A ferragem mais antiga da Cidade Baixa

Descendente de franceses, proprietário – que completa 96 anos de idade em abril – ainda acompanha diariamente o movimento da loja

Luís Raymundo Felippe saiu de detrás do balcão para se acomodar num banquinho, observando o movimento da loja aberta há 57 anos (Fotos/Rua da Margem)

A cena se repete há mais de meio século.

Quem passa em frente à Ferragem Felippe – uma das mais antigas em atividade em Porto Alegre e a mais longeva do bairro Cidade Baixa –, poderá vê-lo a postos, já desde as primeiras horas da manhã. Não há dúvida de que ele se sente como se estivesse em casa. Afinal, há quase seis décadas, passa a maior parte do tempo cuidando da loja na esquina da Rua João Alfredo com a Miguel Teixeira.

Nos últimos anos, só mudou de lugar.

Saiu de detrás do balcão para se acomodar num banquinho de madeira, de frente para a grade de ferro que dá para a calçada. Dali, vigia o movimento de entra e sai de clientes, enquanto repassa na memória uma vida inteira dedicada à casa de comércio.

— Quando assumi o ponto, em 1968, funcionava como bazar. Com o tempo e aos poucos, mudei o perfil do negócio — conta Luís Raymundo Felippe, que vai completar 96 anos em 10 de abril de 2025.

Atualmente, Jorge (filho único de Felippe), de 56 anos, é quem toma conta, efetivamente, das operações da loja.

Trabalhadores do Brasil

A família paterna veio da França. O pai, Luiz (com “z” e não “s”, como Felippe), era natural de Marselha. Desembarcou no Brasil no começo do século passado, com apenas 12 anos de idade, num cenário de conflitos:

— Depois de ficar viúva, minha avó tinha se casado com um esgrimista. Acontece que esse camarada matou dois ou três na França, por isso, fugiu do país. Aqui, o sujeito se empregou na Escola de Cadetes e, em seguida, tirou a vida de um oficial do Exército. Aí se mandou e nunca mais apareceu. Deixou minha avó com quatro filhos para criar.

Para ajudar o sustento da família, o pai de Felippe arrumou serviço na Fábrica de Calçados Castor, de propriedade de compatriotas, na Avenida Protásio Alves, no bairro Petrópolis.

— Esses franceses produziam sapatos finos. O pai virou um mestre sapateiro. Trabalhou a vida toda nessa fábrica. Saiu de lá, aos 60 anos, para se aposentar.

Felippe tem recordações da família (incluindo também a mãe, Maria, costureira que cerzia fardamentos do Exército, mais dois irmãos) reunida na sala de casa para escutar os discursos de Getúlio Vargas no rádio, transmitidos diretamente do estádio de São Januário, no Rio de Janeiro. Invariavelmente, as falas presidenciais iniciavam com o bordão: “Trabalhadores do Brasil...”.

— Esse, sim, era presidente de verdade. Todas as leis que protegem o trabalhador foram criadas naquela época. Meu pai tinha uma admiração enorme por Getúlio. E isso que ele nem era brasileiro.

Falso italiano

Nas pegadas do pai, Felippe também começou a trabalhar cedo, aos 14 anos.

Ele se empregou na antiga drogaria Ellwanger, na Rua Dr. Flores (em 1973, já com o nome de Velgos, a Ellwanger se juntou à Panitz para formar a Panvel). Só que, para conseguir a vaga, precisou esconder a ancestralidade francesa.

— A Ellwanger era de alemães, que, na época, não se davam bem com os franceses por causa da guerra. Eram considerados inimigos.

A sorte é que Felippe havia sido indicado por um cunhado, de origem italiana.

— Os alemães me engoliram por italiano. Fiquei de boca fechada. Entrei varrendo a farmácia, depois virei atendente de balcão e cheguei à gerência.

No final dos anos 1960, Felippe já não precisava se fazer de italiano. Trabalhava na Farmácia Popular, na Avenida Venâncio Aires, quase esquina com a João Pessoa. Mas uma desavença com os patrões fez com que ficasse desempregado.

Ele decidiu, então, abrir o próprio negócio. A oportunidade surgiu quando o dono do Bazar Machado se dispôs a vender o ponto. Ficava na mesma esquina onde a ferragem se encontra hoje, mas na calçada oposta.

Felippe jamais havia trabalhado com bazar ou ferragem, mas tinha a prática do comércio. Junto com um sócio, deu o peitaço. Passado algum tempo, adquiriu o casarão do outro lado da rua por 21 mil cruzeiros novos, pagos em dez prestações.

Sempre que faltavam dois ou três dias para vencer a prestação, dava um frio na barriga. Será que haveria dinheiro em caixa para pagar? Na dúvida, perguntava ao antigo dono se dava para atrasar um pouquinho.

— Nada disso. Dia 3, vou buscar meu dinheirinho aí — respondia o homem.

Menos mal que, depois de quitar a dívida, nunca mais passou sufoco. A princípio, a loja continuou funcionando como bazar. Até que Felippe se viu obrigado a reinventar o negócio:

— Começou a abrir supermercado em tudo que é canto da cidade. Aí o bazar perdeu a utilidade.

