A temporada de Belchior na Comuna do Arvoredo
Cantor recebeu abrigo na comunidade alternativa do centro de Porto Alegre, enquanto fugia dos holofotes
Belchior, cercado por integrantes do Coletivo Catarse, em julho de 2013, época em que evitava o assédio de fãs e jornalistas (Foto/Coletivo Catarse)
Foi por um acaso, ou nem tanto.
Numa sexta-feira de julho de 2013, o casal Alissa Gottfried e Felipe Fiorenza encarou a noite gelada para circular pelos bares da Cidade Baixa, reduto boêmio de Porto Alegre. Ambos eram moradores da Comuna do Arvoredo, comunidade alternativa que – ainda hoje – ocupa três casarões da Rua Fernando Machado, na região central da cidade.
Na manhã seguinte, Paulinho Bettanzos, um dos mais antigos integrantes da Comuna, pulou cedo da cama. Por volta das sete da manhã, já estava de pé.
Abandonar as cobertas, com aquele frio, já tinha sido um ato heroico. Não surpreende que tenha batido preguiça de passar café. Decidiu, então, averiguar se o rito matinal se encontrava em estágio mais avançado na casa ao lado.
Para quem não sabe, os três sobrados da Comuna do Arvoredo estão conectados entre si por pátios localizados no fundo dos terrenos, junto ao barranco do Morro da Formiga. Cada habitação tem um apelido – o Casarão (primeiro a ser ocupado, onde mora Paulinho), a Casa Azul e o Casarinho.
Vigília matinal: Paulinho junto à portinhola de vidro, entre a cozinha e a sala da Casa Azul (Foto/Ro Lopes)
Ao chegar à Casa Azul, Paulinho foi direto ao ponto:
— Tem café? — perguntou, da soleira da porta da cozinha.
— Acabei de passar — respondeu Alissa.
Como se fosse a coisa mais natural do mundo, ela emendou:
— Se for cruzar pela sala, passa com cuidado, porque o Belchior e a companheira dele estão dormindo lá.
É bem verdade que Paulinho escutara notícias de que Belchior andava circulando pela cidade. Mas ouvir que o artista estava dormindo na sala da Comuna soou um tanto inverossímil.
Por via das dúvidas, pediu esclarecimentos:
— Que Belchior, Alissa?
— O cantor Belchior e a Edna, a sua companheira, que eu e o Fê encontramos na Cidade Baixa e convidamos para virem até aqui com a gente.
Em cinco minutos, a Comuna inteira estava de prontidão, espiando pela portinhola de vidro da porta que separa a sala e a cozinha da Casa Azul.
Bonnie & Clyde caboclo
Para explicar como e por que Belchior e Edna foram parar na Comuna do Arvoredo, é preciso recuar no tempo, até o começo da noite anterior.
Ator formado pela Escola de Teatro Popular da Terreira da Tribo, Felipe estava participando, naquela sexta-feira, de um encontro nacional de artes cênicas na Casa de Cultura Mario Quintana.
O evento chamou atenção de um casal que circulava pelo centro cultural, o cantor e compositor cearense Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, mais conhecido como Belchior, e sua companheira, Edna Assunção de Araújo, artista plástica que usa o codinome de Edna Prometheu.
Mas por que Belchior e Edna estavam ali?
Conforme ele próprio explicou mais tarde, Belchior estava escrevendo um livro com 33 poemas em homenagem a Mario Quintana. Por isso, fizera questão de visitar a Casa de Cultura.
Mas não era só isso. Desde 2007, ele havia sumido da vista de familiares, amigos, jornalistas e fãs, supostamente por conta de dívidas financeiras, que envolviam bens e pensões alimentícias.
A fachada atual dos sobrados da Comuna (Foto/Ro Lopes)
A partir daí, Belchior e Edna passaram a viver um roteiro de “Bonnie & Clyde caboclo”, como definiu Jotabê Medeiros, autor da biografia Belchior – Apenas Um Rapaz Latino-Americano (Todavia, 2017) –, referindo-se ao casal de foragidos que se destacou durante a Grande Depressão, nos Estados Unidos, entre 1932 e 1934, e virou filme de Hollywood.
Só que, em vez de vagar pelo território norte-americano, Belchior e Edna se embrenharam pelo Rio Grande do Sul e o Uruguai, sempre se abrigando em discretos hotéis e pousadas ou hospedados, sigilosamente, em casas de amigos ou conhecidos.
