Marcas das boas causas
Cresce a quantidade de marcas engajadas em temas contemporâneos, mas, sem coerência e autenticidade, o consumidor desconfia
Num mundo polarizado e de discursos exaltados, é de se supor que as empresas tivessem receio de tomar posições e, com isso, desagradar aos consumidores. Mas, como dizia o poeta, a vida é real e de viés – está acontecendo o contrário. Uma parcela cada vez maior de marcas arrisca se posicionar frente a temas espinhosos, que estão na ordem do dia.
Um exemplo é a Profana, marca de roupas e acessórios femininos, com produção própria e duas lojas em Porto Alegre – na Cidade Baixa e na Galeria Chaves, no Centro Histórico. De uns tempos para cá, temas como feminismo, diversidade sexual, sustentabilidade ambiental e moda consciente estão cada vez mais presentes não apenas nas mensagens divulgadas em suas plataformas nas redes sociais, mas também nas estampas das peças expostas nas vitrines.
A atitude está distante de refletir uma estratégia premeditada de marketing, elaborada ao longo de horas a fio em reuniões com equipes de comunicação e publicidade, como explica a dona da Profana, Simone Moro:
— Tem a ver a maturidade da marca e com a minha própria maturidade. Antes, não fazia isso ou fazia pouco, mas hoje me autorizo a adotar posição diante das barbaridades que vêm acontecendo no mundo, afirma Simone, acrescentando que o apoio às boas causas é totalmente apartidário e corresponde a “um gesto em favor do ser humano”.
Além de se posicionar em estampas e redes sociais, a marca promoveu ao final do mês de abril a primeira edição da campanha “Profana Apoia” em benefício da THEMIS – Gênero, Justiça e Direitos Humanos. Durante dois dias, 10% das vendas da loja da Cidade Baixa foram destinados à ONG criada em 1993, em Porto Alegre, para combater a discriminação das mulheres no sistema judiciário do Brasil (leia entrevista com fundadora da THEMIS mais abaixo).
Clique nas imagens a seguir para ver algumas das mensagens postadas pela Profana em suas plataformas digitais, além do flyer da campanha de apoio à THEMIS.
As empresas não adotam esse posicionamento por acaso. Pesquisas recentes mostram que marcas engajadas – aquelas que levantam bandeiras ou apoiam causas sociais – encontram boa acolhida junto aos consumidores.
Conforme levantamento da Edelman Earned Brand, divulgado em novembro de 2018, 69% dos brasileiros estão dispostos a comprar ou boicotar produtos em virtude da posição da marca em relação a temas que consideram relevantes – resultado que soma 13 pontos percentuais acima do registrado em pesquisa do ano anterior.
“A nova geração de consumidores digitais aprendeu com o mundo online a contestar paradigmas, reforçando a necessidade de responsabilidade social na era das redes sociais”, avaliou estudo do Ipsos Global Reputation Center, segundo o qual 82% dos consumidores do Brasil se mostram favoráveis a marcas que contribuam para causas sociais. O trabalho foi realizado em parceria com a CAUSE, consultoria paulista que ajuda empresas e instituições do terceiro setor a se engajarem de forma coerente e consistente.
— Existe uma crise geral de legitimidade. Quando isso acontece, as pessoas olham para as marcas e demandam atitudes. Nessa hora, a pior coisa a fazer é se omitir, aponta Francine Lemos, CEO da CAUSE.
Desse modo, ainda que a marca deva estar preparada para reações contrárias, a velha máxima de tentar agradar à totalidade dos consumidores já não funciona. Mas, se ficar em silêncio não é uma boa opção, o engajamento pode até causar danos à imagem da companhia, caso não tenha solidez e autenticidade, alerta Fernanda Carvalho Leite, analista cultural e criadora de conteúdo da plataforma Mapa POA:
— As pessoas atualmente dispõem de ferramentas para romper a barreira do discurso e saber, de fato, como a marca se comporta, observa Fernanda, formada em relações públicas na PUC/RS, com MBA em Estratégia e Ciências do Consumo na ESPM/RJ.
Não faltam exemplos de marcas pegas em flagrante contradição entre discurso e prática.
A Loja Três, empresa de moda criada há seis anos no Rio de Janeiro, se apresenta com o slogan "Por trás de peças, pessoas". Nas etiquetas, exibe a foto das costureiras responsáveis pelas confecções, ao mesmo tempo em que, no site, mostra colaboradoras de pele negra e cabelo crespo, dançando e se divertindo entre as máquinas de costura.
Aparentemente, eis aí uma empresa de comportamento avançado e irrepreensível.
Na semana passada, antigos e atuais funcionários denunciaram racismo, assédio moral e violações trabalhistas entre as práticas da Loja Três. Conforme a denúncia, vendedoras trabalhariam 11 dias sem folga ou sequer direito à troca de uniforme, ao passo que modelistas estariam privadas de itens básicos como água e papel higiênico. O Ministério Público do Trabalho do RJ abriu dois inquéritos civis contra a companhia.
— Se não é de verdade, melhor não fazer, diz Fernanda.
Outro equívoco é cair na tentação de assumir protagonismo de uma causa que, na realidade, não pertence à marca e sim aos movimentos sociais atuantes na sociedade. Um exemplo clássico é o da Pepsi, obrigada a retirar do ar um comercial, em 2017, que surfava na onda das manifestações Black Lives Matter (movimento de protesto frente à violência policial contra cidadãos negros nos Estados Unidos).
Na propaganda, a modelo e socialite Kendall Jenner oferecia uma lata de refrigerante a um policial, imitando o gesto da ativista Leisha Evans, que se pôs (sem a latinha de Pepsi nas mãos, é claro), solitária e desarmada, em frente aos agentes da polícia durante um protesto em Baton Rouge, na Luisiana. “Obviamente, erramos o alvo e pedimos desculpas”, expressou-se a Pepsi na época.
