Bons negócios solidários
Marcas se unem para sobreviver em meio à pandemia
Para além da imposição dos meios digitais ou do home office, os impactos da pandemia da covid-19 estão abrindo espaço para novos modelos de negócio baseados na colaboração entre as marcas.
Em vez de priorizar a concorrência, empresas criam redes para compartilhar consumidores e postos de venda. Para Laura Madalosso, da CORA – Consultoria Estratégica de Negócios de Moda, uma visão de colaboração e até mesmo de interdependência entre projetos, especialmente de pequeno ou médio porte, começa a se transformar em valor de mercado.
— Há necessidade de uma visão mais horizontal não só entre empresas, mas também entre gestores e colaboradores. Não acredito que essa virada de chave tenha volta após a pandemia — diz Laura.
A tendência aparece com nitidez em segmentos como bares noturnos, gastronomia e moda. Não por coincidência, são áreas severamente atingidas pelos efeitos da covid-19 a partir da segunda quinzena de março de 2020, quando as regras de distanciamento social para conter a propagação do novo coronavírus paralisaram os negócios.
Colaboração raiz
Tome-se o caso do Agulha, bar e casa de shows do Quarto Distrito da capital gaúcha, que criou uma seção denominada “Vendinha” em seu site para comercializar produtos elaborados por amigos e parceiros.
A prateleira virtual do Agulha oferece desde “vestuário de sofá”, como pijamas, meias e camisetas, até cervejas e drinques para matar a saudade do balcão do bar.
— Desde a criação do produto, passando pela fixação do preço, até a divisão de eventual lucro ou prejuízo, tudo é feito em conjunto com os parceiros numa dinâmica colaborativa raiz — conta Eduardo Titton, um dos sócios-fundadores do Agulha.
A marca da colaboração está exibida, por exemplo, nas roupas confeccionadas pela Surreal São Paulo, com design de André Mosquito, que apresentam estampas facilmente reconhecidas pelos clientes da casa noturna.
As camisetas reproduzem a imagem dos cavalinhos flutuantes, que – resgatados de um carrossel de subúrbio desativado – pairavam sobre a sala de shows do bar nos bons tempos, antes da pandemia. Na estante de bebidas on-line, além da cerveja com a marca Agulha, fabricada pela cervejaria artesanal FIL, de Gravataí, há também a opção do Gonzaga, um dos drinques de maior saída do cardápio do bar, agora recriado pela Le Mule Drinks.
— Neste momento em que as marcas estão enfraquecidas, é hora de unir forças — recomenda Ricardo Petrus, dono da Le Mule.
Para Petrus, que usa apenas insumos naturais na fabricação dos drinques, o desafio foi decifrar a fórmula da Netuno (bebida do interior da Bahia à base de cachaça, caju e gengibre), principal ingrediente do Gonzaga original, criado pelo bartender Marcelo Pereira, do Agulha.
A Le Mule tem parceria também com o Café República, para o qual produz o Coffee Tonic, uma combinação de café, gin, laranja e extrato de quinino.
Até maio de 2019, Petrus comandava o Kamão, bar e restaurante que servia pratos para se comer com as mãos na Cidade Baixa, bairro boêmio de Porto Alegre.
Acossado pela violência que batia à porta do bar, nas longas madrugadas, ele adaptou a casinha da Rua João Alfredo para transformá-la numa pequena fábrica de drinques. Até a chegada da covid-19, vendia 10 mil latas e 300 barris por mês para cerca de 250 bares e restaurantes de Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná.
— Agora as saídas não atingem 30% disso, com muito tranco. Estou no modo sobrevivência — anuncia o carioca, casado com uma gaúcha, que vive há oito anos em Porto Alegre.
Petrus achou tão positiva a experiência de negócios colaborativos que decidiu fazer parceria com uma empresa que já nem existe mais – nada menos do que a Kamão, que ele próprio extinguiu há mais de um ano. O resultado disso foi a recriação do Big Jacuzzi, drinque de vodka, amaretto, suco de cranberry e suco de limão, que era servido com muito sucesso no antigo restaurante.
No Kamão, o Big Jacuzzi vinha dentro de uma banheirinha junto com a figura de um pato. Na versão em lata, o mascote foi preservado como enfeite.
— A dificuldade foi encontrar patos de borracha no mercado. Acho que acabei com o estoque — diverte-se Petrus.
Kit para cozinhar em casa
Outra opção do cardápio do Agulha que continua à disposição do público, mas reinventada por parceiros, é o prato Baião de 2, agora com os ingredientes vendidos dentro de uma caixa para que o próprio consumidor cozinhe em sua casa, na segurança da quarentena.
A iniciativa é da startup Cozinhe-me, que até pouco tempo atrás se dedicava a experiências gastronômicas inspiradoras, como os “jantares secretos”. Com a divulgação do endereço momentos antes da refeição, o evento acontecia em locais como o topo do edifício do Hotel Sheraton ou a Nau Live Spaces, hub de inovação plantado no prédio histórico da Sociedade Gondoleiros.
Fiel ao lema de que qualquer pessoa pode cozinhar, desde que tenha um bom assistente, com as restrições impostas pela pandemia a startup passou a enviar caixas – totalmente higienizadas, é claro – para a casa dos clientes, com os insumos necessários para o preparo da refeição. O kit inclui ainda um tutorial com o passo-a-passo da receita e uma playlist no Spotify para se escutar música durante o ritual da cozinha.
Algumas dessas caixas são produzidas em parceria com restaurantes com os quais a Cozinhe-me preserva um “alinhamento de propósitos”, conforme as palavras de Paulo Renato Rizzardi, um dos sócios da empresa. Fora o Agulha, a startup se alinhou à Brizza Forneria para a produção de caixas com ingredientes de pizzas. Outros produtos com diferentes receitas são comercializados no próprio site da Cozinhe-me.