A afinidade com Porto Alegre e o Sul do Brasil vinha de longe.
Belchior já havia revelado, em entrevistas, que morou na capital do RS em meados dos anos 1970. Essa passagem teria durado alguns meses, enquanto preparava o álbum Alucinação, de 1975.
Além disso, tinha amigos de longa data em cidades do interior, como Santa Maria, Caxias do Sul, Pelotas e Santa Cruz do Sul, segundo o biógrafo Jotabê Medeiros.
No período em que esteve longe dos holofotes, a parada mais estável do lado de lá da fronteira havia sido San Gregorio de Tacuarembó, cidade de 3,5 mil habitantes, distante 369 km de Montevidéu. No RS, além de Porto Alegre e municípios da fronteira, como Quaraí, até então Belchior tinha passado também por Guaíba, onde se recolhera ao sítio de um amigo, de fevereiro a julho de 2013.
Naquela noite em que cruzaram o caminho de Felipe, Belchior e Edna haviam saído do apartamento de um médico que os acolhera em Porto Alegre, como tantas outras pessoas nos anos anteriores.
Em determinado momento, a informação sobre o paradeiro teria vazado, fazendo com que visitantes indesejados se aboletassem junto à portaria do prédio.
Sentindo-se vulneráveis à tietagem de jornalistas e fãs, o cantor e a mulher teriam abandonado o refúgio, deixando os poucos pertences para trás, o que incluía a maior parte das roupas, acomodadas no porta-malas de um carro estacionado na garagem do edifício.
Em outras palavras, saíram, praticamente, com as roupas do corpo e não tinham para onde ir.
Cantinho do vovô
Após o encontro de teatro na Casa de Cultura Mario Quintana, os jovens que participaram do evento saíram a pé, em direção à Cidade Baixa, em busca de um lugar para comer e beber.
— Belchior e Edna colaram na gente e vieram juntos — diz Felipe.
A turma interrompeu a caminhada para jantar no restaurante João de Barro, na Rua da República, onde o garçom arrastou várias mesas para que coubesse todo mundo.
Belchior e Edna se sentaram numa das pontas do conjunto de mesas, enquanto Felipe, o mais próximo do casal, tirava o celular do bolso para ligar para a namorada:
— Alissa, encontrei uma pessoa que tu vai gostar de conhecer. Vem pra cá!
Quando ela entrou no João de Barro, reparou que Belchior e Edna pareciam isolados do restante do grupo. O único que lhes dava atenção era Felipe.
— Era como se não fizessem parte daquela turma. E, como não eram invasivos, preferiram não forçar uma aproximação. Mesmo porque a galera parecia não estar nem aí para eles — anota Alissa.
Por volta de duas horas da madrugada, quando o restaurante ensaiava fechar as portas, Belchior e Edna disseram que não tinham onde dormir.
— Vocês podem vir com a gente. Lugar é que não falta na Comuna — convidou Alissa.
Ela – rememorando a cadeia de acontecimentos – acredita que Belchior e Edna já estavam em busca de um novo abrigo, quando encontraram Felipe na Casa de Cultura. Tanto que, quando ele disse que morava numa comunidade, demonstraram ainda mais interesse em conversar com o ator.
No percurso do João de Barro até os casarões da Rua Fernando Machado – cerca de quatro ou cinco quarteirões –, Belchior revelou que viver em comunidade não era uma novidade para ele. Tinha passado um tempo no Cantinho do Vovô, como era chamado o sítio em que os Novos Baianos moraram, em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro, entre 1971 e 1975.
Belchior contou ainda que, no Cantinho do Vovô, as pessoas armavam barracas de lona dentro de casa para ter algum tipo de privacidade na vida em grupo. Disse também que lá havia um saco pendurado na sala, onde se podia botar e tirar dinheiro, como uma espécie de fundo coletivo, disponível para qualquer um dos moradores.
Quando chegaram à Comuna do Arvoredo, Alissa conduziu Belchior e Edna até a Casa Azul. Descolou lençóis e travesseiros limpos, além de cobertas pesadas para suportar o frio porto-alegrense. Em seguida, baixou um colchão de casal, que estava guardado, de pé, atrás da porta.
Alissa recorda que, a pedido dos hóspedes, encostou dois sofás junto ao colchão estirado no chão, talvez para dar uma sensação de segurança e proteção. Ali, na cama improvisada no meio da sala, eles passaram a primeira noite na Comuna do Arvoredo.
