Geografia, os quais irão tratar, no futuro, como professores, os temas científicos nas escolas de educação básica. Atualmente, o Aventureiros do Universoestá sob a coordenação do professor Alan Alves Brito.
Em relação aos projetos predecessores, o Meninas na Ciência se diferencia por bater na tecla da questão de gênero.
O Meninas na Ciência começou a ser executado em 2014 com a realização de oficinas de iniciação científica, debates sobre gênero e atividades de formação de professores em escolas públicas de Porto Alegre.
As atividades com os docentes incluíam tanto a interligação de temas de física e astronomia com outras matérias quanto a discussão sobre igualdade de gênero, destacando a reflexão de professores e professoras sobre a própria postura adotada em sala de aula.
Apesar de ter o público feminino como principal alvo, os garotos também participavam das atividades nas escolas:
– Ou todos nós enfrentamos a discriminação de gênero com a contribuição de meninos e meninas ou não vamos superar essa questão, que é nitidamente cultural, assinala Daniela.
O programa teve desdobramentos como o projeto Gurias, Partiu UFRGS, que propiciava a ida de um grupo de cerca de 40 alunas do 5º ano do ensino fundamental, uma vez por mês, até o campus do Vale.
Lá, as jovens participavam de atividades na biblioteca e nos laboratórios, integrando-se à rotina de pesquisadores e universitários.
– Acima de tudo, o objetivo era mostrar que a UFRGS, como universidade pública, também é um espaço daquelas garotas e, portanto, pode estar no horizonte delas como alternativa de vida, observa Daniela.
Ainda como parte do Meninas na Ciência, foi criado o Lugar de Mulher, programa de entrevistas de cinco minutos transmitido pela TV UFRGS.
Foram entrevistadas mulheres bem-sucedidas em áreas científicas na academia e no mundo corporativo, além de alunas de pós-graduação de C & T e meninas que realizam cursos técnicos de nível médio.
Em outro momento, o programa da UFRGS abriu um braço dentro da própria universidade, considerando que também é preciso estimular as graduandas a não desistirem da carreira científica.
Além da programação teórica, que debateu a questão de gênero, foram desenvolvidas atividades práticas, como cursos de defesa pessoal – afinal, a ameaça de assaltos e estupros em áreas próximas ou dentro do campus é um temor manifestado pelas moças.
Fora isso, o Meninas na Ciência replicou uma campanha feita por alunas da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo, com a divulgação de frases machistas ditas por professores – e também professoras – dentro das salas de aula.
– Solicitamos os relatos pelo Facebook. Em 24 horas, recebemos 150 depoimentos, conta Daniela.
As frases preconceituosas e de mau gosto, a maioria dita em forma de gracejo e anedota – exemplo: “Mulher só entra na universidade para arranjar marido” – foram expostas nas redes sociais e em cartazes espalhados pelas unidades da instituição universitária, para que fossem avistadas por todo o público que frequenta a instituição de ensino.
Por essas e outras, o programa não pode ser interrompido. Após um período de dificuldades para a obtenção de recursos – em 2017, a ação perdeu os aportes externos, amparando-se apenas nos recursos escassos da UFRGS, o que obrigou os coordenadores a reduzirem as atividades – o Meninas nas Ciências recebeu uma boa notícia no começo do ano.
Ao longo de 2018, receberá recursos do Fundo Elas, fundo de investimento social voltado para a promoção do protagonismo das mulheres. Com isso, terá fôlego para dar continuidade às iniciativas que buscam reduzir a desigualdade de gênero nas áreas de C & T.
Vida longa às gurias na ciência!