Um pronto-socorro dos pneus
Há quase quatro décadas, a borracharia chacrinha socorre os motoristas de porto alegre durante as 24 horas do dia
Uma tábua de salvação dos motoristas.
É como pode ser classificada a Borracharia Chacrinha, uma das raras que funciona 24 horas por dia em Porto Alegre.
Há quase 40 anos, está sempre aberta na esquina da Rua Santana com a Doutor Olinto de Oliveira, às margens da Avenida Ipiranga. Mais que um borracharia, a essa altura, já virou um ponto de referência afetiva para mais de uma geração de moradores da cidade.
A história da borracharia está irremediavelmente ligada à memória de seu fundador, Edison Jesus Araújo Cavalheiro, o Chacrinha.
Ele recebeu o apelido quando ganhava a vida como taxista. Para passar o tempo, entre uma corrida e outra, os colegas inventaram um concurso – vencia quem soubesse imitar mais fielmente José Abelardo Barbosa, o Chacrinha, apresentador de sucesso da televisão brasileira, entre os anos 1960 e 1980.
Edison ganhou o concurso de lavada.
Não bastassem o jeito bonachão e a semelhança física, fazia com perfeição a voz do Velho Guerreiro (outro apelido do popular animador de auditórios). Depois que assumiu de vez o codinome, até aprendeu a usar os bordões televisivos do Chacrinha original para fazer propaganda da borracharia.
— Aqui não tem porta nem janelas, só o velho que fica olhando para elas — afirmava, ao receber os clientes.
Natural de Uruguaiana, Chacrinha veio para Porto Alegre ali pelos 12 anos de idade. Após a separação dos pais, chegou acompanhado da mãe, Jandira, e dos três irmãos.
Fez de tudo um pouco nessa vida – vendeu frutas, trabalhou como frentista num posto de gasolina e dirigiu taxis. Em 1983, largou o volante para abrir a borracharia. Foi meio que de supetão:
— Uma noite, rodei a cidade inteira atrás de uma borracharia e não achei. Então, resolvi abrir uma que funcionasse 24 horas por dia. Deu certo — contou ele, em reportagem do Diário Gaúcho.
No começo, Chacrinha tinha como sócio João Lino (que fez parte da diretoria do Sindicato dos Taxistas), por isso, durante muito tempo, a borracharia se chamava Chacralino, uma mistura dos nomes dos donos. Ambos já faleceram.
Chacrinha morreu em 29 de novembro de 2016, um dia após completar 71 anos, em decorrência de complicações do diabetes.
— Não se cuidava. Eu e minha mulher ficávamos em cima, mas não adiantava. Passava à base de bolo de chocolate e Coca-Cola — diz o filho Émerson.
A primeira coisa que Émerson fez, após a morte do pai, foi rebatizar a borracharia para homenageá-lo. Agora, está lá na fachada do prédio – Borracharia Chacrinha.
Nada mais merecido.
— A vida dele era isso aqui. Nas vésperas de Natal, em vez de fazer festa em casa, inventava um churrasquinho para reunir a família e os amigos na borracharia — comenta Émerson.
Fora das datas festivas, começava e terminava o dia com as mãos sujas de trocar e consertar pneu. E, se algum funcionário não aparecia à noite, ele próprio fazia o turno da madrugada.
Até morou na borracharia, num período em que esteve separado da esposa, dona Maria.
Quando queria tomar um ar, sentava em cima da pilha de pneus na calçada. Era o lugar de descanso predileto. Como se fosse um trono, dali observava a bagunça cheia de harmonia que domina o ambiente.
— Sinto falta da zoeira do Chacrinha — escreveu a vizinha Sônia Rösler num post do Facebook.
Abaixo, confira detalhes da borracharia.
Fileira de trailers
Uma das especialidades da casa é a vulcanização, antigamente denominada “bacalhau” ou “manchão” no jargão dos borracheiros. São remendos feitos a quente, com pedaços de lona ou borracha, na parte interna do pneu danificado.
— Não é toda borracharia que faz. As chiques se negam — alerta Mauro Taxitramas, como é conhecido o escritor e taxista Mauro Santana de Castro, que tem ponto na Saldanha Marinho com Getúlio Vargas, no Menino Deus (ele já escreveu cinco livros baseados em histórias reais acontecidas durante as corridas do taxi).
Mauro recorda da primeira vez que pediu socorro à galera do Chacrinha. Já faz muito tempo. À época, um buraco na pista entortou uma das rodas do velho fusca. Numa borracharia “gourmet”, segundo suas palavras, disseram que não tinha jeito – o melhor era comprar uma roda nova.