Casarão visto do pátio de fundos: Belchior e Edna se hospedaram no quarto com varal de roupas externo (Foto/Ro Lopes)
Peixada na Catarse
Assim que Belchior e Edna despertaram, foi feito o convite para que passassem uma temporada na Comuna. Ao aceitar a oferta, o cantor foi bem claro: eles não tinham como pagar pela estadia.
Nem precisava ter dito isso. Todos na comunidade concordavam em abrigá-los, alimentá-los e protegê-los, sem que houvesse cobrança de espécie alguma.
— Deu uma liga. A Comuna abraçou e encapsulou o Belchior — acentua Paulinho, que também é músico e, como assistente social, trabalha com moradores de rua em Esteio, na região metropolitana de Porto Alegre.
Ele explica que existia a disposição de retribuir a contribuição que o artista tinha prestado à cultura popular.
Curiosamente, Belchior parecia ter plena consciência da partilha que estava sendo feita, Durante décadas, havia comovido milhões de brasileiros com suas canções. Agora, era chegada a hora da colheita.
— Era como se ele dissesse: “Nesse momento de dificuldades, preciso que vocês me apoiem de maneira prática”. Não que fizesse isso de modo explícito, mas era algo que estava implícito, de forma natural, quase mágica — afirma um frequentador da Comuna do Arvoredo, Marcelo Cougo, do Coletivo Catarse, cooperativa de comunicação e produção cultural que atua junto aos movimentos sociais.
Assim que aceitou a proposta de hospedagem, Belchior também deixou claro que era necessário preservar absoluta discrição acerca de sua presença na Rua Fernando Machado.
Não bastasse uma reportagem do Fantástico, da Rede Globo, que havia descoberto o casal numa pousada do Uruguai, em agosto de 2009, Belchior e Edna tinham sido tema de matérias de Zero Hora e do Jornal do Almoço, da RBS, em novembro de 2012, bem como de uma crônica de Juremir Machado, do Correio do Povo, em janeiro de 2013.
Essa exposição na grande mídia era tudo que desejavam evitar a todo custo.
Belchior e Edna na reunião no escritório da Catarse (Foto/Coletivo Catarse)
Uma exceção do isolamento foi aberta para que Belchior se deslocasse até a Avenida Protásio Alves, onde se situava, na época, o escritório do Coletivo Catarse (atualmente, a cooperativa tem como sede algumas peças alugadas do Casarão da Comuna).
A princípio, o convite era para um churrasco, mas Belchior disse que não estava comendo carne vermelha, com o que o cardápio foi alterado. Assim, o churrasco virou uma peixada regada a generosas doses de vinho tinto.
A rigor, foi a única vez que Belchior e Edna botaram os pés para fora durante a estadia na comunidade.
Belchior e a companheira foram conduzidos num carro até a garagem do prédio na Protásio Alves e, dali, tomaram o elevador diretamente para o andar em que ficava o escritório da Catarse.
Igualmente, Belchior pediu para não ser fotografado, mas essa solicitação foi flexibilizada à medida que a convivência aumentava a confiança entre as partes. De qualquer modo, foram poucos registros e as imagens só se tornaram públicas depois da morte do cantor (algumas delas ilustram a reportagem do Rua da Margem).
“Não me peçam para cantar”
Por fim, Belchior pediu, encarecidamente, que não fizessem apelos para que cantasse ou tocasse violão (havia também um piano na Comuna, do qual não se aproximou). Essa solicitação foi seguida à risca, mas o músico não escapou de escutar suas próprias canções interpretadas pelos anfitriões.
Durante o jantar na Catarse, enquanto o peixe assava na varanda, sob a luz da lua, houve quem tentasse demovê-lo da premissa.
— Por favor, cante uma canção pra gente!
Belchior apenas sorriu, mas não cedeu. Contudo, embalado por reiteradas taças de vinho, o músico e historiador David Cunha pegou o violão e, ajoelhado em frente ao ídolo, executou Sujeito de Sorte e Galos, Noites e Quintais.
Ainda com um sorriso nos lábios, Belchior alisou o bigode.
— Um amigo me disse, certa vez, que sou a figura mais cara de pau que conhece. Ele tinha razão. Toquei as músicas do Belchior para o Belchior — conta David, ainda hoje emocionado com a façanha.
Falando em gastronomia, durante a passagem de Belchior pela Comuna do Arvoredo, algumas tardes foram reservadas para sessões de filmes em DVD. Nessas ocasiões, o acompanhamento era de bolo e pipoca.
