Apaixonados por café
Uma visita à torrefação da Baden para conhecer os encantos e decifrar os mistérios dos cafés especiais
O visitante está curioso para conhecer o sabor dos tais cafés especiais e, além disso, é quase automático o gesto de emborcar a xícara tão logo é servida. Só que, antes do primeiro gole, ele escuta uma voz pausada:
– Calma, é melhor deixar o café esfriar um pouco, diz Daiana Dietzmann, responsável pela área de comunicação e marketing da Baden Torrefação de Cafés Especiais. Em seguida, ela complementa: – Espera uns minutinhos e bebe aos poucos. Deixa o café descansando. Enquanto ele descansa, a gente consegue entendê-lo melhor.
O sol escaldante castiga o Passo D’Areia, na zona norte de Porto Alegre, onde se situa o galpão que abriga a torrefação, mas o calor do ambiente nada tem a ver com a dica de deixar o café esfriar naturalmente antes de tragá-lo.
Não fosse por outra razão, a alta temperatura disfarça nuances de sabor e aroma. À medida que esfria, o café recém-passado passa a exalar propriedades inesperadas, como sutis notas de fruta ou floral.
– Conforme a variedade da planta, a pessoa pode perceber um sabor de caramelo, amêndoa ou frutas vermelhas, ainda que esses ingredientes não estejam adicionados à bebida. Tem algo de subjetivo no que a gente sente ao beber um café especial, observa Daiana, com uma expressão misteriosa no rosto.
Com uma produção que oscila entre 800 kg e 1,2 mil kg por mês, em Porto Alegre a Baden é umas das pioneiras no setor de cafés especiais, mercado que vem crescendo a passos largos na preferência dos consumidores brasileiros.
Em 2017, o consumo aumentou 18% no País (ainda não foram divulgados os dados de 2018).
– Num ano em que ninguém sabia o que ia acontecer com a economia, o resultado foi excelente, pondera Guert Schinke, dono da Baden Torrefação, que duplicou a produção de 2016 para 2017. No ano passado, a expansão se aproximou de 15%, estima ele, ainda sem ter os dados nas mãos.
O café torrado no Passo D’Areia abastece com todas as honras a Baden Cafés Especiais, de propriedade de Guert e da mãe, Margaret Dorneles, mas não com exclusividade — aberta em 2012, no bairro Santana, onde a família mora há bastante tempo, foi a primeira cafeteria de Porto Alegre especializada no novo nicho de mercado.
É servido também em cafeterias como República, na Cidade Baixa, Café do Duque, no Centro Histórico, e Vive Le Café, no Moinhos de Vento, além de Yami, no Rio Branco, entre outras da capital gaúcha.
Fora de Porto Alegre, se faz presente na Sweez, de Caxias do Sul, e na La Linda Padaria e Café, de Montevidéu.
– O mercado evolui porque, depois de experimentar o café especial, a galera não volta para o tradicional. Fica mais crítica e exigente, diz Guert.
A confraria dos apaixonados por café é mesmo das mais fieis e cativas de que se tem notícia. Anualmente, se reúne em Belo Horizonte durante a Semana Internacional do Café (SIC), encontro que reúne cafeicultores, torrefadores, fornecedores e proprietários de cafeterias, além de estudiosos e apreciadores.
Mas, afinal, quais é o critério que define se um café é especial ou não?
Para ter direito ao rótulo, o produto precisa somar no mínimo 80 de um total de 100 pontos na escala de avaliação dos Q-Graders — algo como Avaliadores Q (de qualidade), expressão que se refere a profissionais que seguem os critérios de certificação da SCA (Specialty Coffee Association), maior entidade do setor no mundo.
Entre outros atributos, esses senhores acima de qualquer suspeita conferem se a planta (sim, o café é uma planta!) é da espécie arábica, mais refinada e também de custo de plantio superior em relação à espécie robusta. Examinam ainda com olhos de lupa as sacas para verificar se existem fragmentos de pedras e galhos entre os grãos — para os cafés tradicionais, o limite de defeitos é 20%, ao passo que, no caso dos cafés especiais, a tolerância é zero.
