O mapa da cerveja no Centro
mais concentradas na zona norte, as cervejarias de Porto Alegre também estão presentes na área central e na Cidade Baixa
Poucas vezes a linha de produção esteve tão perto do consumidor. Num cálculo aproximado, dá para dizer que a distância não ultrapassa quatro ou cinco quarteirões.
É o espaço que separa a sede da Continente, microcervejaria localizada na Rua Olavo Bilac, e o território de bares especializados em cervejas especiais da Cidade Baixa, o bairro mais boêmio de Porto Alegre. Aglutinados num pequeno trecho da Rua Lima e Silva, estão botecos como Infiel, Quentin’s, Osso Craft Bar e Cervejaria Piratini, entre outros.
– A proximidade ajuda a preservar a qualidade do produto. A cerveja apanha menos, diz Leonardo Paredes, um dos sócios da Continente.
É sabido que o principal polo cervejeiro de Porto Alegre está concentrado numa área de 2 km dos bairros São Geraldo e Anchieta, na região norte da cidade. Neste local, quase 100 mil litros são produzidos a cada mês. O que pouca gente sabe é que, mesmo em menor escala, o Centro Histórico e a Cidade Baixa (áreas de elevado consumo das geladas) também produzem a cerveja que bebem.
Essa produção contínua e bem sucedida possibilita a empreendedores como Leonardo e o sócio João Henrique Xavier, ambos formados em Administração de Empresas, se apresentarem, com muito orgulho, como “empresários do ramo cervejeiro”.
À sombra da figueira
A fábrica da Continente está ancorada num prédio que abrigou anteriormente uma central telefônica da Oi. Por trás do portão de ferro, estende-se um pátio arborizado, no qual de vez em quando se realizam eventos como o Sombra da Figueira, em que clientes e amigos são convidados a conhecer as instalações da cervejaria e experimentar os sabores ali produzidos.
Desde sempre, os donos da Continente frequentaram a Cidade Baixa, o que faz com que conheçam bem de perto o perfil de consumidores a ser atingido. Mas abrir a cervejaria no cantinho mais notívago da cidade não foi “caso pensado”, e sim “questão de oportunidade”, como sublinha João Henrique.
Antes, a dupla montou pontos de venda para comercializar a bebida artesanal que já produzia em pequena escala. Entre 2014 e 2015, estiveram à frente de dois bares diferentes na Rua Joaquim Nabuco. O último deles, O Sobrado, foi vendido para que pudessem investir na ampliação da produção, que em pouco tempo saltou de 1 mil para 6 mil litros por mês. Atualmente, o excedente de tempo e disponibilidade de equipamentos é terceirizado para marcas como Macuco, Altiva e Veterana, que utilizam a estrutura para produzir cervejas com receitas próprias.
Quando alguém pergunta qual é a particularidade que identifica o sabor da Continente, a resposta é quase sempre evasiva. A reticência é uma forma de neutralizar o afã que assola boa parte das marcas de “planejar” sabores exóticos para chamar atenção num mercado cada vez mais competitivo.
É claro que a Continente capricha na criação de receitas recheadas de especiarias, só que a ideia é buscar a diferenciação mediante a qualidade do produto e um posicionamento mais nítido da marca frente à realidade que a cerca.
Exemplo? Sempre que possível, trabalha com a língua mátria, o que é pouco comum no ramo das cervejas especiais. A menos que não haja alternativa – casos, por exemplo, de Ale e Lager, tipos de fermentação – a Continente dispensa estrangeirismos.
Outro atributo que salta aos olhos é a admiração pela obra de Erico Verissimo. Para início de conversa, o nome Continente se inspira no título de um dos tomos de O Tempo e o Vento, obra-prima do escritor gaúcho, como já o fazia o bar O Sobrado, lá no início da trajetória dos cervejeiros.
Como se fosse pouco, algumas das cervejas fermentadas na Rua Olavo Bilac ganharam nomes de personagens de Erico. É o caso da Bibiana, que mistura os lúpulos El Dorado (com origem nos Estados Unidos) e Sorachi Ace (desenvolvido no Japão) com levedura belga e perfume de cardamomo, semente que confere ao produto um aroma fresco e mentolado.
O portfólio da Continente inclui ainda as cervejas África, Fandango e Trigueira – esta última, feita de trigo com toques de cravo e banana, apresenta o “rótulo mais bonito do Brasil” com a imagem de trabalhadores num trigal, de acordo com a avaliação de Leonardo.
Tuk-tuk da cerveja
Uma cervejaria 100% feminina – da produção até a entrega ao consumidor final, passando pela área administrativa. É o que distingue a Macuco no mercado das cervejas especiais.