— Tem solução, sim – disse Chacrinha, com uma marreta nas mãos.
Bastaram algumas marretadas bem dadas para arrumar o estrago. Ficou perfeita, igual à original, testemunha Mauro.
— E Chacrinha ainda deu garantia. Aquela é uma borracharia-raiz, quebra o galho de todo mundo — conta ele.
De fato, a filosofia do Chacrinha era resolver o problema do freguês, de um modo ou de outro. E se a criatura não tivesse dinheiro para pagar na hora, dava-se um jeito. Aliás, essa é outra qualidade destacada por quase todos que o conheceram – a generosidade.
— Era uma mãe brasileira. Branco, amarelo, preto, rico, pobre, não fazia distinção. Estou para te dizer que não vai aparecer outro igual ao Chacrinha tão cedo — diz João Bruneta, o João do Guincho, há 30 anos responsável pelo Tele Socorro da borracharia.
Graças à parceria com João do Guincho, se alguém estourar o pneu na rua ou em casa, basta ligar para a Borracharia Chacrinha para receber atendimento no local. Os preços variam de R$ 100 a R$ 150, conforme a distância.
Outro cliente fiel é o músico e pesquisador Arthur de Faria. Para ele, as recordações remontam à adolescência, quando morava em Gravataí e vinha com os pais a Porto Alegre para assistir a um show ou ir ao cinema à noite.
Certa vez, já em horário adiantado, o pneu furou. Quando o pai de Arthur estacionou naquela esquina da Santana, o rapaz ficou deslumbrado.
Gente pobre e gente rica parando junto à calçada, a agitação dos funcionários correndo de um lado para o outro, a velha escrivaninha de atendimento à clientela atirada no meio daquela confusão. Tudo ali, aos olhos do adolescente, se mostrou encantador.
— Esse encanto jamais se perdeu, tanto que virei cliente para a vida toda. Não tem mais foto de mulher pelada, é verdade, mas ainda é fascinante. É a Lancheria do Parque dos pneus — diz Arthur, citando o famoso restaurante da Avenida Osvaldo Aranha, no Bom Fim, que, antigamente, também permanecia de portas abertas até o amanhecer.
Houve um tempo em que a Borracharia Chacrinha não varava a madrugada sozinha. Uma fileira de trailers de cachorro-quente ocupava a faixa estreita de grama entre a Ipiranga e a Rua Dr. Olinto de Oliveira, onde aportavam boêmios famintos, vindos de todos os cantos da cidade.
— Tinha o trailer do Bigode, do Boquinha, do Carlão, entre tantos outros. Com a construção da Vila Planetário (conjunto de moradias populares inaugurado em 1992), cercaram a área. Depois que tiraram a cerca, fizeram uma pracinha e os trailers não puderam mais funcionar — relembra Émerson.
De pai para filho
Hoje em dia, empresas que passam de pai para filho são cada vez mais raras.
Emerson ajudou o pai desde criança no serviço. Com a ausência do velho, ele comanda a equipe formada por seis pessoas, que conta com três netos de Chacrinha, Éverson, Maiols e Thauane. Com isso, o envolvimento da família no negócio já chegou à terceira geração.
A esposa de Émerson, Fabiana, cuida da parte administrativa, O time inclui ainda dois funcionários, Wellington e Rafael.
— Entre as clientes femininas, a Thauane é a mais bem conceituada. Admiram por ela ser mulher e trabalhar ali — ressalta Émerson.
É bom dizer ainda que taxi e Uber têm preços especiais.
— Desde o tempo do Chacrinha era 10 pila e continua igual para taxistas. Para Uber, cobramos R$ 15 — informa o atual proprietário do estabelecimento.
Demais clientes pagam quantias que variam de R$ 20 a R$ 40, de acordo com o tamanho do rombo no pneu ou o status do automóvel. Se for BMW do ano, por exemplo, o reparo exigirá mais requinte e esmero, talvez demore mais, por isso, vai sair por um valor do topo da tabela. No mais das vezes, o conserto não demora mais que 15 ou 20 minutos.
A borracharia oferece também serviços de blindagem (uma capa de aço é colocada por dentro do pneu) ao custo de R$ 40 a R$ 100. É top. Pode tomar tiro que vai dar para sair do sufoco e vir buscar conserto definitivo na esquina da Santana com a Doutor Olinto de Oliveira.
— A gente só não conserta pneu de avião porque, até hoje, nenhum conseguiu pousar aqui em frente à borracharia — conclui Émerson.