A transição foi paulatina. Devagarzinho, Felippe passou a expor produtos de ferragem nas prateleiras até mudar o ramo da atividade em definitivo.

Cria da Ilhota

O dono da Ferragem Felippe é nascido e criado na Ilhota, conjunto de vilas populares que se espalhava da Praça Garibaldi até a atual Avenida Ipiranga. Ele conta que o Ginásio Tesourinha foi construído no terreno da casa em que ele viveu quando era criança.

— Morávamos na antiga Rua Ilhota. Na época, os terrenos tinham de 50 a 60 metros de profundidade — relembra.

Considerada uma das primeiras grandes favelas de Porto Alegre, a Ilhota se formou junto ao Arroio Dilúvio, também conhecido como Riacho ou Riachinho. O Dilúvio nascia nas entranhas de Viamão e descia em direção a bairros da capital como Partenon, Santana e Azenha, antes de serpentear a Cidade Baixa.

Desde sempre, o Riacho tinha o costume de sair do leito a cada chuvarada. Não por acaso, a Ilhota era ocupada por quem não tinha dinheiro para pagar aluguel em região que fosse livre de constantes alagamentos.

— A Ilhota cresceu e virou quase uma cidade. Uma população muito humilde morava ali. Todo mundo se dava bem, não importava se era branco ou preto. Não existia preconceito, pelo menos naquele tempo — garante Felippe.

Depois de atravessar a Ilhota, o Riachinho seguia o seu destino, correndo atrás das casas da Rua João Alfredo até cruzar a Ponte de Pedra e desaguar no Guaíba.

Barqueiros atracam às margens do Riacho (Acervo Museu Joaquim Felizardo)

Barqueiros vindos das ilhas do Guaíba atracavam num ancoradouro que existia na João Alfredo. Felippe explica que a plataforma se localizava nas proximidades do atual prédio do DMAE (João Alfredo, 187).

Os barcos traziam legumes, verduras, frutas, galinha, lenha e outros artigos para vender aos feirantes ou diretamente aos moradores da região.

Quando era guri, junto com amigos, ele pedia carona aos donos das embarcações que zanzavam pelo Riacho.

— Eles deixavam a criançada dar um passeiozinho.

Outra diversão era jogar bola no meio da rua.

Como não havia dinheiro para comprar bolas de borracha, pegava uma meia velha, enchia de jornal dentro e pronto: já dava para jogar uma pelada.

Mais crescido, chegou a disputar peleias em campos de várzea como o do Marcelino, junto ao Pão dos Pobres.

Como espectador, Felippe frequentava os estádios Tiradentes, do Renner, e Timbaúva, do Força e Luz (equipes já extintas), além do Passo D’Areia, do São José, Mas gostava mesmo era de pegar o bonde para assistir aos jogos do Grêmio no Estádio da Baixada, no Moinhos de Vento.

— Eu era fanático. Só para ter uma ideia, com 17 anos, já era sócio do Grêmio {hoje, é sócio emérito do time}.

Como a Baixada era vizinha do Hipódromo Moinhos de Vento (na região em que, atualmente, está o Parcão), no intervalo das partidas, Felippe subia até o alto do pavilhão para olhar através de uma janela as corridas de cavalos.

Recentemente, quando os associados foram convocados para habilitar o acesso à Arena, Felippe jogou sobre a mesa do funcionário a carteira de couro que ganhou ao virar sócio.

— Precisa ver a cara do atendente quando viu que era uma carteira quase tão antiga quanto o clube.

Enciclopédia viva

Era habitué também dos cinemas. Frequentava o Garibaldi e o Avenida, nas redondezas. No centro, gostava de assistir aos filmes do Imperial, na Rua da Praia, junto à Praça da Alfândega.

— Se eu gostava de cinema? Adorava! A segunda sessão terminava à meia noite. Eu voltava a pé pela José do Patrocínio com os amigos até a Ilhota. Não tinha assalto, nada. Que coisa boa!

O Arroio Dilúvio teve o leito retificado durante as décadas de 1940 e 1950 para seguir o curso da Avenida Ipiranga.

Felippe em frente à ferragem, em 2018 (Foto/Marco Nedeff)

A obra foi complementada com o Projeto Renascença, que retirou os moradores da Ilhota e urbanizou a área, onde desponta hoje a Avenida Erico Verissimo. Felippe foi testemunha de tudo isso:

— Primeiro, riscaram a Ipiranga. Depois, foram aterrando o Riacho. Quando botaram os canos de canalização, praticamente, não tinha mais água.

Os moradores das vilas foram transferidos para áreas mais distantes do centro de Porto Alegre, a exemplo da Restinga.

A essa altura, Felippe já não vivia na Ilhota. Atualmente, ele mora num apartamento da Rua João Alfredo, perto da ferragem.

— Naquela época, a gente se dava com todo mundo. Hoje, vivo num edifício onde só conheço dois ou três moradores.

Testemunha das grandes mudanças urbanísticas que aconteceram na área central de Porto Alegre, Felippe recebe, volta e meia, a visita de estudantes na ferragem.

— O pessoal vem perguntar sobre coisas antigas do bairro. Pudera, sou quase uma enciclopédia! — conclui ele.