– Em Porto Alegre, não existe outra com essa característica, assegura Michelle Ferraz, a Mica, advogada paulistana radicada há 17 anos na capital do RS. Ela é sócia da historiadora Fernanda Nascimento no empreendimento.
O toque feminino se reflete menos no aroma ou na textura da cerveja e mais na forma de comunicação que se estabelece entre o produto e sua clientela, como demonstra o clima aconchegante do ponto de venda da Macuco, um barzinho situado na Rua General Auto, quase esquina com a Demétrio Ribeiro, no Centro Histórico.
O ambiente do boteco é bem mais convidativo para uma boa conversa do que, por exemplo, para a algazarra de um jogo de futebol que passa na televisão – não custa lembrar que cerveja e futebol é uma associação corriqueira no mundo das cervejas especiais, que é predominantemente masculino. Por sinal, nem televisão se avista no espaço.
– É um ambiente menos ogro, afiança Mica.
Ela e Fernanda começaram a produzir cerveja em casa como hobby em 2014. No ano seguinte, a bordo de um tuk-tuk – um triciclo montado a partir de uma motocicleta, veículo bastante comum no trânsito de cidades indianas como Bombaim –, a dupla pegou carona no boom das feiras de rua em Porto Alegre. Só que ainda não era a cerveja Macuco que saía das quatro torneiras do tuk-tuk, e sim a Continente.
Explica-se: naquele momento, Mica e Fernanda ainda não haviam ultrapassado os trâmites legais para comercializar a cerva caseira que bebiam junto com os amigos. “Testadíssima” pelos parceiros de festas, como assinala Mica, a Macuco apareceu com todas as honras no mercado em 2017.
A ligação com a Continente foi preservada. Afinal, como cervejaria cigana (sem fábrica própria), a Macuco é feita – com características peculiares – nos equipamentos alugados pela marca parceira.
As cervejas de baixa fermentação e com reduzida graduação alcoólica da Macuco dão ênfase a sabores frutíferos de linha tropical, como bergamota e abacaxi. No total, são 12 rótulos ofertados ao público.
Enquanto Mica cuida das torneiras, Fernanda prepara a outra especialidade da casa – hambúrgueres feitos com a técnica sous vide (sob vácuo, em francês), método de cozimento lento e em baixa temperatura, que busca conservar a maciez da carne. Para vegetarianos e veganos, existe a opção de hambúrguer de grão de bico.
devaneios seculares
Outra opção de cerveja especial no Centro Histórico é o Devaneio do Velhaco, bar que ocupa um casarão construído há cerca de 120 anos na Rua General Portinho, próximo à Usina do Gasômetro, pelo imigrante italiano Salvador Mancuso, bisavô de Bruno Faria, um dos sócios.
A cerveja degustada pelos clientes do Devaneio do Velhaco é produzida lá mesmo, mas não é comercializada fora do estabelecimento. Ao abrir o bar, em maio de 2018, Bruno deu continuidade a uma tradição de família.
Ao contrário da maior parte dos imigrantes, o velho Salvador ao se radicar no Sul do Brasil não se deslocou até o campo para ganhar a vida com uma enxada nas mãos. Preferiu abrir uma peixaria no Mercado Público de Porto Alegre. Sem prejuízo da venda de peixes, ele se enredou nas teias da produção de cerveja, devaneio, aliás, compartilhado por boa parte dos moradores da cidade no século XIX.
– Na época, muita gente fazia cerveja em casa, diz Bruno, que pesquisou a história da família e da capital gaúcha.
O bar tem ainda drinques como gin tônica e aperol spritz, além de um cardápio que inclui cinco opções de sanduíches, com batata rústica de entrada.
O casarão foi reformado com extremo cuidado de modo a preservar ao máximo as características originais, entre elas, a dos tijolos feitos à mão, como salienta Bruno. Ele faz a ressalva de que, embora o projeto tente resgatar a memória afetiva da cidade, particularmente do Centro Histórico, a bebida produzida no Devaneio do Velhaco nada tem a ver com a tradição dos antigos cervejeiros.
– A cerveja que produzimos é pós-moderna. A proposta é a de que não seja encarada como produto, e sim como experiência, explica ele.
Para isso, ela é produzida com frutas e especiarias selecionadas, além de “fermentos captados no ar”, conforme a expressão de Bruno, sendo maturada em barris especiais, de modo que cada lote seja único e irrepetível.
– Você não vai ter a chance de beber a mesma cerveja duas vezes, ainda que repita a escolha da carta. Na próxima vez que experimentar, já será diferente, promete o dono do Devaneio do Velhaco.
Se é assim, um brinde às cerveja feitas em casa, a poucos metros da mesa do consumidor, ou ainda no próprio bairro em que serão sorvidas com prazer nestes dias de verão. Tim tim!