De volta às calçadas da Osvaldo
Bar Osvaldo marca território e reanima a cena noturna do Bom Fim, gueto boêmio mais agitado de porto alegre até a década de 1990
A calçada mais democrática da cidade.
É como o comunicador Miltinho Talaveira define o espaço em frente ao Osvaldo, o bar de calçada que está reacendendo a noite do bairro Bom Fim, principal ponto boêmio de Porto Alegre entre os anos 1970 e 1990.
— É um bar inclusivo e diverso. Pode vir sem combinar com ninguém e sempre vai achar uma pessoa conhecida. Fora isso, é onde se bebe o melhor Negroni da cidade — assegura Miltinho, que se autoproclama “embaixador” da casa localizada na Avenida Osvaldo Aranha, nº 784, quase na esquina com a Rua Santo Antônio.
Ali, Miltinho tomou o primeiro drinque {a composição do Negroni é gin, campari e vermute rosso} depois de se vacinar contra a covid-19. Não foi o único a sair da toca.
Após se autoconfinar por oito meses no limite de dois ou três quarteirões ao redor do prédio em que mora, na Cidade Baixa, o professor da Fabico (Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS), Fabrício Silveira, cruzou a Redenção para conhecer o bar Osvaldo.
— Cheguei aqui, meu Deus, que impacto! Parece outra cidade. Tomara que, neste embalo, a noite do Bom Fim ganhe vida nova. Estamos precisando disso — diz Fabrício, autor de livros sobre as mutações da cultura contemporânea, como Rupturas instáveis: entrar e sair da música pop (Libretos, 2013).
SOB A LUZ DO LUAR
A retomada das calçadas do Bom Fim também está sendo acompanhada atentamente por Fiapo Barth, dono do Ocidente, bar que completou 40 anos de atividades em dezembro de 2020, como referência central da boemia do bairro e da capital gaúcha.
— A pandemia empurrou as pessoas para as calçadas {em função do menor risco de contaminação}. Isso pode ajudar a humanizar a noite — afirma ele.
Na visão de Fiapo, é desejável que, com o avanço da vacinação, o retorno do movimento noturno não fique concentrado num só lugar, mas espalhado por vários quarteirões e esquinas.
Ele relembra os tempos de universitário, ao final dos anos 1970, quando atravessava a principal avenida do Bom Fim de uma extremidade à outra para se deslocar da Ramiro Barcelos, onde morava, até a Faculdade de Arquitetura da UFRGS.
— A Osvaldo era uma sequência de bares. Cada bar tinha um perfil de público e a gente frequentava todos. Passava a noite em revista.
De um lado, a dispersão evita ou pelo menos atenua a possibilidade de conflitos com os moradores. Ao mesmo tempo, a retomada das calçadas ajuda as pessoas a perderem o medo.
— Essa coisa de todo mundo se trancar em casa quando escurece {Fiapo se refere ao temor relacionado à violência urbana, não aos cuidados referentes à pandemia} é doentia. Qualquer passeio que se faça fora do Brasil mostra que ocupar o espaço público à noite é algo comum nas cidades.
Um dos locais que marcaram a vida noturna do Bom Fim nos anos 1980 foi o Escaler, não por acaso, bar plantado às margens do Parque da Redenção, ao ar livre, em meio a jacarandás e sob o brilho da lua.
— Naqueles anos, o Bom Fim era um bairro catalisador da paz, do convívio em harmonia entre as pessoas — diz o proprietário Antônio Calheiros, o Toninho do Escaler, que acaba de lançar um livro (Escaler: Quando o Bom Fim era nosso, Senhor!, Ballejo Cultura & Comunicação) sobre a trajetória do bar, estendida de 1982 a 2005.
Apesar de ressaltar que a pandemia não acabou e, por isso, é preciso preservar cuidados e protocolos, a radialista Katia Suman constata que os longos meses de confinamento redimensionaram o valor da ocupação das ruas.
— A realização plena de se viver numa cidade se dá no espaço público, onde as pessoas se sentem acolhidas — diz Katia, que revolucionou a linguagem do rádio ao falar, no microfone da Ipanema FM, na década de 1980, o “porto-alegrês” que se escutava nas calçadas do Bom Fim.
Abrigo noturno
Entre os frequentadores, há unanimidade em atribuir o sucesso do bar Osvaldo à “mão boa para descobrir e criar novos lugares“ (conforme as palavras de Fabrício Silveira) de Cecília Capovilla, que comanda a casa com o sócio Eduardo Etchepare.
— Cecília tem a manha de criar um astral legal para receber as pessoas. É um talento para guiar ambiente de bar — complementa Katia.
De fato, a dona do Osvaldo tem 27 anos de serviços muito bem prestados à noite porto-alegrense. Ela começou, já com o pé direito, ao assumir o controle (em parceria com Antônio Morosini) do lendário Elo Perdido, na Rua Garibaldi, entre a Osvaldo e a Vasco da Gama.
Na segunda metade dos anos 1990, o sobrado de porta estreita e janela de venezianas, com um jardinzinho na frente, foi abrigo noturno da cultura alternativa em Porto Alegre.
