A rua da passagem
Histórias de vida se misturam a Novos points na Joaquim Nabuco, no coração da Cidade Baixa
Ela existe desde 1883, mas pouca gente sabe que, logo que foi aberta, a Rua Joaquim Nabuco não tinha o traçado que possui hoje.
Nos primeiros tempos, só existia o trecho entre a Rua da Olaria (atual Lima e Silva) e a Concórdia (agora José do Patrocínio). No mapa de Porto Alegre de 1896, já avançava um pouco além, ainda sem alcançar a João Alfredo. O prolongamento até a antiga Rua da Margem só apareceu na década de 1940.
Curiosamente, é justamente o pedaço mais antigo dessa tradicional via da Cidade Baixa – bairro mais notívago de Porto Alegre – que renasceu nos últimos tempos.
Não faz muito, pouco iluminado, o quarteirão original chamava mais atenção pelo risco de assaltos do que pelo agito da boemia. Era quase uma rua de passagem, especialmente para os que se dirigiam ao Opinião, uma das principais casas de shows da cidade, encravada na esquina com a José do Patrocínio.
Mas, de uns anos para cá, novos points noturnos deram outra cara à Joaquim Nabuco, que, sem fazer alarde, virou um dos pontos de referência da Cidade Baixa, região que se destaca por dispor de vários núcleos boêmios espalhados por suas avenidas, ruas e travessas.
O bar dos cervejeiros
Um dos marcos da nova fase da Joaquim Nabuco é o Levedura Pub, especializado em cervejas artesanais.
— Quando viemos para cá, praticamente não existia movimento local — diz o engenheiro Matheus Homrich, que abriu o bar em dezembro de 2018.
De fato, à época, não estavam ainda em funcionamento a pastelaria Mister Clau, o restaurante Bodega do Galo, o café Caldeirão Furado (inspirado nas histórias de Harry Potter) e o Kemono Sushi. Já funcionava a Beer Store, da cervejaria Veterana, que agora está fechando o ponto para se concentrar nos bares que abriu no Quarto Distrito e no Moinhos de Vento.
Formado pela Escola Superior de Cerveja e Malte (ESCM), de Blumenau (SC), o dono do Levedura é de uma família de cervejeiros de Cachoeira do Sul, onde os parentes mais antigos fundaram a cervejaria Homrich, no século XIX.
Depois que o pai (Maurício, também engenheiro) se aposentou, ambos passaram a fazer cerveja em casa, mais como diversão do que para ganhar dinheiro. Mas os elogios de amigos e familiares deram a certeza de que valia a pena ter um lugar fixo onde comercializar a bebida.
A bem da verdade, a intenção inicial era a de que as pessoas chegassem com uma garrafinha vazia para encher e levar para casa. Mas o Levedura virou ponto de encontro da galera cervejeira da Cidade Baixa.
— Quando começamos a frequentar, fazíamos churrascos de confraternização. Muitas amizades nasceram no Levedura, que acolheu a gente com muita simpatia e, principalmente, boa cerveja — comenta o analista de sistemas Jorge Carvalho.
Para não incomodar a vizinhança e, com isso, assegurar vida longa ao Levedura, Matheus está aprimorando o isolamento acústico do pub, que promove shows de jazz, rock e MPB aos fins de semana.
Outro investimento será a instalação de um parklet junto ao meio fio da calçada, para “dar um charme” e ampliar o atendimento na área externa do bar, conforme Matheus.
Mãos, pés e drinques
Um passeio pela Joaquim Nabuco revela surpresas, como encontrar uma esmalteria que também funciona como bar.
A rigor, a Aquarela – Esmalteria & Bar nasceu do “sonho de uma vida que queria seguir adiante, depois da adversidade de um câncer”, como explica a proprietária Gislaine Grinschpun.
— A vontade era sair do fundo do poço — diz ela.
Gislaine contou com apoio do marido, o professor Iair Grinschpun, tanto no enfrentamento da doença quanto na montagem do negócio.
A opção de abrir o espaço na Joaquim Nabuco, em dezembro de 2021, foi natural:
— Sempre morei na Cidade Baixa e me identifico com o jeito despojado do bairro — conta Gislaine, que alterna o atendimento na esmalteria com o expediente como bibliotecária da UFRGS, no Campus do Vale.
Desde o começo, a ideia era criar um ambiente onde as mulheres se sentissem à vontade, sem recorrer a estereótipos de gênero.
