Arte no Alto da Bronze
Espaço aberto à ousadia e à experimentação, a Bronze Residência é o novo polo de inovação e cultura no Centro de Porto Alegre
Um espaço múltiplo e efêmero, aberto a experimentações e práticas artísticas contemporâneas.
É como se define a Bronze Residência, inaugurada há pouco mais de cinco meses pela artista visual Andressa Cantergiani, que se constitui num novo polo irradiador de inovação, arte e cultura no Centro Histórico de Porto Alegre.
– Não temos a intenção de ser uma galeria comercial, esclarece Andressa, para começo de conversa.
Não que estejam proibidas as exposições – uma das primeiras atividades foi a série Strictly, de Jason Evans, mostra de fotografias de negros vestidos como dandies nos subúrbios de Londres, com curadoria de Bernardo de Souza –, mas este não é o principal objetivo.
Bem que o espaço situado no começo da Rua Duque de Caxias, no Alto da Bronze, poderia ser denominado Open Studio ou Studio Visits, mas Andessa prefere chamá-lo de Project Space, termo abrangente que abraça a diversidade de ações ali desenvolvidas.
– O conceito é bastante difundido, principalmente, na Europa, embora no Brasil ainda esteja engatinhando, relata.
No começo de agosto, a casa foi sede de uma oficina sobre publicações independentes, coordenada por Charlene Cabral, criadora dos selos editoriais Vendo Luzes e Meteoro Edições, além de coprodutora da Folhagem, projeto que abarca feira, biblioteca e uma banca-livraria nômade.
Há também lugar para conversas abertas ao público. Em maio, a artista visual Alma Negrot (codinome drag queer de Raphael Jacques) falou sobre seu trabalho multimídia, que recorre ao corpo como ferramenta para abordar a ressignificação de arquétipos de gênero.
Antes disso, em abril, a Bronze Residência recebeu o espetáculo Fábrica de Calcinha, performance multissensorial que reproduz as sonoridades pulsantes da paisagem do Centro de Porto Alegre, com Marina Mendo, Ricardo Pavão e Marta Felizardo.
Com certeza, entre as atividades acolhidas, uma das que mais se destaca é a residência artística, ocasião em que o artista literalmente se hospeda na casa. Há, aliás, cômodos reservados para isso no terceiro piso. A intenção é criar as condições ideais para que ele possa suspender tudo o que está em volta e imergir no trabalho.
– A mim interessa cada vez menos o artista que chega com uma obra já pronta e cada vez mais aquele que vive aqui o processo de construção de novos projetos, diz Andressa.
Não faz muito, a casa hospedou a pintora Camila Soato, de Brasília, que participou da 11ª Bienal do Mercosul na capital gaúcha.
Durante a estadia no estúdio, Camila – artista com trabalho voltado para a temática feminista – concebeu e realizou Presente, pintura em óleo sobre tela que homenageia Marielle Franco, vereadora do RJ brutalmente assassinada em 14 de março. A obra foi incorporada ao acervo da Bienal em exposição no MARGS.
Com Camila, também ficou hospedada a crítica de arte e curadora-adjunta da Bienal, Paula Borghi, de SP, que usou o espaço para realizar encontros curatoriais.
Acima de tudo, estúdios como o que está localizado no Alto da Bronze são ambientes de convivência e troca de ideias e experiências entre artistas, curadores, pesquisadores e público.
De certo modo, é o que Andressa já vinha fazendo há quatro anos na gestão da galeria Península, na Rua da Praia, que encerrou as atividades em janeiro deste ano.
– A diferença é que, na galeria, não havia como hospedar os artistas. Tínhamos que encaminhá-los para hotéis, ateliers ou casas de amigos, ressalta. Em seguida, ela acrescenta: – Na Bronze, eu quis fazer algo diferente, que desse um novo sentido à minha atuação como gestora.
Arte de combate
Não há duvida de que a Bronze Residência tem a cara de Andressa, não só como gestora, mas também como artista. O formato inovador e inquieto do espaço espelha a trajetória da caxiense que exerce a função de administradora.
O caminho das artes estava desenhado para Andressa desde criança, quando tocava piano em casa, incentivada pela mãe.
Hoje as mãos da pianista estão "um pouco enferrujadas", adverte, mas a música continua presente em projetos como o Instant Band Girrrls – banda feminista dedicada a uma "performance sônica com voz, ruído, eletrônica e ativismo" formada ainda por Marion Velasco, Alice Porto e Mariana Kircher. No ano passado, elas se apresentaram no bar Agulha e no festival Vênus Em Fúria, no Ocidente.
