Salve o viaduto
Rede Minha Porto Alegre se mobiliza para transformar arcos e escadarias da borges num espaço de convivência mais seguro e acessível para todos
Quase todo mundo conhece como Viaduto da Borges, mas o nome oficial é Viaduto Otávio Rocha.
Tombado pelo patrimônio histórico em 1988, ainda é um dos cartões-postais de Porto Alegre, apesar de sofrer com o descaso do poder público e se constituir num retrato da violência e da desigualdade social dos tempos atuais.
Tanto que a Minha Porto Alegre – rede apartidária e independente, que atua pela construção de uma cidade mais inclusiva e sustentável – está chamando a população para conversar sobre as formas de viabilizar melhorias neste logradouro histórico.
A primeira reunião pública, aberta a todos os interessados, aconteceu na segunda-feira, dia 16/7, no bar e restaurante Justo, nas escadarias do viaduto. A ideia é que tenha sido o primeiro de uma sequência de encontros, dando início a uma campanha de mobilização para transformar a área num espaço de convivência animado, seguro e acessível a todos os porto-alegrenses.
– Não temos respostas prontas, mas entendemos que é preciso agir com urgência para melhorar um local que é símbolo da capital dos gaúchos, diz Carolina Soares, a Sosô, psicoterapeuta que fundou a Minha Porto Alegre há dois anos com o economista Bruno Paim.
No dia 1º de agosto, uma ação realizada pela Brigada Militar e o DMLU Departamento de Mobilidade e Limpeza Urbana) dispersou cerca de 40 pessoas que estavam morando embaixo do viaduto, retirando colchões, barracas e demais objetos pertencentes aos moradores de rua. Sobre essa ação, a Minha Porto Alegre divulgou o seguinte comunicado:
"Para onde foram essas pessoas? Quais as necessidades delas foram atendidas? Quais estratégias para que a qualidade de vida delas melhore foram aplicadas? Problemas complexos envolvem uma série de providências, não só uma retirada brusca pela BM. 40 pessoas moravam ali. Seres humanos. Adoraríamos que a escadaria fosse um local seguro e limpo, mas sem o custo de invisibilizar pessoas que precisam de ajuda. Aplaudiriamos a ação, se com transparência tivessem posto os próximos passos para acolher essas pessoas que também são Porto Alegre".
Becos íngremes e escuros
Essa parte do Centro Histórico está intimamente ligada à memória da cidade.
A Avenida Borges de Medeiros começou a ser projetada na década de 1920, mas estava prevista já no primeiro Plano Diretor de Porto Alegre, datado de 1914, para ligar a área central às regiões leste e sul da municipalidade.
Para construí-la, havia que se ultrapassar a barreira do “morrinho” em cujo ápice se esticava a Rua Duque de Caxias. O desafio de superar o obstáculo natural fez surgir o primeiro viaduto da capital do RS.
No mapa do Centro, a Borges de Medeiros tinha como antecedente a Rua General Paranhos, “estreito beco que subia desde a Rua Andrade Neves até a Rua Duque de Caxias e dali descia em outra fortíssima ladeira até a Rua Coronel Genuíno”, como assinala o Guia Histórico de Porto Alegre, de Sérgio da Costa Franco.
Cá entre nós, a General Paranhos não guardava boa fama.
Além de “mortalmente prejudicada pela topografia”, tinha outros atributos pouco recomendáveis – “nos últimos tempos de vida, se transformara em foco de crimes e prostituição”, anota Costa Franco.
Assim, a construção da Borges de Medeiros fazia parte de um plano de remodelação urbana que converteria a região central num canteiro de obras, abrindo espaço para que vias largas de tráfego – denominadas boulevards – tomassem o lugar de becos escuros e íngremes.
O artífice dessa mudança cirúrgica foi o intendente Otávio Rocha, que governou a cidade – na época com cerca de 200 mil habitantes – de 1924 a 1928. Não à toa, é quem empresta o nome para a denominação oficial do viaduto.
Segundo o Guia Histórico de Porto Alegre, num relatório de 1925, Otávio Rocha citou a intenção de construir um “viaduto de cimento armado, em arco batido, por onde se fará a passagem da Rua Duque de Caxias”.
O documento previa também que, pela avenida de 21 metros de largura e 1.050 de comprimento, circularia “uma linha dupla de bondes, em comunicação com a Avenida do Porto (atual Avenida Mauá)”.
– É uma obra de grande relevo, que vai encurtar o trajeto para todas as linhas de comunicação dos arrabaldes Menino Deus, Glória, Teresópolis e Partenon, prometeu o intendente.
O Viaduto Otávio Rocha ficou pronto em 1932, já na gestão de Alberto Bins na intendência municipal. A obra foi executada pela empresa alemã Dyckerhoff & Widmann, de acordo com o projeto dos engenheiros Manoel Barbosa Itaqui e Duílio Bernardi, com elementos ornamentais do escultor Alfredo Adloff.