A atmosfera retrô, com móveis estofados de plástico, luminárias dos anos 1960 e um antigo televisor de válvulas, atraía como imã as diferentes tribos que circulavam pelo Bom Fim nas altas horas da madrugada.
Em 2013, junto com Tais Scherer e Alex Hoff, da Balonê, Cecília promoveu um revival do Elo Perdido (fechado no início da década de 2000) em festas que lotavam a pista do Ocidente, em clima de nostalgia e confraternização.
No ano seguinte, ela inovou mais uma vez ao abrir o Mini Bar (junto com Etchepare), minúsculo boteco de aproximadamente 30 m² na Rua João Telles, defronte ao Ocidente. Um barzinho charmoso, no qual mal cabia uma dúzia de pessoas, com drinques, petiscos e até música de DJ.
— Despretensiosamente, os amigos foram chegando e botando som. Um ano depois, tinham passado mais de 40 DJs pelo Mini Bar — conta ela.
Até aí, a experiência de Cecília como empresária da noite se resumia a locais fechados (também inventou o Electra, na Cristóvão Colombo, e o Fina Brandão, na João Alfredo, entre outras casas noturnas). Pela primeira vez, ela tinha um bar de calçada, que juntava pequenas multidões na porta.
— O Mini Bar foi uma escola não só para mim, mas também para os movimentos de festas de rua, que apareceram logo em seguida — comenta.
Àquela altura, com a ajuda de outros bares das cercanias, como Odessa e Josephyna's, Cecília havia reconfigurado a esquina da João Telles com a Osvaldo Aranha – de resto, um ponto sagrado para a boemia de Porto Alegre, já que até hoje é o endereço do Ocidente.
Mas o espírito irrequieto da empresária já tinha novos planos.
Toque ou clique nas imagens abaixo para conhecer detalhes do ambiente interno do bar Osvaldo.
Padrinho de peso
Se Miltinho Talaveira é o embaixador, Fiapo Barth é o padrinho do bar Osvaldo.
Ele admira o trabalho de Cecília desde o tempo em que espiava, pela janela do Ocidente, a agitação em frente ao Mini Bar.
— Achei muito bacana a maneira como ela fez a coisa acontecer com um mínimo de espaço. Até considerei um erro que tivesse passado adiante o ponto {em julho de 2019}.
Embora não concordasse com a extinção do Mini Bar – sob outra administração, foi renomeado como Deusa Bar –, Fiapo se dispôs a ajudar Cecília no empreendimento que ela estava instalando: o bar Osvaldo.
De início, cedeu dois freezers e mesas “carregadas de história” (como Cecília enfatiza) do Ocidente, as quais não pretendia mais usar.
Mas não foi só isso.
Em meio às incertezas e às perdas do pior período da pandemia – em abril de 2021, a covid-19 causou a morte de sua mãe, Eloísa Capovilla, historiadora com relevante trabalho de pesquisa sobre a memória e a identidade da imigração no Sul do Brasil –, Cecília esteve prestes a abandonar o projeto. Quem não deixou que o fizesse foi Fiapo.
— Desde o momento em que vi a casa quase na esquina com a Santo Antônio, achei que o espaço tinha muitas possibilidades. Então, disse a ela que, enquanto houvesse alguma maneira de seguir em frente, não desistisse — relata ele.
Cecília diz ter consciência de estar reanimando uma cena boêmia e criativa que muito representou para Porto Alegre nas últimas décadas do século passado.
— Quando escolhemos o lugar, sabíamos disso.
Curiosamente, ela alugou por duas vezes o imóvel da Osvaldo Aranha. Na primeira, em 2016, tinha já a intenção de abandonar o balcão do Mini Bar, mas acabou devolvendo as chaves para voltar a investir no barzinho da João Telles.
— Na época, meu espírito de batuqueira disse: “Essa casa ainda há de ser minha!” — brinca ela.
Em setembro de 2019, voltou a alugar o casarão com a ideia de instalar nele um bar de ambiente fechado, com ar condicionado e pista de dança, mais ao estilo dos projetos anteriores. Por vias tortas (em função da pandemia), se viu obrigada a refazer o planejamento, em favor do bar de calçada.
— Bar de rua é o que precisamos neste momento, em função das condições sanitárias. Não tem que se enfurnar em lugar fechado — afirma Miltinho.
E assim é.
Com cerveja mais que gelada e drinques clássicos e autorais, preparados pelo bartender Cris Magrinho, o Osvaldo conta com a animação de DJs como Luciano Benites, Fabrício Milkshake, Ricktocadisco (Ricardo Pont) e Manoel Canepa, que se revezam no comando das pick-ups.
No item alimentação, por enquanto, oferece apenas pizza e sanduíches, mas Cecília não se importa que os clientes busquem opções do cardápio dos bares vizinhos. Se vacilar, ela mesma manda trazer.
Por pouco (ou melhor, por sugestão de Katia Suman), o bar – que completará um ano no dia 20 de novembro – não ganhou o nome da avenida que busca reanimar.
— Como a dona é mulher, pensei que ficaria bacana. Fora isso, achei que soaria bem dizer: “Vamos na Osvalda?”.
Os sócios acabaram optando pelo nome masculino e, assim, o Osvaldo está reanimando a velha e querida Osvalda, eterna musa da noite de Porto Alegre.