Antes de se transformar em artista visual, Andressa também experimentou as artes cênicas. Formada no DAD/UFRGS, participou de grupos como o Teatro Sarcáustico e a Companhia do Espaço em Branco.
A travessia do teatro para as artes visuais foi um processo natural, sem remorsos:
– Deixei de acreditar no formato do teatro, afirma.
É verdade que, como atriz, já trabalhava com elementos performáticos. Na última peça, Anatomia da Boneca, de 2010, por exemplo, expunha-se a um processo simbólico de dissecação do corpo, desencadeado para encontrar – em vez de vísceras e sangue – imagens e comportamentos femininos social e culturalmente construídos ao longo da história.
Só que na dramaturgia sentia-se desconfortável com os limites impostos pela armadura das personagens. Era como se ansiasse atuar com inteira liberdade, interpretando papeis ou criações de sua própria autoria.
– De certa forma, o que faço hoje tem muitas coisas das artes cênicas. Mas, cada vez mais, me sinto instigada a trabalhar com imagens e objetos.
A sensação de encantamento com as artes visuais se acentuou ao longo do mestrado em Semiótica e Comunicação, na PUC/SP, mas ainda era algo muito teórico. A decisão de alterar o rumo da trajetória artística se consolidou mesmo ao retornar para Porto Alegre, época que coincidiu com nascimento do filho Gabriel, agora prestes a completar sete anos de vida.
Uma coisa é certa: as iniciativas de Andressa não cessam de criar espanto e desafiar áreas de conforto tanto do público quanto da própria artista.
Em Psicografando Tunga (2017), ela faz uma escultura dos próprios cabelos. Já a ação de Aterro (2015) consiste no enterro de uma figura feminina – a plateia é convidada a gentilmente jogar terra sobre o corpo da performer até que fique inteiramente coberto.
Em Morta Sim, Feia Nunca! (2016), ela estende-se imóvel e coberta com um pano vermelho bem defronte a igrejas de diferentes credos, causando estupefação e desconforto nas pessoas que saem dos atos religiosos.
Como se vê, a morte é um dos temas assíduos na obra de Andressa – serve tanto para denunciar práticas hostis de desterritorialização ou perda de identidade quanto para chamar atenção para um sentimento que espreita o cotidiano e recria a vida:
– Vejo a morte um pouco como a arte performática que invade subitamente o instante sem ser convidada. Agride e ao mesmo tempo gera poesia.
Lidar com temas espinhosos é, de fato, uma predileção.
Em julho, Andressa circulou durante oito dias entre tanques de guerra, carros de combate e outras relíquias das Forças Armadas guardadas no Museu do Exército de Porto Alegre, na Rua da Praia.
Um dos objetivos de Combate, ação presencial transmitida ao vivo pelo canal de YouTube da artista, era produzir contrastes e ruídos pela presença de uma figura feminina num “ambiente masculino e falocêntrico”, conforme Andressa.
A cada dia, ela recebia a visita de outra mulher, que trazia um “kit de sobrevivência” incluindo comida, roupas e livros. Entre as visitantes, estavam artistas, professoras e pesquisadoras de artes.
As visitas eram convidadas a tomar chá ou comer frutas, regalos trazidos pelas que haviam comparecido nos dias anteriores.
– Com isso, se criou um espaço de convívio. Foi lindo e intenso, diz.
Até o momento, Andressa não produziu nenhuma obra na Bronze Residência, inclusive por falta de tempo – está envolvida também com o curso de doutorado em Poéticas Visuais, no Instituto de Artes da UFRGS.
– A gestão do espaço por si só já me dá fios brancos de cabelo, embora seja uma delícia. Adoro acompanhar o trabalho de outros artistas e interagir com eles.
Ela cuida da administração da casa com a colaboração de Fernanda Medeiros, responsável também pela curadoria da exposição Odoxê (em cartaz até 5 de outubro), de Ali Espírito Santo, mato-grossense radicado na capital gaúcha. A mostra se apresenta como um “exercício de futurologia encantada” concebido a partir de performances e fotografias.
Para o futuro, o plano da Bronze Residência é continuar sendo um polo autônomo e soberano de irradiação de arte e inovação no coração de Porto Alegre.
– A crise que, geralmente, se abate sobre a maior parte dos espaços independentes de arte é a tentação de se institucionalizar como museu. É natural que, à certa altura, essa possibilidade se coloque, mas a verdade é que não temos estrutura para isso, nem desejo de que aconteça, conclui Andressa.