Exemplar do I Ching autografado com “caligrafia gótica”
O cantor demonstrou entusiasmo, especialmente, com a exibição de Waking Life, de Richard Linklater, uma animação psicodélica, que – apesar de lançada em 2003 – ele ainda não tinha visto (foi sugestão do pessoal da Comuna).
Não faltaram sopões para esquentar as madrugadas, preenchidas por longos papos sobre temas como Zen Budismo e física quântica. Ainda que impressionada com a erudição do hóspede, a galera da Arvoredo não resistiu a tirar uma onda com o sotaque nordestino do mestre.
— Vocês sabem que essa teoria… — dizia Belchior.
— Que teoria, rapaz? O certo é tioria! — retrucou Paulinho, brincando com o sotaque raiz do Nordeste, que se mostrava acentuado em canções como Alucinação, dos 1970, época em que o artista recém havia saído do Ceará.
Afora a erudição, também era de se notar o talento de Belchior como calígrafo, herança dos tempos de seminarista no Mosteiro de Jesuítas de Guaramiranga, no Ceará, que frequentou na mocidade.
Ao dar de presente um exemplar do I Ching (clássico da filosofia chinesa, escrito há cerca de 3 mil anos) para Paulinho, Belchior fez questão de autografá-lo:
— Em qual caligrafia você quer? — perguntou, com a caneta na mão.
— Sei lá, nem conheço isso. Faz do jeito que tu quiser — respondeu Paulinho, que acredita ter recebido o autógrafo numa “escrita gótica”.
Além do I Ching, Belchior presenteou o novo amigo com um cachecol xadrez em preto e branco. Em compensação, o casal ganhou agasalhos robustos para suportar o que havia ainda de inverno sulista pela frente.
A troca de gentilezas aconteceu também no jantar na Avenida Protásio Alves, quando Belchior autografou a capa do LP Coração Selvagem, de 1977, com a dedicatória: “Para os amigos da Catarse, amizade e canções”.
Após a refeição, o cartunista Carlos Latuff – um dos poucos participantes da reunião que não fazia parte do núcleo central da Comuna ou da Catarse – pediu licença para desenhar Belchior à mesa. O cantor guardou o desenho de lembrança e ainda escreveu uma carta de agradecimento numa caligrafia impecável (veja abaixo o momento em que Latuff faz o desenho de Belchior e recebe a mensagem).
Vida e obra
De maneira geral, a figura de Edna que se tornou pública após o sumiço de Belchior é a de uma mulher dominadora, que teria afastado o cantor do convívio social.
— Até amigos de Belchior não tinham uma boa visão dela. Mas o que vi foram duas pessoas com muita cumplicidade, influenciando uma à outra, como acontece com qualquer casal — diz Gustavo Türck, do Coletivo Catarse.
Ele argumenta ainda que, mesmo que Edna tivesse uma personalidade forte, Belchior não era uma pessoa frágil e inexperiente a ponto de ser facilmente manipulada.
Mas essa não é uma opinião unânime de quem conviveu com Belchior e Edna naquele período. O cartunista Carlos Latuff, por exemplo, diz que experimentou uma sensação ambígua durante o jantar na Catarse.
— Era maravilhoso estar diante de um artista de tamanha envergadura. Mas, ao mesmo tempo, fiquei triste de vê-lo definhando numa espiral persecutória, alimentada por histórias malucas da Edna, que incluíam até ações da CIA.
Latuff acrescenta que o clima na sede da Catarse remetia aos tempos sombrios da ditadura militar, como se, a qualquer momento, forças do Exército ou do DOPS fossem irromper na sala para prender um guerrilheiro.
— Definitivamente, aquilo não ia acontecer, mas o próprio Belchior se comportava como se fosse realidade.
Mensagem de agradecimento ao cartunista
Por ironia, uma das pessoas responsáveis pela chegada do casal na Comuna do Arvoredo foi alvo da desconfiança de Edna: Alissa.
Um momento de tensão aconteceu durante uma sessão do “cine clube” da Comuna. Belchior sugeriu que assistissem a Garoto Cósmico, desenho animado de 2007, dirigido por Alê Abreu, no qual o próprio cantor dubla a personagem do mágico Záz Tráz cantando o hit Como Nossos Pais.
Inesperadamente, um amigo de Alissa bateu a campainha e acabou assistindo ao filme também. Embora todos na comunidade estivessem dispostos a respeitar as orientações de privacidade de Belchior e Edna, volta e meia, recebiam visitas. Era parte da dinâmica da casa.
