As boas novas da Travessa

Um dos locais mais encantadores da cidade, a Travessa dos Venezianos ganha vida nova com negócios criativos de arte, boemia e gastronomia

Movimento em frente ao bar Guernica, que ocupa uma das 17 casinhas tombadas como patrimônio histórico e cultural de Porto Alegre: comida artesanal e agenda musical de qualidade (Fotos/Divulgação)

Movimento em frente ao bar Guernica, que ocupa uma das 17 casinhas tombadas como patrimônio histórico e cultural de Porto Alegre: comida artesanal e agenda musical de qualidade (Fotos/Divulgação)

A Travessa dos Venezianos está cheia de novidades. Nos últimos tempos, novos projetos de bar, café e restaurante animam um dos redutos mais encantadores de Porto Alegre, localizado na Cidade Baixa, bairro tradicionalmente marcado pela boemia e a vida cultural. A ruazinha que interliga a Joaquim Nabuco e a Lopo Gonçalves une o presente e o passado como polo cultural e turístico que guarda muita história para ser contada.

O conjunto de 17 casas de pé-direito alto, com janelas e portas que se abrem diretamente para a calçada, foi construído no início do século XX para abrigar a população pobre do bairro, em especial antigos escravos e seus descendentes. Apareceu pela primeira vez no mapa da cidade em 1935 e foi tombado como patrimônio histórico e cultural em 1980.

Numa das casinhas, está o bar Guernica, que em pouco tempo – foi aberto em março deste ano – ganhou lugar cativo na agenda da comunidade alternativa da CB. É um dos locais de maior movimento no circuito underground da cidade, em boa parte devido ao ambiente de simplicidade e acolhimento da própria construção, complementado pelo atendimento próximo e despojado. Outro ponto fortes são o cardápio inspirado na gastronomia artesanal e vegana, além da programação musical de qualidade, com ênfase em samba, música latino-americana e ritmos nordestinos.

As boas novas da Travessa 2

De portas abertas de terça a sábado, o bar é uma iniciativa em família.

De um lado, está o filho Pepe Martini, chef do projeto itinerante de cozinha artesanal Mucho Gosto, que ele define como “sem transgênico e sem patrão” e que já passou pelo Comitê Latino-Americano, Café Fon Fon e Tutti Giorni, entre outros restaurantes.

Pepe estudava Jornalismo na UFRGS no começo da década de 2010, quando participou da experiência do Tabaré, jornal de cultura e humor com distribuição gratuita, que se financiava com a promoção de festas no galpão do IBGE. Largou a faculdade quando faltava só uma cadeira para se formar, mas não mostra arrependimento.

— Consegui outras formas de trabalho que faziam mais sentido para mim, justifica.

De outro lado, o pai Ronivon (o nome homenageia o cantor que foi ídolo da Jovem Guarda, mas ele prefere ser chamado de Roni), formado em Ciências Contábeis, com MBA em Administração e Gestão Empresarial, trabalhou durante 26 anos como gerente financeiro em companhias como Gerdau, Olvebra e Saint-Gobain (multinacional francesa da construção civil).

A guinada na vida de Roni começou em Ponta Grossa, no oeste do Paraná, quando trabalhava para a Parmalat. Seis meses após ter sido promovido a diretor, a gigante dos laticínios quebrou. De volta a Porto Alegre, trabalhou ainda um tempo na Panambra antes de apostar as fichas no mercadinho de uma namorada baiana em Porto Seguro (BA). No início, ele se limitava a organizar controles e negociar com fornecedores, mas o negócio bombou e, de consultor, Roni se transformou em sócio. Até o amor esfriar, o que fez com que retornasse para o Sul.

A rotina de sócios não atrapalha a relação de pai e filho, que moram juntos no espaço Ocupação Violeta, projeto coletivo de habitação popular na descida da Rua Ramiro Barcelos, na Floresta.

— Estamos habituados a construir acordos no dia-a-dia. A diferença é que no bar somos sócios e, na ocupação, companheiros de luta, argumenta Roni.

A casinha do nº 44 da Venezianos tem uma trajetória ligada à arte e à cultura. A proprietária, artista plástica Ana Paula Henrique, chegou a montar ali um atelier na década passada. Anteriormente, pertenceu ao jornalista Antônio Carlos Rosito, que teve a iniciativa de reformá-la no início dos anos 1980, definindo o design conservado até hoje. Durante quase 20 anos, foi ponto de encontro de artistas e intelectuais da cidade, amigos de Rosito.

