Arte no Alto da Bronze

Espaço aberto à ousadia e à experimentação, a Bronze Residência é o novo polo de inovação e cultura no Centro de Porto Alegre

Inaugurada em abril deste ano, a casa que adotou o conceito de Project Space desenvolve práticas artísticas contemporâneas no Centro Histórico (Foto/Thiéle Elissa Felice Wiest)

Inaugurada em abril deste ano, a casa que adotou o conceito de Project Space desenvolve práticas artísticas contemporâneas no Centro Histórico (Foto/Thiéle Elissa Felice Wiest)

Um espaço múltiplo e efêmero, aberto a experimentações e práticas artísticas contemporâneas. 

É como se define a Bronze Residência, inaugurada há pouco mais de cinco meses pela artista visual Andressa Cantergiani, que se constitui num novo polo irradiador de inovação, arte e cultura no Centro Histórico de Porto Alegre.

– Não temos a intenção de ser uma galeria comercial, esclarece Andressa, para começo de conversa.

Não que estejam proibidas as exposições – uma das primeiras atividades foi a série Strictly, de Jason Evans, mostra de fotografias de negros vestidos como dandies nos subúrbios de Londres, com curadoria de Bernardo de Souza –, mas este não é o principal objetivo.

Bem que o espaço situado no começo da Rua Duque de Caxias, no Alto da Bronze, poderia ser denominado Open Studio ou Studio Visits, mas Andessa prefere chamá-lo de Project Space, termo abrangente que abraça a diversidade de ações ali desenvolvidas.

– O conceito é bastante difundido, principalmente, na Europa, embora no Brasil ainda esteja engatinhando, relata.

No começo de agosto, a casa foi sede de uma oficina sobre publicações independentes, coordenada por Charlene Cabral, criadora dos selos editoriais Vendo Luzes e Meteoro Edições, além de coprodutora da Folhagem, projeto que abarca feira, biblioteca e uma banca-livraria nômade.

Há também lugar para conversas abertas ao público. Em maio, a artista visual Alma Negrot (codinome drag queer de Raphael Jacques) falou sobre seu trabalho multimídia, que recorre ao corpo como ferramenta para abordar a ressignificação de arquétipos de gênero.

Antes disso, em abril, a Bronze Residência recebeu o espetáculo Fábrica de Calcinha, performance multissensorial que reproduz as sonoridades pulsantes da paisagem do Centro de Porto Alegre, com Marina Mendo, Ricardo Pavão e Marta Felizardo.

Presente, pintura de Camila Soato: homenagem a Marielle Franco criada durante estadia na Bronze Residência (Foto/Divulgação)

Presente, pintura de Camila Soato: homenagem a Marielle Franco criada durante estadia na Bronze Residência (Foto/Divulgação)

Com certeza, entre as atividades acolhidas, uma das que mais se destaca é a residência artística, ocasião em que o artista literalmente se hospeda na casa. Há, aliás, cômodos reservados para isso no terceiro piso. A intenção é criar as condições ideais para que ele possa suspender tudo o que está em volta e imergir no trabalho.

– A mim interessa cada vez menos o artista que chega com uma obra já pronta e cada vez mais aquele que vive aqui o processo de construção de novos projetos, diz Andressa.

Não faz muito, a casa hospedou a pintora Camila Soato, de Brasília, que participou da 11ª Bienal do Mercosul na capital gaúcha.

Durante a estadia no estúdio, Camila – artista com trabalho voltado para a temática feminista – concebeu e realizou Presente, pintura em óleo sobre tela que homenageia Marielle Franco, vereadora do RJ brutalmente assassinada em 14 de março. A obra foi incorporada ao acervo da Bienal em exposição no MARGS.

Com Camila, também ficou hospedada a crítica de arte e curadora-adjunta da Bienal, Paula Borghi, de SP, que usou o espaço para realizar encontros curatoriais.

Acima de tudo, estúdios como o que está localizado no Alto da Bronze são ambientes de convivência e troca de ideias e experiências entre artistas, curadores, pesquisadores e público.

De certo modo, é o que Andressa já vinha fazendo há quatro anos na gestão da galeria Península, na Rua da Praia, que encerrou as atividades em janeiro deste ano.

– A diferença é que, na galeria, não havia como hospedar os artistas. Tínhamos que encaminhá-los para hotéis, ateliers ou casas de amigos, ressalta. Em seguida, ela acrescenta: – Na Bronze, eu quis fazer algo diferente, que desse um novo sentido à minha atuação como gestora.

Arte de combate

Em julho, Andressa ficou oito dias no Museu do Exército entre relíquias da Segunda Guerra Mundial (Foto/Tadeu Vilani)

Em julho, Andressa ficou oito dias no Museu do Exército entre relíquias da Segunda Guerra Mundial (Foto/Tadeu Vilani)

Não há duvida de que a Bronze Residência tem a cara de Andressa, não só como gestora, mas também como artista. O formato inovador e inquieto do espaço espelha a trajetória da caxiense que exerce a função de administradora.

O caminho das artes estava desenhado para Andressa desde criança, quando tocava piano em casa, incentivada pela mãe.

