O fogo dos tambores
O candombe, ritmo que ecoa há 200 anos pelas ruas de montevidéu, como um ritual de resistência das comunidades afro-uruguaias, começa a ganhar espaço em porto alegre
No dialeto quimbundo, falado no noroeste de Angola, candombe significa sala de reuniões.
Faz sentido. Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade declarado pela Unesco em 2009, o ritmo que ecoa há 200 anos pelas ruelas de Montevidéu tem o dom de reunir a população afro-uruguaia em momentos de festa e conexão com a religião.
O caldeirão rítmico descende da matriz cultural de povos que se espalharam há centenas de anos por vasta extensão do continente africano, ocupando os atuais territórios de Camarões, Angola e Sudão, unidos pelo tronco linguístico batizado de bantu. Após cruzar o Atlântico a bordo de navios negreiros, os tambores do candombe agregaram elementos de teatro e dança para constituir, em solo uruguaio, as comparsas (agrupamentos equivalentes às escolas de samba no Brasil).
Essa tradição do Cone Sul está sendo agora retomada em Porto Alegre pela Tambor Tambora, uma comparsa em fase de gestação, que está promovendo uma série de lives no Instagram para divulgar o candombe. As Conversas Candombeiras, como foram chamadas, deverão se estender até 27/7, sempre às terças-feiras, a partir das 9 horas da noite, com a participação de músicos, pesquisadores e entusiastas do ritmo inventado pelos negros uruguaios (confira aqui a programação).
Tudo começou em novembro do ano passado numa conversa casual entre Pepe Martini e Marcelo Sikinowski no Guernica, bar encravado na secular Travessa dos Venezianos, na Cidade Baixa.
— De repente, tocou um candombe no rádio e passamos a trocar ideias sobre o tema. Descobrimos, então, que ambos somos apaixonados pelo ritmo — conta Pepe, dono do boteco, ao relatar a prosa com o amigo percussionista.
A seguir, a intenção de constituir a comparsa foi maturada em churrascos regados a tambores na Violeta, espaço de moradia popular na descida da Rua Ramiro Barcelos, no bairro Floresta, já com a adesão de novos parceiros – a jornalista Ziza Rabelo e dois outros percussionistas, Lucas Kinoshita e Matheus de Carvalho Leite.
Por sinal, Lucas e Matheus já tinham experiência no ramo. O primeiro foi idealizador de llamadas (desfiles de comparsas) em Porto Alegre em 2010 e 2013. Já Matheus, além de professor de Licenciatura em Música da Unipampa e doutorando em Educação Musical na UFRGS, é um dos fundadores da comparsa Grillos Candomberos, de Bagé
— A bem da verdade, a gente não sabia se criava um evento ou fundava uma comparsa. Escolhemos o caminho mais pretensioso: resgatar o candombe como movimento cultural no RS — relata Ziza.
A palavra resgatar é o termo correto. Afinal, o candombe não é novidade na paisagem do Sul do Brasil. Para começar, a dança é citada pelo folclorista Paixão Côrtes como “manifestação festiva da cultural popular afro-sul-riograndense”, identificada em regiões como Alto Taquari, no livro Folclore Gaúcho – Festas, Bailes, Música e Religiosidade Rural, de 1969.
Em Porto Alegre, particularmente, existem rastros da presença do candombe desde o século XIX, quando o terreiro de Mãe Rita de Xangô promovia festas dominicais no Canto da Várzea, área próxima à atual Rua Avaí, junto ao Parque da Redenção.
Ali se reuniam “pretos roubados de variadas nações africanas”, que tocavam uma variedade de instrumentos de percussão, anota o músico e pesquisador Arthur de Faria na série de artigos As Origens, publicada na revista Parêntese. “Era candombe, mesmo nome do ritmo criado pelos negros de Montevidéu. Mas seria a mesma música? Se jamais saberemos, não custa imaginar que talvez sim”, argumenta ele.