Pepe conta que a vontade de abrir um bar estava adormecida e foi despertada com a oportunidade de alugar a casa. Tanto que ele chegou a procurar imóvel em 2014, mas era o auge da bolha imobiliária, com os preços de alugueis na estratosfera, o que o fez desistir.  

— Todo o boêmio tem o sonho de um dia provar como é estar do outro lado do balcão. Aí apareceu essa casa neste lugar incrível em ótimo estado, que não necessitava de reforma, o que fechava com a falta de dinheiro para investir, pondera o rapaz.

O nome do bar tem a ver a proposta de associar arte, cultura e certo posicionamento crítico diante da vida, o que se reflete com perfeição na obra Guernica, de Pablo Picasso, que retrata o bombardeio sobre uma cidade basca durante a Guerra Civil Espanhola. É claro que a consciência acerca do horror e da barbárie do mundo serve para alimentar a necessidade de transformá-lo com alegria e efetividade.

– A intenção é trazer felicidade para as pessoas, traduz Pepe.

Além de cafés especiais, o Travessa Café oferece um cardápio de doces e salgados, alguns dos quais produzidos pela própria dona, Darqui Magalhães (Foto/Divulgação)

Além de cafés especiais, o Travessa Café oferece um cardápio de doces e salgados, alguns dos quais produzidos pela própria dona, Darqui Magalhães (Foto/Divulgação)

Inaugurado em dezembro de 2018, o Travessa Café é outra atração do recanto histórico da Cidade Baixa.

Especializado em cafés especiais, fica aberto da uma da tarde às nove da noite, de terça a domingo, na casinha do nº 36, na qual Darquilene Magalhães, a Darqui, morou com o companheiro, o geólogo Lucas da Motta, durante quatro anos. Quando nasceu o filho Ravi, o casal decidiu se mudar para local mais espaçoso e confortável. Então, transformou a moradia num espaço comercial, que, além de cafés especiais, também oferece comidinhas artesanais, algumas das quais produzidas pela própria dona, como o cheesecake e a coxinha vegana, além dos bolinhos.

Os conhecimentos técnicos sobre café ela aprimorou no curso de barista do Cafee Lab, de SP, mas essa paixão começou ainda criança, por influência da avó materna, Eresta, uma índia criada no meio do mato, que torrava os grãos no fogão a lenha, depois moía no pilão e guardava em latas de metal. Tudo isso em Padre Paraíso, cidadezinha do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, onde Darqui nasceu.

Mural expõe processo de colheita, separação e torrefação dos cafés especiais

Mural expõe processo de colheita, separação e torrefação dos cafés especiais

A casa na Travessa dos Vezianos passou por ampla reforma guiada pelo arquiteto Rodrigo Troyano de modo a preservar ao máximo suas características originais. A tal ponto que uma das paredes laterais foi descascada, com extremo cuidado para não causar danos, até aparecer um conjunto de tijolos maciços feitos à mão, provavelmente por descendentes de escravos.

— Repara que o preenchimento dos tijolos não era de cimento, e sim de uma mistura de areia, barro e água do riacho que passava aqui perto, aponta Darqui, referindo-se ao arroio Dilúvio, que banhava o pátio das casas da Rua João Alfredo até meados do século passado.

É verdade que o esforço para preservar o passado trouxe alguns inconvenientes, como a umidade que subia pela parede até a altura das mesas, o que poderia colocar em risco a saúde dos clientes (e da própria Darqui).

A solução criativa foi revestir a parede com um mural projetado por Marcelo Cavalieri, que exibe quase passo a passo o processo de colheita, separação e torrefação dos cafés especiais – uma aula exposta na parede. Além das atividades cafeeiras, lá está a figura de uma mulher negra, representando a mão de obra escrava dos antigos cafezais.

— Fiz questão de incluir essa imagem porque a Travessa dos Venezianos é um território negro e eu também sou negra, diz Darqui.

No mezanino, espaço de lazer com sofá, mesa e tabuleiro de xadrez, de propósito não foram instaladas tomadas para recarregar celulares. A princípio, era para ser uma sala de estar na qual as pessoas interagissem sem olhar a tela do smartphone. Mas Darqui foi obrigada a rever a decisão, atendendo a pedidos dos clientes, que transformaram o mezanino num local de reunião e estudos, no qual os aparelhos celulares ainda são necessários.

