A fábrica de botões que virou uma badalada casa noturna do Quarto Distrito

A história da Frankenberg & Cia Ltda, indústria que ocupou durante mais de seis décadas o prédio do Grezz, no bairro floresta

A fábrica de botões inundada na enchente de 1941 (Foto/Arquivo Pessoal)

Estamos em Porto Alegre, no mês de junho de 1934.

Na Sogipa, um grupo de descendentes de imigrantes alemães se reúne para praticar uma de suas atividades preferidas de lazer: o bolão. É uma espécie de boliche primitivo, jogado com uma bola de madeira.

Entre eles, destaca-se o empresário Antônio Jacob Renner, mais conhecido como A. J. Renner, um dos líderes da comunidade alemã na cidade.

Ele é proprietário da A.J. Renner & Cia., fábrica de fiação e tecelagem que começou produzindo capas de chuva de feltro impermeabilizado (inspiradas nos ponchos usados no interior do Estado), em 1912, e depois se transformou numa das principais indústrias gaúchas do século passado (a empresa deu origem às Lojas Renner).

Naquele dia, A.J. parece um tanto preocupado. Um de seus principais fornecedores de botões está partindo de volta para a Alemanha e algo precisa ser feito para que a produção da Renner não seja afetada.

Em certo momento, A.J. se volta para o amigo Benno von Frankenberg, dono de alguns negócios na Rua Almirante Barroso, no Quarto Distrito:

— Vem cá, Benno. Não tens interesse em ficar com a fábrica de botões?

Benno era de uma família originária da região da Silésia – hoje dividida entre Alemanha, Polônia e República Tcheca –, que havia migrado para o sul de Santa Catarina, estabelecendo-se em Laguna, antes de se transferir para Porto Alegre.

Aqui, os Frankenberg tinham montado empreendimentos aparentemente sem ligação uns com os outros, como uma fábrica de molduras e esquadrias, outra de produção de polvilho e uma terceira de extração de óleo de casca de laranja.

A princípio, acrescentar uma fábrica de botões a essa série de negócios desconexos não lhe pareceu uma boa ideia.

— Deixa eu pensar, vamos ver — responde Benno, antes de arremessar a bola de madeira, bastante pesada, em direção aos nove pinos posicionados na outra extremidade da pista.

A bem da verdade, fala mais por delicadeza, ou melhor, apenas para ganhar tempo e não dar uma resposta negativa de imediato ao amigo.

Na manhã seguinte, ao chegar à Rua Almirante Barroso para trabalhar, Benno se depara com um caminhão estacionado em frente à empresa. Homens suados descarregam máquinas industriais na calçada.

— O que é isso? — pergunta.

— O sr. A.J. disse que era para trazermos a fábrica de botões para cá, porque o sr. vai ficar com ela — respondem os trabalhadores que fazem o carreto.

Para convencer, definitivamente, o amigo a topar o negócio, A.J. promete comprar toda a produção de botões da nova fábrica por tempo indeterminado.

— Então, está bem — concorda, finalmente, Benno.

Linha de montagem da Frankenberg na década de 1930: matérias-primas naturais

Madrepérola, chifre e coco

Foi assim – “meio por acaso”, como diz João Cláudio, bisneto de Benno – que surgiu a Frankenberg & Cia Ltda.

No começo, ela atendia quase exclusivamente à Renner. Com o tempo, expandiu o leque de clientes e se consolidou como uma das fábricas de botões mais tradicionais do Brasil.

O prédio passou por duas enchentes – em 1941 e 2024. Na primeira, ficou tão alagada quanto em maio deste ano (o Quarto Distrito foi uma das áreas mais afetadas pela tragédia do clima nas duas ocasiões).

Em 1941, o prejuízo não se limitou à indústria de botões. Foram impactados também os outros empreendimentos de Benno, distribuídos em três prédios vizinhos, o que fez com que ele decidisse concentrar os negócios somente na fabricação de botões a partir dali.

À época, a Frankenberg se valia exclusivamente de matérias-primas naturais para produzir os botões, a exemplo de madrepérola, madeira, chifre e coco.

Com o aparecimento do poliéster e outros materiais sintéticos, na década de 1960, os produtos naturais caíram de moda. Com isso, foi necessário, praticamente, reconstruir a fábrica para se adaptar aos novos tempos.

— Hoje, a produção é 100% com resina poliéster — diz João Cláudio, que é diretor-administrativo da empresa.