— Com o tempo, as pessoas se afastaram da cozinha e, com isso, ficaram pouco empáticas e até doentes. Estão perdendo o prazer de compartilhar a mesa com os mais próximos e também a oportunidade de desopilar preparando a própria comida — diz Rizzardi.
Casal de confeiteiros
No Vasco da Gama, 1020, bar que também é gerido por Eduardo Titton, do Agulha, a fórmula colaborativa é repetida com uma geladeira virtual, que revende produtos congelados feitos por amigos e parceiros. Na categoria “Boias”, por exemplo, estão à disposição lasanhas de Mauri Olmi e vaca atoladas de Gustavo Nich.
Outra marca exposta na lojinha do Vasco da Gama, 1020 é a confeitaria Adolfo & Cavalli, mais um projeto que veio à tona a partir do impacto da pandemia nos negócios.
Com a quarentena, um casal de confeiteiros decidiu colocar em prática uma ideia que, antes da covid-19, não conseguia levar adiante em função da correria do dia-a-dia. Ingrid Cavalli conta com 15 anos de experiência em alta chocolataria. Já Alexandre Correa Adolfo é responsável pela confeitaria do Justo, restaurante nos altos das Escadarias da Borges, no Centro Histórico.
— A proposta foi criar produtos que nós, chatos de tão exigentes, adoraríamos comer. São receitas artesanais, que pouca gente se arrisca a fazer, já que utilizam utensílios de confeitaria que não se encontra mais facilmente por aí – explica Ingrid.
Ela desenvolve, em paralelo, pequenas esculturas multicoloridas feitas com doces dietéticos, num trabalho que agrega arte e gastronomia.
Bar de calçada
Enquanto se associa a marcas parceiras, o Agulha já pensa na retomada das atividades tão logo seja possível reabrir as portas sem colocar em risco a saúde de clientes e colaboradores. Uma das alternativas em estudo é adotar o formato de bar de calçada.
Como, num primeiro momento, é bem provável que os bares operem com capacidade bastante reduzida, a intenção é franquear uma janela externa para atendimento aos clientes e transeuntes que prefiram ficar a céu aberto, onde o risco de contágio é menor. Já que o Agulha está numa zona industrial, com poucas residências próximas, existem mínimas chances de causar transtornos junto à vizinhança. Aliás, uma ação em moldes similares, batizada de Ocupa Rua, está sendo montada pela prefeitura de São Paulo.
Aqui, para levar a proposta adiante, o Agulha avança nas tratativas junto à prefeitura de Porto Alegre para execução de projeto de requalificação urbanística da Rua Conselheiro Camargo, onde o bar se localiza, com aprimoramento de calçadas e iluminação, ação que já vinha sendo planejada há algum tempo.
costura solidária
A exemplo de gastronomia e lazer noturno, a moda também sentiu na pele o impacto da pandemia.
— Não é uma indústria essencial no cenário que estamos vivendo. Comprar roupas não é prioridade para ninguém neste momento — pondera Laura Madalosso, da CORA – Consultoria Estratégica de Negócios de Moda.
O quadro se agrava à medida que a maior parte das empresas trabalha com pequena escala e pouco capital de giro, dependendo exclusivamente das vendas para continuar operando. Diante disso, a CORA promoveu mentorias on-line gratuitas para ajudar as marcas a tomarem decisões estratégicas num curto espaço de tempo em meio à pandemia.
A seguir, a CORA produziu o relatório 10 aprendizados para pequenos negócios de moda: como encontrar força em tempos de covid-19, no qual aponta novas formas de fazer, vender e usar roupas. No documento, indica cases de empresas que conseguiram rentabilizar seus negócios a partir de ações como crowdfunding, oficinas de upcycling (técnica de reutilização de materiais descartados) on-line e reformulação de canais de conteúdo.
Uma das iniciativas citadas no relatório é a Cós – Costura Consciente, grupo formado em 2019 para instituir um ambiente de aprendizado e experimentação em moda para cerca de 15 mulheres no Vila Flores. As atividades de aprendizagem resultaram num ciclo de desenvolvimento e produção, que começou com embalagens e se estendeu à criação de ecobags e malas, entre outras peças, atendendo marcas locais que se disponibilizaram a atuar como parceiras.
Aí apareceu a pandemia e, com ela, veio uma sensação que Liz Unikowski, responsável pela Cós, descreve como semelhante à de ser atingida por um caixote (onda forte) no mar.
— Demorou um mês para a gente se recuperar da chacoalhada. Quando recobramos o fôlego, mudamos os planos.
As costureiras da Cós passaram a produzir máscaras em parceria com empresas e instituições como Mercado Brasco, Fundo Elo, cooperativa 20 de Novembro e SIVERGS (Sindicato da Indústria do Vestuário do RS). Além de vendas ou doações, as peças serviram para proteger os colaboradores das entidades parceiras durante o horário de trabalho.
O modelo de colaboração está ainda mais evidente na formação do MAG (Moda Autoral Gaúcha), movimento que reúne mais de 40 membros, entre marcas e empreendedores. Depois de lançar um manifesto em abril, defendendo ideias como o papel social da moda e a valorização de marcas autorais e locais, o MAG passou a divulgar não só produtos, mas também os autores e os processos usados na confecção das peças, em seu perfil no Instagram.
— O movimento surgiu a partir da necessidade de não ficarmos paradas. Com a união de esforços, fica mais fácil dar visibilidade às marcas e também explorar novos caminhos durante a pandemia — conclui uma das fundadoras do MAG, Paula Visoná, coordenadora do curso de Especialização em Design Estratégico: Inovação e Prototipagem da Unisinos.