Hoje as mãos da pianista estão "um pouco enferrujadas", adverte, mas a música continua presente em projetos como o Instant Band Girrrls – banda feminista dedicada a uma "performance sônica com voz, ruído, eletrônica e ativismo" formada ainda por Marion Velasco, Alice Porto e Mariana Kircher.  No ano passado, elas se apresentaram no bar Agulha e no festival Vênus Em Fúria, no Ocidente.

Antes de se transformar em artista visual, Andressa também experimentou as artes cênicas. Formada no DAD/UFRGS, participou de grupos como o Teatro Sarcáustico e a Companhia do Espaço em Branco.

A travessia do teatro para as artes visuais foi um processo natural, sem remorsos:

– Deixei de acreditar no formato do teatro, afirma.

É verdade que, como atriz, já trabalhava com elementos performáticos. Na última peça, Anatomia da Boneca, de 2010, por exemplo, expunha-se a um processo simbólico de dissecação do corpo, desencadeado para encontrar – em vez de vísceras e sangue – imagens e comportamentos femininos  social e culturalmente construídos ao longo da história.

Só que na dramaturgia sentia-se desconfortável com os limites impostos pela armadura das personagens. Era como se ansiasse atuar com inteira liberdade, interpretando papeis ou criações de sua própria autoria.

– De certa forma, o que faço hoje tem muitas coisas das artes cênicas. Mas, cada vez mais, me sinto instigada a trabalhar com imagens e objetos.

A sensação de encantamento com as artes visuais se acentuou ao longo do mestrado em Semiótica e Comunicação, na PUC/SP, mas ainda era algo muito teórico. A decisão de alterar o rumo da trajetória artística se consolidou mesmo ao retornar para Porto Alegre, época que coincidiu com nascimento do filho Gabriel, agora prestes a completar sete anos de vida.

Psicografando Tunga: os cabelos transformados em escultura (Foto/Edu Saorin)

Psicografando Tunga: os cabelos transformados em escultura (Foto/Edu Saorin)

Uma coisa é certa: as iniciativas de Andressa não cessam de criar espanto e desafiar áreas de conforto tanto do público quanto da própria artista.

Em Psicografando Tunga (2017), ela faz uma escultura dos próprios cabelos. Já a ação de Aterro (2015) consiste no enterro de uma figura feminina – a plateia é convidada a gentilmente jogar terra sobre o corpo da performer até que fique inteiramente coberto.

Em Morta Sim, Feia Nunca! (2016), ela estende-se imóvel e coberta com um pano vermelho bem defronte a igrejas de diferentes credos, causando estupefação e desconforto nas pessoas que saem dos atos religiosos.

Como se vê, a morte é um dos temas assíduos na obra de Andressa – serve tanto para denunciar práticas hostis de desterritorialização ou perda de identidade quanto para chamar atenção para um sentimento que espreita o cotidiano e recria a vida:

– Vejo a morte um pouco como a arte performática que invade subitamente o instante sem ser convidada. Agride e ao mesmo tempo gera poesia.

Lidar com temas espinhosos é, de fato, uma predileção. 

Em julho, Andressa circulou durante oito dias entre tanques de guerra, carros de combate e outras relíquias das Forças Armadas guardadas no Museu do Exército de Porto Alegre, na Rua da Praia.

Performance em frente à igreja em Morta Sim, Feia Nunca! (Foto/Divulgação)

Performance em frente à igreja em Morta Sim, Feia Nunca! (Foto/Divulgação)

Um dos objetivos de Combate, ação presencial transmitida ao vivo pelo canal de YouTube da artista, era produzir contrastes e ruídos pela presença de uma figura feminina num “ambiente masculino e falocêntrico”, conforme Andressa.

A cada dia, ela recebia a visita de outra mulher, que trazia um “kit de sobrevivência” incluindo comida, roupas e livros. Entre as visitantes, estavam artistas, professoras e pesquisadoras de artes.

As visitas eram convidadas a tomar chá ou comer frutas, regalos trazidos pelas que haviam comparecido nos dias anteriores.

– Com isso, se criou um espaço de convívio. Foi lindo e intenso, diz.

Até o momento, Andressa não produziu nenhuma obra na Bronze Residência, inclusive por falta de tempo – está envolvida também com o curso de doutorado em Poéticas Visuais, no Instituto de Artes da UFRGS.

– A gestão do espaço por si só já me dá fios brancos de cabelo, embora seja uma delícia. Adoro acompanhar o trabalho de outros artistas e interagir com eles.

Ela cuida da administração da casa com a colaboração de Fernanda Medeiros, responsável também pela curadoria da exposição Odoxê (em cartaz até 5 de outubro), de Ali Espírito Santo, mato-grossense radicado na capital gaúcha. A mostra se apresenta como um “exercício de futurologia encantada” concebido a partir de performances e fotografias.

Para o futuro, o plano da Bronze Residência é continuar sendo um polo autônomo e soberano de irradiação de arte e inovação no coração de Porto Alegre. 

– A crise que, geralmente, se abate sobre a maior parte dos espaços independentes de arte é a tentação de se institucionalizar como museu. É natural que, à certa altura, essa possibilidade se coloque, mas a verdade é que não temos estrutura para isso, nem desejo de que aconteça, conclui Andressa.