— Lembrava de lugares para se fazer as unhas com paredes cor de rosa, aquele cheiro de produtos químicos no ar e o barulho aborrecido dos secadores de cabelo. Não era isso que eu queria — relata a dona do Aquarela.
Essa recusa ao lugar comum, aliás, está à mostra nas figuras que ilustram quadros, canecas e peças de artesanato comercializadas no local. São imagens de mulheres fortes como Frida Kahlo, Elza Soares, Cássia Eller, Anitta e Marielle Franco.
Na parede do banheiro, é Mafalda (personagem do cartunista argentino Quino) quem dá as boas-vindas.
A maior parte dos produtos à venda é cedida por parceiros comerciais, mas Gislaine é responsável pelas estampas políticas das camisetas expostas nos fundos da esmalteria.
Ela escolheu também as luminárias e as cores preto e vinho que predominam no ambiente, além de esboçar a logomarca finalizada pelo designer Rodrigo Rabello. E foi voz ativa na reforma do imóvel feita pelas arquitetas Karime Martins e Hannah Lang, do Studio ARKH.
O cuidado de pés e mãos é o carro-chefe e, embora a Aquarela agregue serviços de design de sobrancelhas, depilação, maquiagem e massagem, o que faz a diferença mesmo é o bar com cervejas, espumantes, vinhos e drinques.
No momento, o drinque predileto de Gislaine é o Gin Pink (mistura de gin, tônica e frutas vermelhas), item que – ela se dá conta agora – ainda não foi impresso no cardápio. Cappuccinos e empanadas também são servidos no balcão da Aquarela.
Colorida e cheia de vida, a esmalteria que também é bar trouxe um sopro de inovação para a Cidade Baixa.
— Já existiam barbearias com sinuca e bebidas para os homens, mas as mulheres não tinham isso. E, principalmente no verão, dá vontade de beber uma cervejinha, não é mesmo? — provoca Gislaine.
Um bar na janela
Tem novidades na Joaquim Nabuco também depois de se cruzar a esquina com a José do Patrocínio.
Por muito tempo, o engenheiro Joal Aramburu da Silva trabalhou fora do Estado, em obras pesadas de infraestrutura, como hidrelétricas, portos, rodovias e campos de mineração.
De volta a Porto Alegre, decidiu dar um novo rumo à vida. Junto com a esposa Eliane – mato-grossense que conheceu nas andanças pelo país afora – criou uma franquia do Janela Bar, rede de burgers e alta coquetelaria com matriz em Curitiba.
— A proposta é oferecer coquetéis na calçada, em copos de plástico. Se fosse num bar tradicional, custariam o dobro do preço — diz Joal.
Quando abriu as portas, em fevereiro de 2022, o Janela Bar da Cidade Baixa era apenas a terceira franqueada no Brasil. Atualmente, são mais de 30 unidades em 11 estados.
Na Joaquim Nabuco, em pouco tempo, a receita deu certo – não à toa, Joal já alugou a casa ao lado para ampliar a área de atendimento. Em frente ao Janela, a calçada está sempre tomada, principalmente por jovens de 18 a 35 anos de idade.
É a turma que circula pela Cidade Baixa à noite, alternando bares e danceterias. Ali, ela faz um pit stop para tomar um fôlego – e alguns drinques, de lambuja.
– Existe um público que se desloca o tempo todo na Cidade Baixa, principalmente entre a Lima e Silva e a João Alfredo – anota Joal.
Ele não se incomoda nem um pouco com a fama de “rua de passagem” da Joaquim Nabuco. Pelo contrário, até propõe que ela seja protagonista desse vai-e-vem da moçada ao longo da madrugada.
— Historicamente, a rua que cumpre esse papel é a República (antiga Rua do Imperador). Quem sabe a gente consiga transformar a Joaquim Nabuco numa outra opção de circulação — afirma.
Por sinal, Joal defende a ocupação do espaço urbano como forma de tornar o ambiente das ruas cada vez mais saudável e seguro.
— As pessoas devem tomar a cidade para si, e a melhor maneira de fazer isso é andar a pé, sempre deixando as calçadas limpas e respeitando os moradores. É também uma oportunidade de se conhecer a história de Porto Alegre. Afinal, estamos no segundo bairro mais antigo da cidade (depois do Centro Histórico).