Muito além de critérios técnicos, o que revela a diferença entre os tipos de café é o grau de acidez, doçura e consistência. Outra característica que salta aos olhos é a cor: ao contrário do café preto comum, a pigmentação da bebida especial lembra à do açúcar caramelizado.
Por muito tempo, nada disso importou para Guert Schinke. Para ele, café era tudo igual — bastava bater o pó solúvel com um traço de água e açúcar, esquentar no micro-ondas e, pronto, era só beber.
A conversão se deu quando a mãe decidiu abrir uma cafeteria, quanto mais não fosse, para ter um lugar em que pudesse se reunir com as amigas do curso de Licenciatura em História da PUC/RS para conversar sobre as pesquisas em andamento.
Para aprimorar o conhecimento teórico, Margaret — até então uma fervorosa apreciadora de chás — participou de cursos de cafés especiais com Luciana Sturba, da cafeteria Grenat, de Brasília, e Isabela Raposeiras, da Coffee Lab, de São Paulo.
Por essa época, Guert imaginava seu futuro profissional trabalhando em fazendas para aperfeiçoar a qualidade do solo. O gringo alto e corpulento, que se esforçava para tomar chimarrão numa tentativa de se enturmar com os colegas da Faculdade de Agronomia, chegou a ser aprovado num exaustivo processo de seleção da Souza Cruz para trabalhar junto aos produtores de fumo, mas na hora H desistiu.
Antes que perdesse o filho de vista em algum rincão nos confins do Brasil, Margaret chamou o rapaz num canto e propôs que ele também fizesse o curso de barista, já pensando em incorporá-lo ao projeto da cafeteria.
– Barista? Mãe, o certo é barman, replicou Guert, meio distraído.
– Não, meu filho, barman é quem faz os drinques. Estou falando da pessoa que prepara os cafés, ensinou, sem perder a paciência.
Para Guert, o curso de barista abriu as portas para o universo ao mesmo tempo complexo e fascinante dos cafés especiais.
– Caíram todos os butiás do bolso, conta ele, ao lembrar a sensação de assombro. – Além de tudo, era um pessoal descolado, sem frescura, acrescenta.
Além de mãe e filho, a cafeteria Baden conta a contribuição desde o início da nutricionista Laura, tia de Guert, gerente da casa e mentora do cardápio, que inclui saborosos doces caseiros como a torta de nozes da avó Irma.
– A ideia era servir os doces que a gente comia no Alegrete quando eu era criança, conta Guert, citando o berço da família da mãe.
Num clima comunitário, além dos préstimos familiares, o cardápio ganhou a contribuição de vizinhas da cafeteria, como Dona Ilza, responsável pela receita da torta de banana, muito apreciada pelos clientes da Baden Cafés Especiais.
A princípio, não houve investimentos em marketing, mas a cafeteria logo ficou conhecida do público graças à propaganda boca a boca da clientela formada especialmente por estudantes e professores da UFRGS, além de médicos e outros profissionais da saúde do Hospital de Clínicas, que circulavam pelos arredores.
Outro fator de atração é o ambiente isento de ruídos e outras distrações que atrapalhem a concentração de quem deseja trabalhar ou estudar de modo sossegado. As tomadas para recarregar o celular e, sobretudo, o Wi-Fi complementam o recinto adequado aos afazeres intelectuais.
Tanto é que, a certa altura, a equipe do caderno Donna, de Zero Hora, passou a realizar suas reuniões de pauta no bairro Santana.
Até que, num belo dia, sem que os donos desconfiassem de véspera, a cafeteria da Rua Jerônimo de Ornelas estampou a capa do caderno Donna. Naquele domingo, Guert nem tinha lido jornal. Só notou que, inesperadamente, as curtidas nos perfis das redes sociais se multiplicaram de uma hora para outra.
– Tem alguma coisa estranha acontecendo, comentou com a mulher, Carol.
Vale lembrar que, na primeira metade da década de 2010, a economia do País ainda não tinha sido bruscamente freada e, em consequência, o poder aquisitivo do consumidor ainda estava em alta, o que também ajudou a impulsionar o movimento da cafeteria.
A semana seguinte à matéria em ZH foi um caos. De uma hora para outra, a Baden virou um point na cidade, duplicando o movimento.
