Agulha na bolha
Bar do Quarto Distrito se propõe a romper guetos da cena urbana
Um galpão ao final de uma rua sem saída.
Pouca gente diria que é o lugar ideal para abrir um bar. Mas é ali na Rua Conselheiro Camargo, num beco do bairro São Geraldo, no Quarto Distrito de Porto Alegre, que se localiza o Agulha, uma das casas mais bem conceituadas da cena boêmia e cultural da capital gaúcha, em função da qualidade de sua programação de shows e também da originalidade de sua proposta.
É verdade que o Agulha é mais que um bar. Quem sabe possa ser definido como um espaço aberto a eventos de música, teatro, cinema e artes gráficas, entre outras manifestações culturais?
– A gente não encontrou uma definição, e isso nos agrada. É bom não ficar preso a um rótulo, que traz sempre limites, diz Eduardo Titton, que abriu o negócio em parceria com o irmão Fernando.
O Agulha foi inaugurado em junho do ano passado, ainda em obras, para a apresentação de onze bandas no Dia da Música, festival que acontece simultaneamente em dezenas de palcos por todo o País. Em 2017, foram 470 shows em 54 cidades no Brasil, envolvendo um público de 47 mil pessoas.
A abertura oficial da casa aconteceu algum tempo depois, em agosto, após a conclusão das obras.
Girafa e cavalinhos
Basta ultrapassar a porta da frente do galpão de 350 metros quadrados para perceber que não é um bar convencional.
Logo na entrada, à direita, estão o balcão de check-in e um armário para guardar bolsas e casacos. Os pertences se acomodam em gavetas fechadas com um cadeado, que fica sob a responsabilidade do cliente.
Pouco adiante, a porta da cozinha oferece uma janelinha para que se faça diretamente por ali os pedidos de comida – uma peculiaridade do Agulha é não ter um garçom sequer entre as oito a onze pessoas que trabalham na casa, quantidade que varia de acordo com o movimento de público.
A sala de estar se transforma em dias de shows numa lojinha para a venda de CDs e camisetas das bandas. O sofá vermelho guarda lugar para quem deseja jogar conversa fora ou escutar os acordes improvisados num piano estrategicamente disposto aos que ousam experimentá-lo (quase toda noite alguém topa o desafio).
Uma prateleira ocupada com vasos de plantas separa, como se fosse uma parede verde, a sala de estar dos banheiros – ambos unissex e um deles para portadores de necessidades especiais.
Um passo a mais e chegamos à área do bar propriamente dita, não por acaso a de maior concentração de frequentadores. Um balcão comprido espicha-se à esquerda, com banquetas altas à frente e duas torres de cerveja artesanal, uma em cada ponta, para dar maior vazão aos pedidos. Não esqueçamos que não há garçons circulando pelo recinto.
O mobiliário foi garimpado em lojas de antiquários, exemplos de mesas, sofás e cadeiras, quando não em algum ferro-velho, caso de um armário comprado a quilo! É uma escolha mais do que estética: a sensação é a de estarmos na casa de alguma tia ou de outro parente próximo.
– O objetivo é esse mesmo: fazer com que as pessoas se sintam em casa, concorda Eduardo.
Uma porta lateral se abre para o corredor externo, outra área de lazer, que está sendo aprimorada com serviços de jardinagem. Nos fundos do corredor, existem mais três banheiros disponíveis.
Finalmente, o último espaço do galpão é a Sala de Concertos, equipada com microfones, pedestais, mesa de som e amplificadores de guitarra e contrabaixo, entre outros itens, que possibilitam mesmo a bandas com pouca ou nenhuma estrutura subir ao palco e tocar sem maiores dificuldades.
Aqui a decoração dá continuidade ao estilo vintage dos demais ambientes, dessa vez com a presença de rádios e gravadores (de rolo) antigos.
– Faziam parte do cenário de um espetáculo de jazz que ficou permanente, explica Eduardo.
Dois ou três cavalinhos e uma girafa, pendurados no teto, que espiam a plateia lá de cima, vieram de um carrossel de subúrbio desativado. Para completar, quando não há programação de shows, duas mesas de pingue-pongue se oferecem para quem quiser praticar o esporte.
