O sagrado do profano
Mãe Ieda de Ogum, símbolo da religiosidade afro-brasileira da Cidade Baixa, é o tema do desfile do bloco Areal do Futuro
O sagrado e o profano têm encontro marcado na encruzilhada dos festejos do carnaval de 2020, em Porto Alegre.
O bloco Areal do Futuro vai homenagear Ieda Maria Viana da Silva, a Mãe Ieda de Ogum, uma das mais respeitadas sacerdotisas da religião afro-brasileira no Sul do Brasil.
Com três horas de duração, o desfile está marcado para o dia 29/fevereiro, a partir das 6 da tarde. A concentração será na Praça Garibaldi, na Cidade Baixa. O cortejo vai se deslocar até a esquina da Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto com a Rua Baronesa do Gravataí.
— Nós somos o verdadeiro berço do samba de Porto Alegre — diz Daniel Rouviel, o Daniel do Areal, vice-presidente do bloco, que representa o Areal da Baronesa.
Encravado na Cidade Baixa, o Areal da Baronesa ocupa a Rua Luiz Guaranha, um beco ou “avenida”, como eram chamadas as ruelas sem saída no passado. Historicamente habitado pela população negra, foi reconhecido como área remanescente de quilombo em julho de 2015. Ali vivem atualmente cerca de 80 famílias.
Fiel às origens, o recanto é marcado pela religião de matriz africana, pelas rodas de samba e, claro, pelo carnaval de rua.
O bloco Areal do Futuro descende de uma escola de samba.
Fundada em 1994, a Academia de Samba Integração do Areal da Baronesa foi campeã do Grupo de Acesso, em 1995, e do Grupo Intermediário B, no ano seguinte. Em 1997, ficou em terceiro lugar no Intermediário A.
Em 2003, a escola solicitou o afastamento dos desfiles em função de dificuldades financeiras, agravadas pela imposição da transferência do carnaval para o Porto Seco. Naquele ano, Daniel se juntou a Cleusa Astigarraga – a Tia Cleusa – e Paulo Silveira, todos moradores do quilombo, para montar o bloco carnavalesco, que herdou as cores maravilha (rosa brilhante, que puxa para o carmim), branco, dourado e prata da Academia de Samba Integração do Areal da Baronesa.
Desde lá, o Areal do Futuro se transformou numa das principais atrações do desfile de blocos, mas as atividades não se limitam ao período de carnaval. Ao longo do ano, o grupo realiza oficinas na sede da entidade, na Rua Luiz Garanha, 16.
Junto com o tesoureiro do bloco, Paulo Silveira, Daniel do Areal é responsável pelas aulas de canto e percussão, ao passo que a presidente da entidade, Tia Cleusa, dirige as oficinas de dança.
As ações didáticas acontecem duas vezes por semana, no turno da noite. Cada turma conta com cerca de 40 alunos, a maior parte formada por crianças e adolescentes do Areal, embora pessoas de fora da comunidade também participem.
A ideia é oferecer, em 2020, também aulas de computador e reforço escolar para a comunidade.
Com tanta manha e gingado, não é de admirar que a bateria do Areal da Baronesa contribua com a percussão de outros blocos, como Maria do Bairro, Bloco do Fusca Azul e Olha o Passarinho do Mário.
Mãe Ieda de Ogum, a homenageada no carnaval de 2020, dirige o Centro de Umbanda Cacique Supremo da Montanha, na Rua Luiz Afonso, 745, que completará seis décadas de atividades em agosto deste ano.
A religiosa, que trabalha com batuque, quimbanda e umbanda, já foi até tema de dissertação – A Quimbanda de Mãe Ieda: Religião “Afro-gaúcha” de “Exus” e “Pombas-gira” – , de Suziene David da Silva, no mestrado em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, em 2008.
Foi também mencionada no livro Religion, Migration and Mobility: The Brazilian Experience (Taylor & Francis), publicado nos Estados Unidos e na Inglaterra, em 2017.
Afora isso, tem muito samba no pé.
Não é de hoje que participa dos desfiles do Areal do Futuro. Saiu ainda em sete escolas de samba de Porto Alegre, entre elas, a Praiana, a União da Vila do IAPI, a Império da Zona Norte, a Copacabana (do bairro Bom Jesus) e a antiga Academia de Samba Integração do Areal da Baronesa, onde foi diretora da ala das baianas. Desfilou também na tribo carnavalesca dos Comanches.
— Estou muito feliz, essa meninada do Areal sempre frequentou minha casa. Além disso, adoro carnaval, só que, aos 79 anos, já não dá para abusar. Por isso, vou ficar lá em cima do carro de som — avisa Mãe Ieda.