Sr. Bamboletras
Livraria mais cult da cidade tem novo dono
O anúncio foi feito no domingo, dia 18 de março, pela fundadora Lu Vilella, em seu perfil no Facebook, pegando de surpresa amigos e clientes:
“Queridas e queridos. Então, vendi – não fechei – a Bamboletras. Fica aqui meu abraço mais carinhoso às milhares e amorosas parcerias, durante duas décadas!”.
Em contato com a reportagem de Rua da Margem, falando por telefone de uma praia no sul de Florianópolis, Lu Vilella limitou-se a dizer que, por um lado, sente-se contente de passar adiante a Bamboletras “numa fase excelente, super bem comercialmente, na contramão do que acontece no mercado, com muitas livrarias fechadas”.
De outra parte, não escondeu que o processo de se desfazer do empreendimento é doloroso, comparado a um período de luto pela perda de um ente querido:
– Não está sendo fácil, é o projeto de uma vida, que nasceu do sonho de ter uma livraria, explicou. A seguir, ela complementou, já encerrando a conversa: – Quero viver esse luto e ficar quietinha no meu canto, olhando para o mar.
Milton Ribeiro, o novo controlador da Bamboletras, se diz feliz, mas ciente da responsabilidade de assumir o bastão:
– A Bamboletras é bem mais do que uma livraria. Na realidade, é um dos principais pontos de cultura da cidade. Espero mantê-lo com qualidade e dignamente, afirma ele.
Personal booker
A história da Bamboletras começou em 1995 na Rua da República, como uma livraria dirigida ao público infantil, o que inspirou, inclusive, o nome – Bamboletras, ou “bambolê de letras”. Um ano depois, se transferiu para uma loja do Centro Comercial Olaria (onde está até hoje), junto a bares, restaurantes, cafés e salas de cinema. Em seguida, abriu espaço para obras de literatura adulta, sociologia, psicanálise, filosofia, antropologia, política, artes visuais etc., adotando o slogan “a livraria de todos os gêneros”.
Com carisma de sobra e, principalmente, um vasto conhecimento sobre livros e literatura, Lu Vilella estabeleceu uma relação de confiança e proximidade com os clientes, a ponto de ser chamada por alguns deles de personal booker, graças às boas recomendações que fazia. Além disso, criou vínculos estreitos com artistas locais, promovendo eventos ou disponibilizando a venda de ingressos de espetáculos.
Cliente da casa, Milton acalentava há tempos a ideia de ter uma livraria. Em novembro do ano passado, soube por um amigo que a proprietária pretendia repassar o ponto. Assim que pôde, ele sugeriu para Lu Vilella a ideia de assumir a administração da Bamboletras.
– Ué, faz uma proposta, respondeu ela.
Em função da correria do período de final de ano, as negociações só foram efetivadas em fevereiro, quando chegaram a bom termo.
Segundo Milton, a Bamboletras vai continuar sendo o que sempre foi – como gosta de destacar Lu Vilella, uma “pequena grande livraria” ou “pequena no tamanho, mas grande na diversidade de títulos, no atendimento e no vínculo com a comunidade”.
Ele salienta que, como cliente, sempre admirou o conceito adotado pela antecessora, que passa a léguas de distância de best sellers e outros títulos de apelo comercial.
– A Bamboletras tem uma tradição e um caminho próprio que não serão alterados, posso garantir.
Igualmente, a equipe de quatro funcionários será mantida, incluindo Gustavo Ventura Gomes, ex-proprietário do sebo Ventura Livros, que soma 32 anos de experiência no ramo.
Obviamente, Milton planeja acrescentar ao perfil da Bamboletras algumas facetas e convicções próprias, como a ampliação do acervo de literatura clássica. Ele cita como exemplo o lançamento recente da Companhia das Letras, Confissões do Impostor Felix Krull, último romance escrito por Thomas Mann, em 1954, que não encontrou nas estantes.
Além disso, Milton promete incrementar o acervo de música erudita na prateleira de CDs.
Aliás, a violinista da OSPA, nascida na Bielorrússia, Elena Romanov é uma das raras paixões que rivalizam com a literatura no cotidiano do novo dono da Bamboletras. Eles estão casados há quatro anos e seis meses, como Milton postou em seu perfil no Facebook no último dia 28 de fevereiro – para quem não sabe, ele registra a cada mês nas redes sociais há quanto tempo desfruta da felicidade de estar ao lado dela.
Protótipo da geringonça
Esta é não é a primeira guinada na vida do novo proprietário da Bamboletras, que largou na década passada a carreira de técnico em informática para abraçar o jornalismo. Em 2010, ele se integrou à equipe do portal Sul21, local em que cumpriu expediente até o último dia 9 de março.