Falando em animais, duas frases impressas no cardápio recomendam: "Tenta não pedir canudos. Eles matam tartarugas".
O cardápio, aliás, procura se harmonizar com a simplicidade do cenário, ofertando desde opções triviais como algodão doce – com cores diferentes a cada dia –, e quindins até pratos de terras distantes, como o Mulligatawny, uma sopa da culinária anglo-indiana feita com carne de cordeiro, engrossada com arroz e temperada com uma mistura de especiarias conhecida como Garam Masala.
Mas a principal atração do menu é o Bolovo, petisco de origem provavelmente escocesa (em inglês, scotch egg), que nada mais é do que ovo cozido envolto em carne moída e depois frito.
No que tange a bebidas, a ordem da casa é também apostar na descomplicação. Fora a Original, única gelada convencional à disposição, são quatro tipos de cervejas artesanais – clara, escura, de trigo e amarga, incluindo a marca própria produzida em parceria com cervejaria Fil. E os drinques igualmente seguem a linha minimalista:
– Optamos por trabalhar com poucas alternativas, cada uma cumprindo seu papel.
Os drinques são chamados no balcão por nomes de pessoas – Alda (cachaça Benzadeus, limão e bitter), Chico Pedro (canelinha, vodca, xarope de maracujá e espumante) e Alípio (whiskey, Fogo Paulista, limão e bitter de laranja) são alguns exemplos.
A capacidade máxima é de 350 pessoas, mas foi estabelecido o limite de 300 para garantir que todo mundo se sinta confortável, principalmente na sala de shows. Até hoje, o recorde numa só noite, contando o entra e sai do público, é de 450 pessoas.
O Agulha fica aberto das sete horas da noite até duas da madrugada, de terça a sábado durante os meses de verão (no resto do ano, troca a terça-feira pelo domingo).
Tempestade de ideias
O nome do bar surgiu durante uma brainstorming (tempestade de ideias), pouco antes da inauguração, quando Eduardo e Fernando colaram cartolinas numa parede e, com lápis e canecas de cerveja nas mãos, passaram a escrever palavras soltas que vinham à mente, a partir de objetivos previamente definidos para o negócio.
– Alguns estavam bem claros, outros nem tanto, admite Eduardo.
Pelo menos uma coisa era líquida e certa: a missão número 1 do bar deveria ser a de furar as bolhas de convivência que separam os diferentes públicos do circuito cultural e boêmio da cidade.
– As pessoas atualmente convivem em grupos cada vez mais homogêneos e isolados uns dos outros.
Para chegar a tal conclusão, os sócios olharam para si próprios. Eduardo advogou por um bom tempo antes de se transformar em proprietário de bar – os irmãos possuem também o Bar 1020, café instalado na Rua Vasco da Gama, no Bom Fim. Fernando, por sua vez, depois que se formou em Administração de Empresas, trabalhou no escritório regional da Fiat no RS, cuidando da operação de distribuição de carros.
– Não foi difícil perceber que as bolhas que frequentávamos também não se comunicavam.
No mundo das artes, a situação não é muito diferente. Cada vez menos a galera do cinema se comunica com os músicos, os quais pouco interagem com a turma do teatro, que mal fala com o pessoal das artes plásticas, e assim por diante.
Definida a missão, restava batizar o bar com uma palavra que representasse o rompimento dos nichos segregados.
Para estimular a conversa, riscaram na cartolina uma grande interrogação como ponto de partida: o que é capaz de furar bolhas?
Uma rápida pesquisa técnica mostrou dicas que iam desde a diferença de pressão atmosférica até a evaporação da água, que diminui a película de bolhas. Cá entre nós, não era bem o que estavam procurando.
Então, pela primeira vez, surgiu a palavra agulha.
Quando, ao contrário, buscaram vocábulos que sugerissem a imagem do ato de colar partes separadas, entre tantas sugestões, apareceram itens de corte e costura, como linhas e, mais uma vez, agulha.