— Quando você acha que a causa é sua, desrespeita um poder de fala que não é seu, assinala Francine.
Em contraposição, há intervenções pontuais que, ao contrário, não soam nem um pouco oportunistas. Em fevereiro deste ano, a Trident pegou carona na repercussão das declarações da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que apareceu num vídeo dizendo que o Brasil está vivendo “uma nova era”, na qual “menino veste azul e menina veste rosa”.
"Você escolhe e Trident apoia a sua liberdade. #CorNãoTemGênero", dizia a peça de propaganda, com duas embalagens distintas de chicletes – rosa para meninos e azul para meninas.
Não houve críticas, de outra parte, quando o iFood converteu os pedidos feitos em sua plataforma em alimentos para doação aos moradores de Brumadinho, um dia após o rompimento da barragem da Vale do Rio Doce, que deixou centenas de mortos na região metropolitana de Belo Horizonte, no início de 2019.
— Foi uma ação pertinente, que aliou tecnologia e nova economia num momento de crise. Além disso, era uma ação aderente ao negócio da marca – estava na mão do iFood fazer aquilo, assinala Francine.
Por essas e outras, as analistas acreditam que mais conveniente é usar os canais de visibilidade da empresa para oferecer suporte e impulsionar ativistas ou instituições já comprometidos com o tema para o qual se quer chamar a atenção dos consumidores – caso da Profana em relação à THEMIS.
Essa é também a atitude da Colibrii, empreendimento que se uniu a 15 costureiras e artesãs de comunidades carentes de Porto Alegre para confecção e venda de acessórios como bolsas, mochilas e nécessaires. Os produtos são comercializados nos canais de venda digitais da marca, que possui escritório e showroom no espaço cultural Vila Flores.
Além de oferecer oportunidade de trabalho e geração de renda para mulheres à margem do mercado do trabalho, a Colibrii ajuda a preservar o ambiente natural ao produzir peças a partir de materiais recicláveis. Em 2017, essa postura sustentável foi reconhecida com o Prêmio Brasil Criativo, concedido pela ProjectHub para empreendimentos que impactam positivamente a vida das pessoas.
A marca também cria projetos para companhias como a Insecta Shoes, fabricante de sapatos e acessórios ecológicos e veganos para a qual desenvolve mochilas a partir de tecidos de garrafa pet reciclada.
Há casos em que recebe encomendas para campanhas promocionais, como a de lançamento de rótulos da Heineken – na ocasião, foram distribuídos chaveiros confeccionados pela Colibrii a partir de algodão orgânico e sobras de copos descartados em eventos anteriores da própria cervejaria.
A exemplo da Profana, o engajamento da Colibrii tem raízes consistentes. A marca foi criada em 2013, quando a advogada Gabriela Ruiz subiu o Morro da Cruz, na zona leste de Porto Alegre, com a disposição de abrir um negócio que trouxesse benefícios à comunidade local.
— Não é uma estratégia que adotamos no meio do caminho, depois que isso virou tendência ou moda. Tem a ver com a vivência que tivemos e permeia tudo que fazemos, destaca Gabriela.
“A desigualdade de gênero é semente e raiz da desigualdade social”
Há mais de duas décadas, a THEMIS – Gênero, Justiça e Direitos Humanos defende os direitos das mulheres no sistema de Justiça do Brasil. Conheça o pensamento da advogada Denise Dourado Dora, uma das sócias fundadoras da ONG apoiada pela marca Profana.
Desde a criação da THEMIS, há 26 anos, o sistema de Justiça brasileiro deu mostras de reconhecer os direitos das mulheres ou avançamos pouco?
A Constituição de 1988, ao afirmar a igualdade de direitos entre homens e mulheres, abriu espaço para mudanças legislativas importantes. No ambiente doméstico, até então a lei dizia que o marido era o chefe da sociedade conjugal. A alteração do status feminino permitiu o reconhecimento de direitos referentes a trabalho doméstico, divisão de patrimônio, guarda compartilhada etc.
Propiciou também a criação da Lei Maria da Penha e dos juizados especiais de violência doméstica, entre outras conquistas. Mas essas mudanças no campo da legislação e da Justiça não foram acompanhadas pelas práticas sociais, que continuam hierárquicas e violentas, com predominância masculina.
Nos últimos anos, há sinais de retrocesso em diferentes áreas da sociedade. No caso das mulheres, como explicar a tentativa de retirada de direitos conquistados nas décadas mais recentes?
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, com 1% da população detendo a maioria dos recursos. Não podemos esquecer que as mulheres constituem a maioria da população, portanto, a desigualdade de gênero é semente e raiz da enorme desigualdade social do País. Por isso, as ondas conservadoras atacam os direitos das mulheres. Quando a gente quebra a desigualdade de gênero – como a THEMIS vem tentando fazer nos últimos 26 anos –, desestabiliza o sistema de privilégios e desigualdades.
Por outro lado, as conquistas das mulheres criaram tensão entre as relações de gênero. Homens com pensamento tradicional não conseguem conviver com mulheres em condições de igualdade, e reagem com violência. Essa onda de feminicídio, por exemplo, é uma reação a mudanças que já aconteceram ou estão em curso, e não irão retroceder.
A Themis participou da campanha “Profana Apoia”. De que maneira as empresas podem contribuir para a luta feminista?
Para nós, foi uma honra. Encaramos como reconhecimento da importância do tema e do nosso trabalho. A adesão de empresas de vanguarda, como a Profana, dá visibilidade e legitimidade ao feminismo e à luta por igualdade e democracia.