Entre os coquetéis do Janela, o destaque é o Moscow Mule, drinque clássico de vodca, refrigerante, gengibre, xarope e suco de limão, com variações que abarcam outros ingredientes, como uísque e cachaça de jambu.
Já os burgers apresentam a alternativa de costela, que não consta no cardápio oficial da franquia curitibana, mas foi incluída para agradar o paladar gaúcho.
— Eles me autorizaram que fizesse um teste por um mês. Hoje, é a que mais vende — assegura Joal.
caso sério
Alguns passos adiante do Janela, está o Marcia’s, outro bar inaugurado em fevereiro de 2022.
O nome é quase um registro de casamento em cartório – o boteco é do casal Márcia Dornelles e Márcia de Oliveira. Elas estão juntas desde março do ano passado, quando se conheceram numa sala de bate-papo do Facebook.
A paixão foi fulminante e virou um caso sério. Logo estavam morando juntas em Carlos Barbosa, onde uma das Márcias – a de Oliveira – trabalhava fazia oito anos como cozinheira de uma empresa prestadora de serviços para a Tramontina.
— De dia, cozinhava para 1.500 pessoas, fora o turno da noite. Preparar os pasteis para a moçada aqui é moleza — brinca ela, referindo-se a uma das especialidades do Marcia’s.
Nisso, a casa pertencente a Márcia Dornelles na Joaquim Nabuco ficou vazia. Para tirar algum retorno financeiro do imóvel, as duas decidiram abrir o boteco nas noites de sábado e domingo.
— Era bem puxado. Na sexta, eu saía da Tramontina às 3 da madrugada e pegava de carro a Márcia para descermos a serra — lembra a cozinheira.
Chegou um momento em que ela tomou coragem de largar o emprego para se dedicar exclusivamente ao bar, ao lado da parceira. Foi quando o Marcia’s entrou de vez na rota do público da Cidade Baixa.
Em parte, isso aconteceu por causa dos preços acessíveis do cardápio. Não pagar aluguel ajuda a cobrar valores em conta. Mas há também uma identificação das proprietárias com os clientes.
— Às vezes, as pessoas estão com vontade de tomar uma cerveja e não têm dinheiro. Já passamos por isso — comenta Márcia de Oliveira.
Engana-se quem pensa que o sucesso do Marcia’s se explica apenas pelo cardápio que cabe no bolso.
O ambiente simples e despojado é outro atrativo, especialmente numa época em que proliferam tantos botecos sem alma, que a gente quase não consegue diferenciar uns dos outros.
Há também razões afetivas para explicar a boa aceitação do Marcia’s no coração da Cidade Baixa.
Embora não seja um gueto e atenda outros públicos, sem fazer distinção, estabeleceu-se uma empatia entre as donas e os frequentadores, majoritariamente LGBTQIA+.
— Quando veem que somos um casal, as pessoas se sentem acolhidas, porque nem todo o bar é assim. Existe ainda muito preconceito — destaca Márcia Dornelles.
De volta para casa
O destaque que a Rua Joaquim Nabuco ganhou no mapa da Cidade Baixa tem a ver também com o Brick de Desapegos. uma das feiras de moda sustentável mais tradicionais de Porto Alegre – vai completar 11 anos em dezembro de 2022.
Desde junho deste ano, uma vez por mês, o brechó ocupa o quarteirão entre a Lima e Silva e a José do Patrocínio.
No princípio, eram 50 expositores. Três meses depois, a quantidade praticamente dobrou – hoje, 90 marcas se perfilam praticamente de ponta a ponta do quarteirão. Com tempo bom, o público chega a 3 mil pessoas.
Não deixa de ser um retorno ao lar, já que a primeira edição do Brick de Desapegos aconteceu no Dub Studio, na José do Patrocínio, junto à Praça Garibaldi. Depois, se mudou para a Rua João Telles, no outro lado do Parque da Redenção.
Quando a concorrência por espaço nas calçadas do Bom Fim ficou saturada, a idealizadora da feira – Natália Guasso – decidiu buscar um novo ponto num cenário que faz parte de suas memórias afetivas. Afinal, a Cidade Baixa não é só o lugar de origem do evento, mas também o bairro onde ela mora há 40 anos.
— Escolhi a Joaquim Nabuco por ser uma rua ampla, com casinhas lindas. Como tem poucas garagens, o evento incomoda menos os moradores. Além disso, aqui me sinto em casa — conclui Natália.