— Foi mero acaso, mas Edna achou que eu tinha chamado o rapaz e estava passando informações sobre Belchior para ele — diz Alissa.
De modo agressivo, a mulher do cantor acusou Alissa de ser uma “espiã”, que colocava em risco a segurança do casal.
Certo dia, Alissa notou que começavam a aparecer fios de cabelos brancos na cabeça de Belchior, consequência da falta de dinheiro para comprar a tintura que ele usava cotidianamente.
— Não sabia que ele pintava os cabelos. Mas aquilo mostrava falta de manutenção e cuidado.
As suspeitas de Edna aumentaram depois que Alissa sugeriu que buscassem ajuda de artistas consagrados, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, para a realização de um show que arrecadasse o dinheiro necessário a fim de pagar as dívidas.
— O que me preocupava era que encontrassem alternativas para sair da condição de vulnerabilidade extrema que viviam — diz Alissa, que é educadora popular e artista ecosófica.
Não apenas a atitude severa de Edna em relação ao isolamento do casal, mas a própria vida que levavam, em rota de fuga permanente, é motivo de reflexão para Latuff:
— Não era só por causa das dívidas. Se fosse, bastaria um show, em qualquer estádio do Brasil, para resolver a questão. Havia um componente psicológico, uma vontade de se recolher, cada vez mais, até fenecer — diz ele.
Já integrantes do Coletivo Catarse, como Marcelo e Gustavo, acreditam que a postura de Belchior refletia o posicionamento de um artista, ideologicamente, alinhado a uma visão pura e límpida de anarquismo.
Capa do disco autografada: “Amizades e canções”
Seja como for, a estadia de Belchior, que durou cerca de um mês, teve impacto pessoal na vida dos moradores da Comuna.
Paulinho – por sinal, o único remanescente daqueles tempos que, entres idas e vindas, ainda vive na Comuna – que o diga.
À época, ele namorava a cientista social Fabiane Trindade, a Fabi. Ambos moravam na Comunidade do Arvoredo, mas a relação andava um pouco estremecida. Embora não tivessem rompidos, haviam decidido dormir em quartos separados.
Já na segunda noite de Belchior e a mulher na comunidade, Paulinho disponibilizou para eles o dormitório que ocupava, dotado de cama de casal. Com isso, ganhou o pretexto de que precisava para bater à porta do quarto de Fabi:
— Posso ficar alguns dias contigo? Chegou um amigo meu na casa e eu emprestei o meu quarto para ele.
— Tá, entra aí — respondeu Fabi.
A reconciliação resultou, algum tempo depois, no nascimento do filho Sidarta, hoje com 10 anos de idade (Paulinho e Fabi não estão mais casados, mas Sidarta é presença constante na comunidade).
Por essas e outras, a temporada de Belchior é até hoje lembrada como um dos episódios mais marcantes da trajetória da Comuna do Arvoredo, que completou 16 anos em 2024.
Os laços de admiração e respeito foram reafirmados na hora da despedida, quando o cantor pediu a palavra:
— Como vocês sabem, atualmente, não tenho casa para morar. Mas isso não vai durar para sempre. De qualquer jeito, no lugar em que eu estiver, a porta vai estar sempre aberta para vocês.
O pessoal da Comuna articulou para que Belchior e Edna fizessem um pouso no núcleo do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) de Seberi, na região norte do Estado (veja o documentário Belchior Entre os Camponeses, de Marcos Antonio Corbari). Depois disso, o casal se transferiu para Santa Cruz do Sul, onde o cantor faleceu, aos 70 anos de idade, em 30 de abril de 2017, vítima da ruptura de um aneurisma da aorta.
Jamais alguém poderá dizer que, principalmente em seus últimos anos, quando buscou – e encontrou – guarida no sul do continente, ele não preservou a coerência entre vida e obra, como demonstram os versos da canção Brincando com a Vida (1978):
“Eu estou sempre em perigo
E a minha vida sempre está por um triz
Se vejo correr uma estrela no céu, eu digo
Deus te guie, zelação, amanhã vou ser feliz (...)
Vida, eu não aceito, não, a tua paz
Porque meu coração é delinquente juvenil
Suicida, sensível demais (...)
Vida, agora eu te conheço
Calma! A tudo eu prefiro a minha alma
E quero que isto seja o meu brilho
E o meu preço”