A Borges de Medeiros demorou um pouquinho mais – até 1935 – para ser entregue à população, entre outras coisas, devido a uma discórdia acerca do valor da desapropriação de um imóvel situado na esquina da Rua Jerônimo Coelho.
Abaixo, veja fotografias da construção da Borges de Medeiros e, a seguir, imagens da avenida em suas primeiras décadas de existência (Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo/Autores desconhecidos)
Caminho do Bem
Ao longo do tempo, o viaduto passou a abrigar bares, lanchonetes, barbearias, agências lotéricas, relojoarias e lojas de artesanato, além de casas para a venda de discos e fitas, artigos religiosos e até produtos para mágicos.
Atualmente, conta com cerca de 30 pontos de comércio. Além do Teatro de Arena, reduto histórico da arte de protesto no RS (fundado em 1967), a programação cultural de bares e restaurantes como Tutti Giorni, Armazém Porto Alegre e Justo contribui para incentivar a circulação de pessoas.
– As ações culturais ajudam a dar vida e segurança às escadarias. As pessoas se sentem estimuladas a se apropriar de um espaço que, a bem da verdade, sempre foi delas, salienta a fundadora da Minha Porto Alegre.
Desde janeiro, o escritório da rede funciona numa pequena sala cedida pelo Justo. Essa proximidade motiva ainda mais a ONG a melhorar as condições das escadarias.
Como se isso não bastasse, há também um componente autobiográfico: Carolina morou boa parte da infância na Rua Duque de Caxias. Aliás, o ímpeto de solucionar demandas coletivas é de família. A avó Nair foi quem se mobilizou para que a prefeitura implantasse três faixas de segurança para pedestres na Duque de Caxias, nas imediações do viaduto.
– Ela telefonou diariamente para a EPTC até conseguir, revela Carolina, orgulhosa.
Na folha de serviços prestados à cidade, a Minha Porto Alegre contabiliza 15 mobilizações que atingiram seus objetivos, nas quais estiveram envolvidas perto de 10 mil pessoas.
Um exemplo é a escadaria da Rua João Manoel, também no Centro Histórico, que há dois anos se encontrava em situação de completo abandono. Lá, a Minha Porto Alegre chamou moradores, além de responsáveis por hortas comunitárias e artistas que vivem no local, para promover um movimento de reocupação da área.
– Quem passar ali hoje vai ver crianças brincando e velhinhas tomando chimarrão, inclusive à noite. Por que não pode acontecer algo semelhante no Viaduto da Borges?, indaga Carolina, com otimismo.
Outra mobilização bem sucedida foi a campanha para a instalação de um semáforo na esquina da Rua Miguel Couto com a Dona Augusta, no Menino Deus, onde havia frequentes acidentes de trânsito. A ação foi realizada em 2015, em parceria com a ONG Vida Urgente e a associação de moradores do bairro.
De lá para cá, ninguém mais perdeu a vida naquele cantinho do Menino Deus.
– Quando me sinto desanimada por algum motivo e preciso me reerguer, abro as estatísticas para confirmar que, naquela esquina, não houve mortes desde a mobilização. Isso me dá uma tremenda alegria, diz Carolina, que é bastante sensível ao tema devido à morte por atropelamento do irmão Rafael em outra região da cidade, em tempos passados.
Em 2018, graças a uma campanha liderada pela Minha Porto Alegre, o termo “feminicídio” passou a ser incluído nos registros policiais no RS. A tipificação do crime foi adotada com o objetivo de dar maior visibilidade aos casos de assassinatos de mulheres.
A Rede criou ainda uma plataforma colaborativa para oferecer apoio psicológico sem custos para mulheres vítimas de violência sexual, com a ajuda de aproximadamente 450 terapeutas voluntários de dez cidades brasileiras.
Em paralelo, instituiu o Caminho do Bem, roteiro de iniciativas voltadas para os moradores de rua de Porto Alegre, com serviços de alimentação, albergues, abrigos, centros de atendimento social e programas culturais.
Entre outros benefícios, a iniciativa possibilitou equilibrar geograficamente a oferta de atendimento – em alguns bairros, havia superposição de grupos de apoio em ação, ao passo que, em outras regiões da cidade, existia pouca ajuda à população sem teto.
No caso do Viaduto da Borges, uma das dificuldades mais graves é a falta de acessibilidade, especialmente levando em conta a quantidade de idosos que mora nas redondezas. Outra preocupação é a segurança, especialmente à noite, sem contar a condição de vida de aproximadamente 40 moradores de rua que estão instalados sob os arcos do viaduto.
– Todas as questões são bastante complexas. Eu aqui sentada no escritório não vou conseguir resolver nenhuma delas. Por isso, a proposta é chamar as pessoas e escutar as demandas para que, juntos, possamos encontrar as melhores soluções, conclui Carolina.