União Espírita Porto Alegrense celebra 100 anos no coração da Cidade Baixa

Entidade foi criada numa manhã de domingo, em 1925, no Clube Caixeiral, por seguidores da doutrina de Allan Kardek

Fachada da sede da União Espírita, na Rua João Alfredo, em 1975. ano do cinquentenário (Fotos/Acervo AUEPA)

Às 11 horas da manhã do dia 12 de abril de 1925, cerca de 15 pessoas se reuniram no salão nobre do Clube Caixeiral, na Rua dos Andradas, no centro de Porto Alegre

Eram seguidores dos ensinamentos de Allan Kardec (pseudônimo do francês Hippolyte Léon Denizard Rivail, que viveu entre 1804 e 1869), considerado o “codificador” do espiritismo.

Estudioso dos fenômenos da mediunidade, Kardec dizia que o espiritismo não era propriamente uma religião, e sim uma doutrina compatível não só com a ciência e a filosofia, mas também com a própria religiosidade cristã.

A bem da verdade, o grupo reunido no Clube Caixeiral já frequentava casas espíritas na cidade. Entre elas, a Sociedade Espírita Allan Kardec (fundada em 1894), o Instituto Espírita Dias da Cruz (de 1907) e a Sociedade Espírita Paz e Amor (de 1923).

Apesar disso, o que havia em comum entre aquelas pessoas era a vontade de construir um novo espaço no qual pudessem estudar com profundidade as ideias de Kardec e, mais do que isso, desenvolver as várias nuances da mediunidade.

Clube Caixeiral na Rua da Praia, em foto dos anos 1970

Foi assim que nasceu, naquela manhã de domingo, um século atrás, a União Espírita Porto Alegrense.

— Desde o início, ela primou por estudar e difundir a doutrina kardecista. Naquela época, as outras sociedades não se preocupavam tanto com isso, já que estavam mais voltadas para as atividades práticas do espiritismo — diz Kátia Ramos, atual presidente da entidade centenária, atualmente com sede na Rua João Alfredo, na Cidade Baixa.

A instituição tem como patrono Adolfo de Bezerra Menezes Cavalcanti.

Médico e jornalista nascido em Riacho do Sangue, no Ceará, em 1831, Cavalcanti é um dos principais expoentes do espiritismo no Brasil. Quando faleceu, em 1900, exercia o cargo de presidente da Federação Espírita Brasileira.

Na década de 1920, Porto Alegre experimentava um ritmo acelerado de crescimento.

A população era de 226.236 habitantes (os dados se referem ao recenseamento iniciado em 1922, sob a batuta do funcionário público municipal Olympio de Azevedo Lima, cujos resultados foram divulgados pelo Correio do Povo, em fevereiro de 1925).

Para se ter ideia, em 1900, não passava de 73.674 habitantes. Em um quarto de século, tinha mais do que duplicado!

A curiosidade é que, nos anos 1920, havia grande quantidade de estrangeiros entre os moradores da cidade – cerca de 17%, incluindo 12.676 italianos, 10.320 alemães, 6.031 portugueses, 3.334 espanhóis, 1.630 franceses e 733 ingleses.

O aumento demográfico era acompanhado pela transformação vertiginosa do cenário urbano.

Em 1925, por exemplo, teve início a abertura da Avenida Borges de Medeiros, com o alargamento da Rua General Paranhos, antigo beco do Poço. Essa obra modificou radicalmente a paisagem no centro da cidade.

Obra de abertura da Avenida Borges de Medeiros, iniciada em 1925 (Acervo do Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo)

Máquinas de datilografia

Foi nesse ambiente que nasceu a Associação União Espírita Porto Alegrense.

Há um ano, assim que a data do centenário surgiu mais próxima no horizonte, Kátia passou a se debruçar sobre documentos que contam a história da entidade.

A principal fonte da pesquisa são os livros-atas das reuniões de diretoria, redigidos ao longo de décadas em antigas máquinas datilográficas.

A ata da reunião no Clube Caixeiral, por exemplo, revela que os participantes decidiram instituir uma comissão encarregada de elaborar os estatutos e também indicar a primeira diretoria da futura sociedade.

Faziam parte da comissão João Pompílio de Almeida Filho (coordenador), Hilário Gomes, Luiz Paranhos, Mário Mattos Santos e Alberto Brito. Esses nomes compõem o grupo fundador da União Espírita.

Os trabalhos da comissão evoluíram até o dia 27 de setembro daquele ano, quando foram aprovados os estatutos. Na data, Hilário Gomes foi eleito presidente, acompanhado de dois vices, dois secretários, dois tesoureiros e quatro membros do Conselho Fiscal.

