Moda e feminismo
Esse é o tema da Conversa de Rua, debate aberto ao público promovido pelo Rua da Margem durante a 2ª Festa Jardim Profana na Cidade Baixa
Leila Diniz grávida de biquíni na praia de Ipanema, em 1971, com a barriga apontando para um Brasil tão ou mais conservador do que este que, atualmente, ostenta a quinta maior taxa de feminicídios do mundo, com uma mulher assassinada a cada duas horas, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Ou Madonna cantando Express Yourself durante a turnê Blond Ambition, no início dos anos 1990, com músculos à mostra por baixo de um corset com sutiã em forma de cone, dando ares de insubmissão a uma peça que, usada por baixo de anáguas e vestidos, por muito tempo representou um símbolo de feminilidade dócil, além de ferramenta para moldar o corpo feminino mediante aperto e marcação da cintura.
Até mesmo as calças compridas de dona Elvira Kenski, talvez a primeira mulher a usar o figurino até então tipicamente masculino no Brasil, provocando olhares de reprovação no Centro de Curitiba, na década de 1940.
— Comprei em São Paulo duas calças, era a última moda em Paris. Quando voltei, fui com uma amiga passear e as pessoas paravam e ficavam olhando, contou algumas semanas atrás dona Elvira, aos 104 anos.
O que moda tem a ver com feminismo? Existe moda feminista? A moda pode ser um instrumento de expressão e luta da mulher? E qual é a contribuição das grifes dirigidas por mulheres nisso tudo?
Esses são alguns dos temas que estarão em debate na Conversa de Rua, evento aberto ao público que será realizado durante a 2ª Festa Jardim Profana, no sábado dia 23/3, a partir das cinco horas da tarde. O encontro acontece no sobrado que abriga a Loja Profana, na Rua Lima e Silva, 552, na Cidade Baixa. A iniciativa é do Rua da Margem, com mediação do jornalista Paulo César Teixeira, editor do portal.
Para debater moda e feminismo, Rua da Margem convidou Joanna Burigo, fundadora do blog Casa da Mãe Joanna, colunista da revista Carta Capital e coordenadora do Emancipa Mulher: Escola de Emancipação Feminista e Resistência Antirracista. Os exemplos de mulheres com atitudes inovadoras no campo da moda, apresentados no início deste texto, foram indicados por Joanna.
Também estará presente Luciane Trento, proprietária da Resto Zero, projeto de moda sustentável, além de responsável por oficinas da Rede de Economia Solidária e Feminista para capacitação de mulheres em situação de vulnerabilidade na zona sul de Porto Alegre.
Completa o elenco de debatedoras a publicitária Jajá Menegotto, curadora de projetos e eventos que abordam a moda como manifestação cultural e espaço de potência criativa, como Fashion Revolution, Desperta Moda para Mudança, Jeans for Change, MUDA (curso de moda consciente da Perestroika) e Nós – Moda na Escola, entre outros.
A Festa Jardim Profana é uma promoção da Profana, marca de moda feminina com confecção própria e duas lojas instaladas em pontos centrais da capital gaúcha — além da loja na Cidade Baixa, atende também na Galeria Chaves, no Centro Histórico. A primeira edição foi realizada em janeiro deste ano.
— A ideia é passar um fim de tarde de um jeito diferente no nosso oásis urbano, com muita arte, música e bate-papo, diz Simone Moro, dona da Profana.
Além da Conversa de Rua, a 2ª Festa Jardim Profana contará com oficina de mosaico de Marcia Barboza, peças de moda sustentável do Brechó LUxinho, de Luciane Panisson, objetos utilitários da Bel Campani e cartões-postais, adesivos e botons do projeto Pela Cidade Baixa, da jornalista Tatiana Gappmayer, a Tati, com estampas do bairro icônico da capital gaúcha. Filipe Rossetti e Izadora Netz, do Coletivo Bloco, disponibilizarão para compra desde reproduções até artes originais, zines e cadernos artesanais. Vão rolar ainda comidinhas deliciosas e chopp artesanal da Cervejaria Joana.
A relação entre moda e feminismo fica evidente a partir da constatação de que as mulheres historicamente têm sido o alvo preferencial da publicidade e da comunicação social das grifes de fast fashion.
— É, portanto, um tema relevante para o feminismo. Além disso, como não dá para andar pelada por aí, a moda é parte importante da vida da gente. Ainda que escolha roupas às cegas, no momento em que opta por um modelo a pessoa está marcando conscientemente ou não uma identidade na qual acredita, sustenta Joanna Burigo.
Tanto é verdade que boa parte da indústria da moda vem tentando ultimamente incorporar slogans e atitudes feministas em suas ações de marketing e propaganda. Resta saber até que ponto isso contribui para desconstruir arquétipos e comportamentos machistas ou apenas mercantiliza a luta pela emancipação feminina.
— Eu acredito que esse feminismo de mercado mais atrapalha do que ajuda, diz Jajá Menegotto.
Para situar a marcha de acontecimentos, Jajá lembra que a atração pelo tema no Brasil ganhou impulso a partir do segundo semestre de 2015, quando centenas de milhares de mulheres ocuparam as ruas do País para denunciar a violência e a opressão de que são vitimas (os protestos e suas consequências foram registrados em Primavera das Mulheres, documentário de Antonia Pellegrino e Isabel Nascimento e Silva, lançado em 2017).
— Desde lá, as vitrines das livrarias foram tomadas por autoras, novos grupos feministas surgiram, muita coisa potente de conteúdo foi e está sendo produzida. É uma coisa bonita de se ver, constata Jajá.
