Cerveja é coisa de mulher, sim!
Deusa cervejeira da Antiguidade inspira novo bar da Cidade Baixa
Ao saborear uma cerveja gelada neste início de primavera, pouca gente sabe que a bebida foi criada há 8 mil anos por mãos femininas.
Isso mesmo – apesar da presença masculina preponderante hoje em dia à frente da indústria cervejeira, que até elege os homens como público-alvo da propaganda, a bebida é uma invenção das mulheres.
Invenção é modo de dizer. A rigor, a cerveja foi descoberta na Idade da Pedra por mulheres em meio aos afazeres domésticos. Não custa lembrar que, pela estrutura familiar da época, enquanto os homens saiam para caçar, elas eram encarregadas de coletar grãos e preparar os alimentos.
Consta que a descoberta se deu por acaso.
— Elas não usavam fermentos para produzir pães e bebidas, e sim leveduras e bactérias que estavam no ar. Em algum momento, a fermentação levou mais tempo do que deveria e produziu o álcool da cerveja, que passou a ser utilizada para suplementar a alimentação das famílias — diz a bióloga Roberta Pierry, que estudou as origens da bebida sagrada antes de fundar a cervejaria Sapatista.
Inspirada nessa história e em parceria com a DaLuz, outra marca de cerveja artesanal, a Sapatista está prestes a abrir a mais nova casa noturna da Rua João Alfredo (número 557), na Cidade Baixa – principal reduto boêmio de Porto Alegre.
A inauguração do bar Ninkasi está marcada para 4/11.
O nome não ficou escolhido à revelia. Tem a ver com uma deusa cervejeira reverenciada pelos sumérios – um dos primeiros povos a habitar o sul da Mesopotâmia (região que hoje pertence ao Iraque), 5 mil anos a.C.
Na mitologia dessa sofisticada civilização, conhecida por ser a primeira a desenvolver uma forma de escrita, Ninkasi tinha a missão de preparar a bebida sagrada para satisfazer o desejo e saciar o coração.
— Quando os arqueólogos acharam manuscritos com hinos à deusa, viram que nada mais era do que uma receita de cerveja — revela Roberta.
Mais tarde, já durante a Idade Média, as cervejeiras foram as primeiras mulheres consideradas bruxas – certamente, um castigo para a audácia da autonomia.
A essa altura, fabricavam a cerveja não para alimentar a família, mas para sobreviver. Daí vem a imagem da figura de mulheres usando chapéus grandes e pontudos, que indicava a presença de cervejeiras à porta dos mercados.
Aliás, a simbologia das bruxas tem muito a ver com a cerveja.
— No caldeirão, elas misturavam os ingredientes. Já o gato mantinha os ratos afastados para não contaminar os insumos. E, quando um novo lote de cerveja ficava pronto, deixavam uma vassoura junto à porta, no lado de fora da casa, para avisar as pessoas.
Marcas de conteúdo
Após pesquisar a história da cerveja em livros e na internet, a bióloga se sentiu estimulada a fabricar a bebida para consumo próprio, em 2015.
Algum tempo depois, quando já tinha criado mais de uma receita, veio à cabeça a palavra sapatista, combinação de zapatista (como era chamada a guerrilha de indígenas e camponeses mexicanos na década de 1990) com a identidade do sapatão.
Conforme ela, o nome sugere um diálogo entre minorias e movimentos de esquerda.
Naquele período, Roberta costumava se reunir com amigas, em torno de um barril, para curtir a bebida feita em casa. Certo dia, uma delas criou dois rótulos, quase como brincadeira.
— Ficaram lindos a ponto de eu achar que era hora de transformar o hobby em negócio. Já tinha o produto, um nome e também um propósito para levar adiante.
A cervejaria Sapatista foi fundada em 8 de março de 2019 – não por coincidência, é claro –, Dia Internacional da Mulher.
A partir daí, Roberta resolveu homenagear diferentes mulheres a cada cerveja que criava. Assim, surgiram os rótulos Incendiária, Pantera Negra, Olga, Maria da Penha, Filipina e Candace. Como autênticas marcas de conteúdo, os nomes estão conectados ao sabor dos produtos (leia, ao final do texto, as características de cada um).
Premiada em certames como a Copa Sul-América de Cervejas, a Copa Internacional de Cerveja POA e o Festival Brasileiro da Cerveja, a Sapatista produzia 2 mil litros por mês antes da pandemia.
Aos poucos, esse patamar está sendo retomado. A perspectiva é chegar ao final do ano fabricando 5 mil litros mensais.
A Sapatista é uma cervejaria “cigana”, o que significa que não tem local fixo para a produção. Roberta elabora as receitas, que são enviadas para fábricas parceiras, entre elas, a DaLuz Cervejaria, no bairro Sarandi, zona norte de Porto Alegre.
Entre outras afinidades, a DaLuz é também um negócio comandado por uma mulher, a nutricionista Michelle Vieceli. A parceria deu tão certo que Roberta e Michelle estarão juntas no ponto de venda a ser aberto em novembro na Cidade Baixa.
— A ideia é valorizar o protagonismo da mulher em diversas áreas, desde a cozinha e a equipe de atendentes até as pessoas que lá se apresentarão com música ao vivo — promete Michelle.
De fato, a valorização do toque feminino está exposta já na fachada da casinha na João Alfredo, desenhada pela artista visual Ana Scarcelli (com ajuda de Leandro Alves), numa homenagem à deusa Ninkasi.
— Quando as gurias me chamaram para fazer o projeto, eu me senti valorizada como mulher e artista, e ser valorizada em nosso sistema machista não é e nunca foi fácil — diz Ana.
Na agenda do novo bar, estão previstos shows acústicos, de voz e violão, às sextas e aos sábados, sendo reservado o restante da semana para campeonatos de pingue-pongue, sinuca e karaokê.
Confira as principais características dos rótulos da Sapatista
Incendiária – Red ipa – Cerveja com leve sabor de caramelo homenageia Louise Michel, professora, poeta e escritora que participou da Comuna de Paris, em 1871.
Pantera Negra – Imperial stout – Cerveja escura com maltes torrados e sabor de frutas secas celebra Assata Shakur, militante dos Panteras Negras (hoje exilada em Cuba).
Olga – Pilsen – Cerveja clara e leve, de baixo amargor, faz menção a Olga Benário, militante comunista alemã e companheira de Luiz Carlos Prestes, fundador do PCB. Foi morta numa câmara de gás em campo de concentração nazista.
Maria da Penha – Saison com butiá – Cerveja belga, refrescante, moderadamente amarga, criada em homenagem à farmacêutica cearense que deu nome à lei de proteção das mulheres contra a violência doméstica e familiar no Brasil.
Candace – Amber ale com café – Cerveja com leve sabor de caramelo, com rótulo que remete às guerreiras do sul do Egito que detinham o poder político entre os séculos VI a.C. e II d.C.
Filipina – Double ipa – Cerveja de cor dourada, seca e sem aspereza destaca Gabriela Silang, líder de grupo de resistência filipina que lutou contra o império espanhol no século VIII.