Candidatos fora da bolha
Nani, do Tutti Giorni, a roqueira Polaca e Sônia, dona de bar da Cidade Baixa, desafiam perfil tradicional dos partidos de esquerda nas eleições de 2020.
Em 2020, uma eleição atípica, praticamente sem campanha presencial por causa da pandemia da covid-19, reserva também surpresas na lista de candidatos. Nomes fora do circuito tradicional da política tentarão se eleger para a Câmara de Vereadores de Porto Alegre, dando ao eleitor um leque maior de opções.
É o caso do pré-candidato (as candidaturas ainda serão formalizadas nas convenções partidárias) pelo PSOL Ernani Marchioretto, o Nani, dono do bar Tutti Giorni, refúgio de cartunistas, jornalistas e apreciadores do samba na Escadaria da Borges de Medeiros, no Centro Histórico.
A bem da verdade, essa é a terceira vez que ele tenta a sorte na urna eletrônica – foram duas eleições para a Câmara Municipal e outra para a Assembleia Legislativa, sempre alcançando a posição de suplente. Na última ocasião que buscou uma cadeira de vereador, em 2016, arrebanhou cerca de 500 votos, “meio sem fazer campanha”, só com o apoio de amigos e conhecidos.
Entre as propostas que Nani planeja apresentar no Legislativo Municipal, está a de ensinar alunos da rede pública a fazer pão. “Se a criança ou o adolescente aprende isso, acaba a fome no mundo. Pelo menos na família dele, vai ter pão certo”. Outra ideia é incentivar as atividades de bares e restaurantes à noite para recuperar áreas abandonadas da cidade. Nesse ponto, é claro, fala por experiência própria.
Fundado em 1989, o Tutti Giorni ocupou os altos da Escadaria da Borges até 2012, quando foi despejado após divergências com o condomínio do prédio. Atualmente, está atendendo alguns degraus abaixo, nas proximidades do Hotel Savoy.
— Antes da pandemia, o bar tinha samba ao vivo às terças até as 9 da noite, sempre respeitando o horário de sossego dos vizinhos. Com isso, os moradores podiam descer e até botar cadeira de praia na calçada para tomar um mate, se quisessem, sem correr risco de assaltos. Áreas desertas é que trazem insegurança – afiança.
Outro exemplo é o Largo dos Açorianos, onde o Tutti Giorni montou barricada entre 2012 e 2015, chegando a reunir 2 mil jovens nas cercanias em noites mais movimentadas. Atualmente, é uma das regiões de lazer mais procuradas pela população, após a reforma da prefeitura entregue em 2019.
— O local estava completamente degradado. A passagem do Tutti Giorni transformou a área num espaço habitável — afirma.
A pergunta que não ousa calar: se eleito eleito for, vai acabar o Tutti Giorni?
Peremptoriamente, Nani assegura que não. O máximo que pode acontecer é ele trazer amigos para ajudar a cuidar do balcão. “Não posso fechar o bar. Nem é mais meu. A essa altura, é um patrimônio da cidade”.
O rock no poder
A roqueira Ana Paula Rocha, a Polaca, é uma legítima representante da geração que fez do bairro Bom Fim um território da cultura alternativa nos anos 1980 e hoje – amadurecida – pretende influenciar os destinos da cidade.
Fundadora da 3D, banda de punk rock formada há 30 anos só por mulheres – quase uma exceção à regra no universo roqueiro da época, predominantemente masculino –, ela é pré-candidata a vereadora pelo PT. A ideia de concorrer se deve a apelos insistentes de amigos e conhecidos:
— Parece brincadeira, mas não é. É da minha natureza a preocupação com as outras pessoas, principalmente com quem mais precisa, talvez por isso ouvia tantos pedidos para que eu me candidatasse algum dia — conta ela, com expressão séria. Em seguida, abre um sorriso: — Agora, decidi ouvir a voz do povo.
Com uma vasta rede de amizades, graças à facilidade de relacionamento e comunicação, ela espera também conquistar a adesão da parcela da população receptiva às propostas que projeta defender na Câmara, como a retomada do Orçamento Participativo e o fortalecimento dos conselhos municipais, os quais propiciam a participação direta da comunidade na administração pública.