Cabe destacar que, no Brasil, o candombe se faz presente também em Minas Gerais como expressão da religiosidade de comunidades negras da Serra do Cipó, na região metropolitana de Belo Horizonte, conforme mostra o documentário Candombe do Açude – Arte, Cultura e Fé, de 2014. Aliás, no YouTube, também está disponível o CD gravado por um grupo de candombeiros locais, a convite da cantora Marina Machado.
Como não há registros sonoros das reuniões dominicais de Mãe Rita, a principal referência da comparsa que está sendo criada em Porto Alegre é o candombe montevideano, que, diga-se de passagem, sofreu mutações ao longo do século XX ao se misturar com matizes musicais trazidas por imigrantes europeus, os quais conviviam com os negros em cortiços de Montevidéu.
A partir dos anos 1970, músicos como Eduardo Mateo e Ruben Rada desencadearam uma fusão do ritmo tradicional com jazz, blues, rock e até bossa nova no movimento conhecido como Candombe beat, que contribuiu para que, na década seguinte, com a redemocratização do Uruguai, a cena candombeira ganhasse ainda mais visibilidade.
— A volta da democracia revigorou a própria visão do negro na sociedade uruguaia. Talvez por causa desse renascimento, nós, porto-alegrenses, tenhamos hoje acesso ao candombe — diz Pepe.
A escolha do nome da comparsa de Porto Alegre remete ao título de uma canção de Jorginho Gularte, cantor e compositor nascido na capital gaúcha, oriundo de família uruguaia, que faleceu em 2013. Nome destacado do candombe de Montevidéu, era filho de Martha Gularte, escritora, poeta, bailarina e vedete do carnaval uruguaio.
Além disso, ao acrescentar um segundo nome feminino, a Tambor Tambora exalta a igualdade de gênero num universo majoritariamente masculino. Para quem não sabe, até pouco tempo atrás a participação da mulher no candombe se limitava à dança. A ela não se dava o direito de cantar ou tocar os tambores. Nos últimos anos, esse quadro começou a se reverter com o aparecimento de bandas exclusivamente femininas, como La Melaza, de Montevidéu, ou La Tambora, de Salto.
No início de 2020, a Tambor Tambora realizou uma série de reuniões semanais abertas ao público para divulgação do candombe no Quilombo do Sopapo, ponto de cultura localizado no bairro Cristal, sempre aos sábados de tarde. Invariavelmente, ao final dos encontros, com tambores a tiracolo a moçada se dirigia à Praça José Alexandre Záchia para transformar a teoria em prática.
Os planos eram ambiciosos. Já estava tudo certo para organizar o I Encontro Estadual de Candombe do RS em maio deste ano. Depois de três dias de oficinas e debates no Quilombo do Sopapo, o evento seria finalizado com um grande cortejo pelas ruas da Cidade Baixa, juntando as comparsas de Porto Alegre, Bagé e Rivera.
Como era de se prever, a pandemia do novo coronavírus obrigou os candombeiros a adiar o projeto – se tudo correr bem, deverá acontecer antes do final deste ano. O pessoal aproveitou a quarentena para definir a identidade visual da comparsa, escolhendo as cores azul, vermelho e branco sob a inspiração da bandeira de José Artigas, herói nacional uruguaio, além de divulgar vídeos e discos de candombe nas redes sociais.
A essa altura, alguém poderá indagar o que faz essa galera se entregar de corpo e alma ao candombe.
Quem se dedica ao ritmo candombeiro diz que conceituar essa paixão não é tarefa fácil, até porque ela é bem mais que um gênero musical. Para além das peculiaridades rítmicas, o patrimônio vivo dos pretos uruguaios consiste num ritual de resistência social e cultural, que preserva uma visão de mundo e um estilo de vida genuínos.
Talvez quem tenha a melhor definição para o candombe seja a antropóloga Valentina Brena, que. certa vez, afirmou:
— Candombe es todo. Es mi vida, es un sentir — concluiu ela.