Nada que retire o humor ou a graça da moça que comanda um dos cafés mais agradáveis e acolhedores de Porto Alegre.

— Eu sinto que continua sendo a minha casa, talvez por isso as pessoas digam que é um lugar aconchegante, afirma Darqui.

Travessa dos Venezianos, na Cidade Baixa (Foto/Tiago Trindade)

Travessa dos Venezianos, na Cidade Baixa (Foto/Tiago Trindade)

As casas geminadas da Rua Joaquim Nabuco, localizadas próximas à esquina com a travessa, guardam sintonia com o ambiente da Venezianos. É o caso da construção que aloja o restaurante AlimentArte Consciente, no nº 401.

— Aqui vibramos na mesma energia da Travessa, assegura o filósofo Santiago Tesla, argentino da Patagônia. Ele é o chef de cozinha e também sócio do negócio gastronômico, junto com a relações públicas Letícia Lançanova.

O cardápio combina receitas veganas e vegetarianas com sucos naturais e sobremesas em clima casual, de terça a domingo em dois horários – de onze e meia da manhã às duas e meia da tarde para o almoço, reabrindo das seis e meia até onze da noite para o jantar. O nome do restaurante sugere um diálogo entre arte e gastronomia, indicando que tudo ali servido é resultado de muito cuidado e inspiração.

Restaurante AlimentArte Consciente, na Joaquim Nabuco: diálogo entre arte e gastronomia

Restaurante AlimentArte Consciente, na Joaquim Nabuco: diálogo entre arte e gastronomia

Santiago explica que a base da operação é o conceito de sustentabilidade, que obedece a duas vias – de um lado, prioridade absoluta para matéria-prima de produtores locais e, de outra parte, a escolha de insumos que produzam o menor dano possível ao meio ambiente. Essa dinâmica determina até mesmo a variação de opções do cardápio ao longo da semana.

— Os pratos dependem dos ingredientes que temos a cada dia, o que significa que o cardápio de hoje poderá não ser igual ao de amanhã, diz Santiago.

Traduzindo: caso a couve-flor estiver bem bonita na Feira Livre da Epatur – uma fontes dos ingredientes –, a entrada poderá ser a hortaliça frita e o prato principal, “massa artesanal de couve-flor”. Mas, no dia seguinte, caso a cenoura esteja com aspecto mais saudável, é provável que o cardápio se inspire na raiz rica em vitaminas, potássio e ferro.

Após funcionar na Rua Lobo da Costa por um bom tempo, o Alimentar-te Consciente se transferiu para a Joaquim Nabuco em novembro de 2017. A novidade é que, há 15 dias, reabriu as portas após renovar a fachada e o mobiliário, com a incorporação de um novo sócio, Leonardo Mesquita.

– As novas mesas fomos nós que produzimos, conta Letícia, orgulhosa.

Há planos de montar uma minibiblioteca para que os clientes possam fazer doações e também retirar livros. Além disso, o espaço agora está aberto para eventos culturais, como exposições e música ao vivo.

Letícia observa que o perfil do AlimentArte Consciente complementa o leque de opções gastronômicas da Travessa & arredores. Cita como exemplo de diversidade da região a Mark Hamburgueria e o Yuu Pub, que serve petiscos japoneses quentes, na Joaquim Nabuco, além da pizzaria Bistrô da Travessa.

– Aqui nenhum negócio se repete, ressalta ela.

Letícia destaca ainda que, por ser um polo cultural, a Travessa é um fator de atração para negócios criativos. Uma pesquisa encomendada pelo AlimentArte Consciente em andamento vai delinear com mais precisão o perfil de consumidor local. De antemão, sabe-se que é um público mais exigente quanto à qualidade do que consome e, por outro lado, mostra-se “ativista e engajado culturalmente”.

Os empreendedores que estão tocando os negócios criativos da travessa estão procurando atuar em rede de modo a preservar o encanto da Travessa dos Venezianos, respeitando a comunidade local, que inclui meia dúzia de moradores ainda restantes e atores culturais como a Associação Chico Lisboa, de artistas plásticos, fundada em 1938 e que está instalada na Venezianos desde a década de 1990.

– A ideia é estreitar cada vez mais a relação com quem está aqui há décadas e harmonizar o ambiente. Não faria sentido que fosse diferente, conclui Pepe Martini, do Guernica.