Exposição em outubro de 1941

Nos primeiros anos de vida, a União Espírita trocou de endereço com bastante frequência. Apesar da instabilidade, já no Natal de 1926, há registro de que conseguiu doar uma quantidade de gêneros alimentícios suficiente para atender 3 mil crianças pobres.

A primeira sede foi uma pequena sala alugada na Rua dos Andradas, 331.

Só que não foi possível permanecer ali por muito tempo. Em 27 de janeiro de 1926, Hilário Gomes comunicou aos demais integrantes da diretoria que o proprietário do prédio havia decidido vendê-lo, o que obrigava a entidade a buscar uma nova base.

Assim, a União Espírita mudou de lugar, embora não tenha abandonado a Rua dos Andradas. Transferiu-se para outra sala, desta vez, no edifício de número 339 da Rua da Praia.

Quatro meses depois, nova mudança. Diante das dificuldades de pagar o aluguel em dia, a diretoria adotou “a mais conveniente das soluções”, conforme consta nas atas das reunões. Qual era ela?

A Sociedade Allan Kardec cedeu, gratuitamente, uma sala de sua sede, à época situada na Rua General Vitorino, 22, para que União Espírita pudesse continuar existindo. Essa situação perdurou até julho de 1927, quando ela desceu até a Cidade Baixa para se instalar na Rua da República, 515, onde permaneceu por 14 anos.

— Foi quando começou a cumprir, de forma integral, as suas finalidades, divulgando a doutrina espírita e dando passes, além de ajudar e acolher as pessoas — relata Kátia.

Nesse meio tempo, surgiu a ideia da aquisição de uma sede própria. Para concretizá-la, foram realizadas diversas campanhas de arrecadação de fundos. O objetivo foi alcançado em janeiro de 1944, quando se mudou para o imóvel da Rua João Alfredo, também na Cidade Baixa, onde está até hoje.

Cápsula do tempo

Na pesquisa sobre a história centenária da União Espírita, algumas personalidades se destacam, como o presidente de honra, José Tomasoni (já falecido), que ocupou a presidência da Casa em diferentes ocasiões, a partir de 1945 (antes, já havia sido tesoureiro, em 1932).

Tomasoni chegou a morar numa casinha nos fundos do pátio da sede da João Alfredo (hoje, o espaço é utilizado pelo zelador do prédio).

Uma curiosidade é que foi constatada uma lacuna nos registros das atas das reuniões entre os anos de 1949 a 1964. Esse lapso de tempo tem uma explicação, como consta nos livros-atas subsequentes, relata Kátia:

— Um senhor chamado Valdomiro (os documentos não especificam qual a função exercia na sociedade) deixou os livros dentro de seu automóvel, com a intenção de passar a limpo em sua residência. Mas o carro foi roubado e, com ele, as atas de um período de 15 anos da história da União Espírita.

José Tomasoni, presidente de honra

Hoje em dia, o lema da União Espírita continua sendo o esclarecimento e a propagação da doutrina de Allan Kardec. Para isso, promove palestras e arregimenta grupos de estudo sobre o espiritismo.

Dedica-se ainda a ações de caridade e ao acolhimento de pessoas que batem à porta da casa da Rua João Alfredo, em busca de ajuda espiritual.

Aliás, os 15 voluntários que integram o Plantão de Atendimento Fraterno passam por reciclagens mensais para troca de experiências e informações.

— Há sempre situações inesperadas, que ensinam novas formas de lidar com o sofrimento humano — explica Kátia.

As sessões de passe acontecem às segundas, terças e quintas, a partir do final da tarde.

— A Casa abre às 18h30 e fecha às 19h, quando começam os trabalhos — acrescenta ela.

Em 2024, o número de pessoas atendidas com passes foi de 5.264, com média mensal de 439 atendimentos.

A entidade conta ainda com posto de venda de livros e biblioteca de acesso gratuito em sua sede na João Alfredo, além de uma escola de evangelização na Vila Gaúcha, no Morro Santa Teresa, onde também promove doações de alimentos, roupas e cobertas, entre outras atividades.

As comemorações do centenário incluem uma exposição fotográfica, já em cartaz, que apresenta uma linha do tempo da trajetória da entidade através de painéis montados ao longo do corredor de entrada da Casa.

O centenário será marcado ainda pela realização do seminário Jesus, Orvalho da Luz do Novo Tempo, em cinco datas do mês de abril (dias 5, 9, 23, 26 e 30), com palestras e apresentações musicais (as vagas estão esgotadas).

Afora isso, foi criada uma Cápsula do Tempo. No que consiste?

É simples: os participantes dos grupos de estudos registraram suas expectativas em relação ao futuro da União Espírita e também da humanidade. Essas mensagens foram lacradas numa urna de vidro, que ficará guardada dentro de um aquário e será aberta somente daqui a 50 anos.

Vida longa para a Associação União Espírita Porto Alegrense!