Para alcançar os 3 mil votos que considera necessários para se eleger, Polaca terá que ultrapassar resistências dentro da própria trincheira. Há poucos exemplos de músicos que conseguem mobilizar a categoria para alcançar cargos de representação política.
— A classe musical é desunida. Precisa de tempo para criar uma cultura de agregação e fortalecimento — afirma ela, que faz parte da coordenação da Associação dos Músicos da Cidade Baixa.
Além disso, entre roqueiros, é comum a convicção de que política é pura alienação, acompanhada da ideia de que nenhum político presta.
— Em política, não existe vácuo. Se não ocuparmos esse espaço, alguém vai preencher, e provavelmente não vai ser uma voz representativa dos nossos interesses, alerta Polaca, que, em paralelo à carreira musical, cursa Serviço Social na Escola de Humanidades da PUC/RS, além de cuidar profissionalmente de crianças e idosos.
A voz da CB
No gueto boêmio da Cidade Baixa, uma das áreas menos glamorosas é o quarteirão da Rua José do Patrocínio, entre a Lopo Gonçalves e a Joaquim Nabuco. Nessa região, botecos do tipo pé sujo que orbitam ao redor do Opinião fazem um contraponto à danceteria e casa de shows, que atrai público de vários cantos da cidade.
Um deles é o IN Sônia, abrigo de diferentes tribos urbanas, que cultivam algo em comum – o apreço pela liberdade de ser o que se é. Frequentadores de diferentes classes sociais e orientação sexual, a maioria jovens, se misturam no bar de Sonia Maria Bastos, pré-candidata a vereadora pelo PSOL em 2020.
— Aqui entram seres humanos, não importa a aparência. Lutei a vida toda contra rótulos e preconceitos, avisa a dona do boteco.
O nome do bar foi sugestão do biólogo Francisco Siliprandi Kuwer, o Chico, frequentador assíduo, depois de um diálogo inusitado com um amigo na calçada da José do Patrocínio.
— Onde tá indo? – perguntou Chico.
– No IN Sano (pub da Rua Lima e Silva). E tu? — quis saber o conhecido.
— Eu vou no IN Sônia — inventou Chico, de improviso, batizando o bar, que até então ainda não tinha placa na porta.
Essa relação de afeto e cumplicidade é um dos fatores que interferiram na decisão da dona do boteco de disputar uma cadeira na Câmara Municipal.
Embora tenha participado de movimentos políticos como os protestos contra a Copa do Mundo de 2014, Sônia conta que só há pouco tempo resolveu ingressar na política partidária, incentivada pelo público do bar.
— Tenho um histórico de engajamento em causas populares e de participação em atividades de arrecadação de alimentos e roupas para quem passa fome e frio, mas a vontade de participar da eleição se deve a uma exigência da galera.
Como proprietária de um estabelecimento que avança a madrugada de portas abertas, ela conta com a proteção dos clientes, que a protegem e previnem desordens no interior da casa. Com o passar do tempo, Sônia ganhou a confiança deles para conversar sobre temas que – ela descobriu depois – nem sempre são debatidos no ambiente familiar.
— Percebi que os jovens não falam com os pais sobre determinados assuntos. Como eu sou de conversar sobre qualquer coisa, sem medo, eles começaram a se abrir comigo. Hoje, alguns até trazem pai e mãe para mostrar com orgulho o bar, que é a segunda casa deles.
No Legislativo Municipal, Sônia planeja levantar bandeiras como o combate à violência contra as mulheres (da qual Sônia foi vítima, tendo denunciado o ex-marido) e a defesa da diversidade sexual. Ela promete usar na campanha eleitoral o gesto de levantar o dedo médio da mão, que não se furta a reproduzir no corredor do bar, com ironia e deboche.
— Não vou brincar na política, mas é preciso ter leveza, sair da mesmice. O dedo é um gesto de protesto contra a corrupção e o descaso dos governos em relação à saúde pública, entre tantas injustiças — justifica.
A pré-candidata já tem até hino de campanha, composto por Lipe Miranda. Conheça a letra:
A Sonia vem aí
Vamos apoiar a melhor pessoa
A Sonia é da galera
E pra tudo acontecer
Chama os guris, as gurias
Vamos agitar o rolê
Se não for pra mudar essa porra
Ela disse que nem vai entrar
A dona da porra toda
A Sonia eu vou apoiar