As tortas da avó Irma esgotavam na metade da tarde. O café, adquirido de fazendas do Centro do País, não vinha de um dia para o outro, dificultando a reposição não programada. Era questão de tempo para que Guert se desse conta de que a Baden precisava de torrefação própria.
– Além de tudo, nem sempre o café chegava com boa qualidade, anota ele.
A Baden se mirou na experiência de cafeterias que são referências no Brasil, como Grenat e Ernesto, de Brasília, e Coffee Lab e Sofá Café, de SP. Além disso, a torrefação própria é uma prática comum em países como Estados Unidos, Austrália e da Europa.
O galpão do Passo D’Areia entrou em operação em 2015. Uma pequena parcela do café é oriunda de grandes fazendas, mas a maior parte é plantada em propriedades familiares de agricultores de Minas Gerais e Espírito Santo. Com origem sabida e reconhecida, a produção quase artesanal é fruto de conhecimentos que passam de geração para geração.
– São pessoas extremamente simples, que te recebem em casa. Hoje em dia, os mais jovens saem para estudar em universidades e voltam com tecnologias e métodos inovadores, que agregam às plantações, comenta Margaret.
Uma vez por ano, geralmente em outubro ou novembro, a família proprietária da Baden se desloca até o Sudeste para definir a compra do café colhido dois meses antes. Nunca passa menos de uma semana visitando as pequenas propriedades e escolhendo o produto que irá abastecer a torrefação. Não à toa, o café comercializado com o rótulo da Baden apresenta na embalagem informações como variedade da planta, cidade em que foi produzido, altitude da lavoura e até o modelo do processo de secagem dos grãos.
A abertura da torrefação no Passo D’Areia criou espaço para ampliar a oferta de cursos e workshops que divulgam a cultura dos cafés especiais e formam novos baristas. Antes, essas atividades eram realizadas dentro da cafeteria, atrapalhando o atendimento aos clientes — agora, a maior parte foi transferida para o galpão da zona norte da cidade. Em abril, deverá ser inaugurada uma nova sala da Baden na Rua Vieira de Castro, próxima à cafeteria, com a finalidade específica de também ali promover ações didáticas.
Além da Baden, Porto Alegre conta com outras pequenas torrefações de cafés especiais, como William & Sons Coffee e Origem Cofee. A expansão das vendas despertou o apetite de marcas de grande porte. Ao final de 2018, as gôndolas dos supermercados já ofereciam pacotes de cafés especiais da Três Corações, e a Melitta anunciou que não pretende ficar fora do novo segmento de mercado.
As gigantes não estão para brincadeiras — o barista da Baden, André Martinelli, foi assediado, mas decidiu permanecer no atual emprego. Apesar disso, Guert não se sente ameaçado:
– Essas marcas vão difundir ainda mais essa cultura e, com isso, mais pessoas ficarão sabendo o que são os cafés especiais.
Aumentar a produção da torrefação talvez compensasse financeiramente, mas por enquanto Guert prefere “crescer organicamente” e preservar a paz de uma “vida equilibrada”:
– Gosto de curtir meus filhos, não troco isso por nada.
Antes de encarar o sol tórrido lá fora, o visitante tem uma última pergunta: por que a cafeteria e a torrefação ganharam o nome de Baden?
– Ah, tá bom. Tu estás de sacanagem ou não sabes mesmo?, reage Guert.
Essa história é quase tão saborosa quanto o café que se bebe aos poucos, dando um tempo para sentir aromas e sabores que se soltam aos poucos, à medida que a bebida interage com o ambiente.
Em meio às obras que precederam a inauguração da cafeteria, avós e primos pegaram o hábito de dizer: “Vamos lá no café do Baden”, referindo-se ao yorkshire da família, que passeava diariamente nas pracinhas e ruas do bairro com Guert.
– Em nenhum momento, fizemos uma reunião para decidir o nome. Na hora de abrir a cafeteria, olhamos um para o outro e vimos que não tinha jeito. Baden já tinha pegado.
Em tempo: Baden faleceu no ano passado, aos 14 anos. O nome do cãozinho entrou para a prosperidade ao inscrever Porto Alegre na era dos cafés especiais.