A Frankenberg permaneceu no galpão da Rua Almirante Barroso, nº 328, no bairro Floresta, até o ano 2000, quando se mudou para o endereço atual, no distrito industrial de Cachoeirinha.

(Foto/Anderson Favila)

Arte e resistência

Mais de duas décadas depois, a velha fábrica de botões foi decisiva para o surgimento de uma das casas noturnas mais badaladas do Quarto Distrito, região de Porto Alegre que, nos últimos tempos, virou polo de cultura, inovação e boemia,

Hoje, o galpão abriga o Grezz, pub e casa de shows de jazz e blues, que celebrou um ano de atividades neste sábado, 5 de outubro.

A programação de aniversário incluiu show da blueswoman JJ. Thames (natural de Detroit, berço também da Motown, gravadora que impulsionou a soul music nos anos 1960 e 1970), além de abertura da exposição Primeiros Acordes: Um Ano de Arte e Resistência, entre outras atrações.

Mais do que acolher o Grezz, a antiga fábrica de botões foi determinante para a escolha do perfil de negócio a ser instalado no local. Mas, para contar essa história, é preciso voltar um pouco no tempo.

Grezz abriu as portas em outubro de 2023 (Foto/Zé Carlos de Andrade)

Antes da abertura do pub, dois dos sócios do Grezz – Rafael Rhoden e Bruno Klein – eram donos do estúdio de produção musical Porta da Toca.

O estúdio funcionava na Rua José do Patrocínio (atrás do antigo bar Apolinário), na Cidade Baixa, em terreno que foi adquirido pela incorporadora Melnick para a construção de uma megaprojeto de edifício residencial.

— Recebemos alguns tapinhas nas costas e um aviso de que tínhamos três meses para sair — conta Rafael.

Disposta a evitar futuros despejos, a dupla decidiu adquirir um imóvel para o Porta da Toca. Na busca pelo novo endereço, priorizou o Quarto Distrito:

— Era o novo reduto de criatividade e inovação da cidade. Tudo levava para lá — diz ele.

A procura por imóvel durou quatro meses. Por baixo, Rafael estima ter visitado 30 prédios por dia naquele período. Curiosamente, a fábrica de botões não foi a opção preferencial no primeiro momento.

— De início, avaliamos que estava deslocado da região que concentrava a agitação cultural do Quarto Distrito. Afora isso, como tínhamos pressa, queríamos algo mais pronto.

De fato, o espaço estava bastante danificado. Não havia mais teto e árvores cresciam dentro do que, 20 anos antes, tinha sido o interior da fábrica.

A palavra da arquiteta Cilulia Freitas foi decisiva para que os sócios mudassem de opinião. Ela mostrou que o galpão era ideal para uma casa noturna que agitasse a cena musical da cidade.

Lúcio, Bruno e Rafael (Fot0/Anderson Favila)

— Veio a ideia de um pub com espaço para shows, junto com o estúdio e uma produtora de eventos, além de um selo para lançar projetos fonográficos — relata Rafael.

No projeto, tem lugar ainda para um atelier de artes visuais, capitaneado pelo terceiro sócio do Grezz, Lúcio Vargas, que é músico e artista plástico.

Batido o martelo da aquisição, a restauração do prédio ficou a cargo de Cilulia e Camila Franarin.

O conceito aplicado pelas arquitetas preservou parte da estrutura original, como paredes e janelas, ao mesmo tempo que introduziu novos elementos com o uso de materiais acústicos, iluminação natural com cobertura translúcida, ferro, vidro e madeira.

A ideia era a de capitalizar o negócio com as atividades do pub com a finalidade de montar depois o estúdio, a produtora, a gravadora e o atelier.

O estúdio, por exemplo, deveria ficar pronto em meados de 2024.

A enchente, que impôs perdas de equipamentos, mobiliário e cozinha, obrigando o Grezz a suspender as atividades durante três meses, forçou a mudança de planos.

— Como não conseguimos acesso às linhas de financiamento de socorro às empresas atingidas pelas inundações, fomos obrigados a dar um passo atrás e utilizar todos os recursos disponíveis para a recuperação do bar — anota Rafael.

Menos mal que, reaberto desde o dia 1º de agosto, o Grezz está operando a todo vapor. A projeção para a conclusão das obras das demais pernas do negócio agora é outra:

— Se tudo der certo, esperamos estar com o estúdio, a produtora e a gravadora em funcionamento no segundo semestre de 2025 — conclui Rafael.

Paulo César Teixeira