A bem da verdade, Milton é um sujeito eclético desde os bancos universitários. De 1976 a 1980, passou por três faculdades – Engenharia Elétrica, Engenharia Química e Comunicação Social – até se formar em Informática. Num certo momento, chegou a acumular matrículas simultâneas nos quatro cursos na UFRGS.
Ainda sobrava tempo para frequentar os bares da Arquitetura e da Filosofia, com incursões frequentes aos botecos da Esquina Maldita, gueto boêmio encravado no começo da Avenida Osvaldo Aranha.
– No bar da Arquitetura, a busca era por sexo e diversão – havia mulheres lindas por ali. Já na Esquina, o que atraia era o debate sobre política, relata.
De fato, no bar Alaska, as discussões acaloradas se prolongavam madrugada adentro, sempre pautadas pelo pavor de receber a qualquer momento a visita indesejada das forças de repressão da ditadura militar.
No começo da década de 1980, quando a Justiça Eleitoral anunciou a utilização de aparelhos eletrônicos de votação (rudimentares precursores das atuais urnas eletrônicas), amigos ligados ao Partidão – como era conhecido o Partido Comunista Brasileiro – solicitaram a Milton uma consultoria técnica. Farejavam na novidade tecnológica alguma tramoia para fraudar a eleição e pediram que Milton examinasse um protótipo da geringonça.
– Assim, a minha ligação com a resistência ao regime militar era eminentemente técnica, diverte-se Milton, ao relembrar a história.
Dono de uma biblioteca pessoal com cerca de 3 mil obras, Milton já na época de estudante tinha sua imagem vinculada à literatura. Era conhecido como o “guri dos livros” devido ao costume de circular pelo campus da UFRGS e adjacências com exemplares embaixo do braço.
Até hoje, os amigos dizem que ele é um catálogo de consulta ambulante. Na hora de presentear alguém com livros, já sabem a quem pedir sugestão.
– Dou meus palpites e, eventualmente, até acerto, diz Milton, com modéstia.
A literatura também cumpriu o papel de restabelecer uma linha de comunicação com o pai, de quem herdou o nome e o gosto pela música – pai e filho chegaram a inventar um jogo de quem acertava primeiro qual a peça erudita que estava sendo executada na Rádio da Universidade.
Mas, pouco afeito à leitura, o dentista Milton às vezes puxava o assunto de livros com o filho só para costurar diálogos:
– Não era um pai que manifestasse muito carinho em casa, até por temperamento, e como sabia que eu gostava de literatura, ele falava disso para buscar uma aproximação.
Travessuras adolescentes
Com a nova rotina, Milton não mais será visto no horário de almoço na sala de leitura do prédio histórico que abriga a Biblioteca Pública do Estado do RS, como acontecia até outro dia.
Como a sede do Sul21 fica na Rua da Ladeira (como é chamada a General Câmara, no Centro Histórico de Porto Alegre), Milton costumava almoçar no Tuim, quase ao pé da lomba, e depois subir até a Riachuelo para “abstrair de tudo” durante meia hora na Biblioteca.
– Os livros têm um indefinível poder consolador, difícil de tangenciar, especula o mais novo livreiro da cidade, ao buscar uma explicação para a sensação de paz e tranquilidade que sentia ao voltar para o trabalho após o intervalo do almoço. Em seguida, ele complementa: – Tanto isso é verdade que a crise econômica não afetou o mercado editorial. As vendas permaneceram estáveis, salienta.
Outra prova da relação íntima de Milton com o universo das letras era o hábito clandestino de roubar livros durante a adolescência, sobre o qual ele até já escreveu algumas crônicas.
– Sim, quando era adolescente roubei muitos livros, mas sempre com ética, ressalta ele.
A ética do rapaz de espinhas no rosto consistia em não causar prejuízos às pequenas livrarias, principalmente os sebos, cujos proprietários eram quase todos seus amigos. Os alvos prediletos da ação do meliante eram as grandes livrarias e também os supermercados, no tempo em que esses templos do consumo vendiam livros.
Na época, alguns supermercados acolhiam lanchonetes em seu interior. Por isso, a estratégia era pegar o livro da gôndola e pedir um hambúrguer. Conforme mastigava o lanche, o garoto ia rabiscando anotações nas páginas virgens e ainda inscrevia o próprio nome, com data antiga. na folha de abertura do livro para que não houvesse dúvida de que a obra lhe pertencia.
Por fim, levantava-se calmamente e deixava o local com o livro embaixo do braço, sem ser importunado.
– Ainda saía bem alimentado, frisa ele.
Nos dias de hoje, roubar livros é uma prática quase inviável frente à tecnologia a serviço da segurança dos estabelecimentos – por sinal, a quem interessar possa, não faltam câmeras de vigilância no Centro Comercial Olaria.
E, cá entre nós, o hábito não passava de uma travessura adolescente, aliás, compartilhada na época por um bom punhado de jovens intelectuais imberbes, sem dinheiro no bolso.