Mas, em paralelo, o fenômeno de abrangência global também disparou o detector de lucros da indústria, mesmo porque, como apontou o filósofo alemão Walter Benjamin, “a moda é a filha dileta do capitalismo".
— Aí acontecem coisas como a revista Elle, a Whistles (marca de roupas do Reino Unido) e a Fawcett Foundation lançarem camisetas com a frase This is what a feminist looks like (É assim que uma feminista se parece) costuradas por mulheres das Ilhas Maurício em condições análogas à escravidão, aponta a publicitária.
Na lista de distorções, consta também as camisetas das Spice Girls comercializadas por 19,40 libras (cerca de R$ 90) para uma campanha de igualdade de gênero da Comic Relief (organização de caridade britânica), produzida em Bangladesh por operárias com jornadas de 16 horas por dia e remuneração de 35 pences (o equivalente a R$ 0,0167) por hora, conforme revelou o jornal The Guardian em janeiro deste ano.
A onda feminista na publicidade inclui também mensagens dirigidas ao público masculino, como a campanha de reposicionamento de marca da Gillette lançada no início de 2019. O vídeo com o título The best a man can get (O melhor homem que você consegue ser, em tradução livre) utiliza cenas de bullying e sexismo para questionar o papel do homem na sociedade.
— De um lado, qualquer discurso que abrace a reivindicação feminista é bem-vindo, não importa de onde venha. Ao mesmo tempo me preocupa que atores do capital internacional é que estejam propondo essa conversa, diz Joanna.
Para ela, mais importante do que comunicar-se com o público a partir de uma perspectiva feminista é a empresa aplicar na prática os conceitos de igualdade de gênero, a começar pelo equilíbrio na ocupação de vagas e na remuneração entre homens e mulheres no quadro de colaboradores.
Não é o que atualmente se vê. Oitenta e cinco por cento da mão de obra da indústria é constituída de mulheres, que trabalham em condições precárias ou de exploração, principalmente as mulheres não brancas. Em contraposição, a maior parte dos cargos de destaque é ocupada por homens brancos, tanto no setor administrativo quanto na área criativa. Das 50 maiores marcas de moda do mundo, só 14% são lideradas por mulheres. Para piorar, nenhuma mulher faz parte da lista dos dez CEOs mais bem pagos do setor.
– Não adianta só emocionar as pessoas. A campanha de comunicação deve ser o último elo no emprego das práticas feministas, e é preciso cobrar isso das corporações, afirma Joanna.
Neste cenário, será que existe moda feminista de verdade? Quem sabe a bandeira de um feminismo mais autêntico e consistente esteja nas mãos de grifes de pequeno e médio porte, notadamente as que estão vinculadas a empreendimentos de moda sustentável?
Um exemplo é a Resto Zero, que surgiu há dois anos a partir de estudos feitos por sua criadora, Luciane Trento, no curso de Design de Moda da UniRitter, sobre os impactos sociais e ambientais da indústria de fast fashion.
A Resto Zero produz blusas, saias, vestidos e casacos, além de bolsas e brincos, a partir de resíduos de tecido e couro. O intuito é diminuir a prática de descarte e, através de técnicas como moulage e upcycling, devolver ao público peças únicas e diferenciadas, ajustadas aos mais diversos tamanhos e, acima de tudo, sem gênero. As roupas e acessórios são comercializados em loja própria no Vila Flores, no 4º Distrito.
— Ser feminista está na moda, e as grandes empresas se aproveitam disso, usando a tendência unicamente para alavancar suas vendas. Neste contexto, é fundamental o papel de mulheres que estão à frente de projetos em condições efetivamente de exercer influência para disseminar a luta, opina Luciane.
Outra marca que se posiciona na vanguarda da questão de gênero é a Voa Bordados, que produz desde 2017 camisetas com frases relacionadas à temática feminista. A jornalista Isadora Jacoby criou a grife depois de participar do curso de Bordado Empoderado de Bruna Antunes, ex-colega dela na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação (Fabico) da UFRGS. Em pouco mais de três anos, o curso de Bruna já ensinou mais de 1.200 mulheres a bordar peças com frases e símbolos de inspiração feminista, 12 das quais criaram suas próprias marcas, transformando-se em empreendedoras a exemplo de Isadora.
— A apropriação da causa feminista pela indústria tem mais a ver com a vontade de ganhar dinheiro do que com a intenção de ajudar, mas ao menos amplia o espaço de discussão desses temas, que do contrário poderia ficar restrita a poucas pessoas, diz Isadora, que concilia a Voa Bordados com a atividade de repórter do Jornal do Comércio.
Ela analisa que o dilema tem a ver com outras vertentes de consumo consciente, à medida que as pessoas tendem a evitar cada vez mais a aquisição de produtos que para elas não fazem sentido, como os que estão envolvidos com trabalho escravo ou testes feitos com animais.
Se existe ou não uma moda que possa ser caracterizada como feminista é uma incógnita, mas não há dúvida de que há cada vez mais feministas atuando como estilistas, produtoras, modelos, empreendedoras, jornalistas, maquiadoras e fotógrafas, entre outras profissionais ligadas à moda. Conforme Jajá Menegotto, essas mulheres são protagonistas de um movimento potente, criativo e colaborativo.
— Mesmo que o sistema coloque mil barreiras para que este movimento aconteça — e quando falamos de mulheres negras e periféricas, as barreiras são ainda mais altas —, o mundo da moda está cheio de mulheres incríveis e talentosas, que ocupam espaços e lideram processos de mudança, seja para transformar este universo num lugar de igualdade e respeito, seja para revelar novos padrões, outras belezas, outros jeitos de fazer e usar moda, conclui Jajá.