Por fim, decidiram se inspirar no glossário da cena musical. Afinal, os músicos estão ameaçados de perder espaço para divulgação de seus trabalhos com a já anunciada extinção da Fundação Piratini, da TVE e da FM Cultura, e também com a escassez de editais públicos de fomento à produção cultural.
– Além disso, como estamos num local distante dos pontos tradicionais de boemia, como a Cidade Baixa e o Moinhos de Vento, logo pensamos que, de todas as artes, a música é a que mais moveria as pessoas a saírem do eixo a que estão habituadas.
Na tela da imaginação, passaram termos relacionados à música, como vinil, disco, toca-discos e... agulha, de novo!
Ainda havia restrições à palavrinha que teimava em transbordar na tempestade de ideias devido ao caráter, digamos, afiado e, em teoria, agressivo do significado. Curiosamente, naquela semana, Eduardo visitou os bares Guilhotina e Lâmina, de São Paulo, e constatou que ambos os negócios estavam indo muito bem, obrigado.
O teste final se deu quando a designer Alice Albuquerque, responsável pela logomarca do bar que estava prestes a ser aberto, perdeu-se a caminho de uma reunião com os irmãos Titton. Avisada da exata localização do galpão, ela não resistiu:
– O quê? Vocês querem que eu ache um galpão no Quarto Distrito de Porto Alegre? Mas isso é o mesmo que procurar uma agulha no palheiro!
Pronto, não havia mais discussão. O bar Agulha estava batizado.
Sonho utópico
Se fazem questão de não se submeter ao lugar-comum dos rótulos, como vimos antes, os donos do Agulha têm posição firme quando projetam o modelo ideal de cidade a ser construída.
Um dos conceitos que mais prezam é o de que a ocupação das calçadas tem impacto positivo sobre o bem-estar e a segurança de quem vive nos espaços urbanos.
– A gente realmente acredita nisso e teve uma prova durante o recesso de final de ano, quando quatro carros estacionados na rua tiveram os pneus roubados. O Agulha e os estabelecimentos da vizinhança estavam fechados. Enquanto estivemos abertos, nada aconteceu.
Por isso, ao longo de 2018, boa parte dos recursos alocados para reinvestimento será destinada a um projeto de melhorias da Rua Conselheiro Camargo.
– Imaginamos que investir em ações da porta para fora do bar, com o objetivo de tornar a rua mais agradável, vai trazer mais gente para cá e realimentar o negócio, prevê Eduardo.
Já foram iniciadas conversas com os vizinhos de quarteirão – desde oficinas de máquinas pesadas e de automóveis até empresas de logística, transporte e grãos –, que se mostraram motivadas a participar do que Eduardo qualifica, modestamente, como uma “micro/micro/microrrevolução”.
O projeto prevê ações urgentes, como a pavimentação necessária para tapar os buracos da pista, bastante danificada pelo trânsito intenso de caminhões, além da instalação de bancos e mesas de jogos de dama nas calçadas. Existe até a possibilidade de construção de uma cancha de bocha.
– Caminhoneiros e mecânicos que trabalham na vizinhança precisam de espaços de descanso e lazer, justifica Eduardo.
Já a calçada em frente ao Agulha deverá receber uma arquibancada para acomodar os clientes do bar que preferem curtir a rua.
Embora os empreendedores estejam conversando com representantes das áreas de turismo e da indústria criativa da prefeitura da capital gaúcha, a intenção é iniciar a execução das obras com ou sem a participação do poder público.
Para isso, além de verba própria, serão aplicados recursos obtidos por meio de crowdfunding.
– A ideia é disponibilizar o que podemos entregar para os participantes do financiamento coletivo, como drinques e ingressos para espetáculos, de acordo com o valor que cada pessoa puder investir.
Na Fase 1, as melhorias incidirão na quadra até a próxima esquina. A Fase 2 compreenderá o quarteirão seguinte, a Fase 3 até a outra esquina, e assim passo a passo o "sonho utópico", como define Eduardo, cumprirá os estágios necessários para virar realidade.
Desse modo, espera-se que uma cidade ideal surja aos poucos e se irradie como um vírus do bem.
– Ocupar as calçadas é um desejo do porto-alegrense, confia o dono do Agulha.