Um paraíso ao Deus-dará
Conheça o passado e o presente de Belém Novo, paradisíaco bairro da zona sul de Porto Alegre, com futuro ameaçado pelo avanço da especulação imobiliária
Texto de Paulo César Teixeira e fotos de Luiz Abreu
A gente vive a louvar a beleza das terras alheias e esquece que na nossa terra – bem perto de nós – há paisagens maravilhosas. (...) Forçosamente, aquele paraíso de que a Bíblia fala, se era bom e bonito de verdade, devia ser assim, bem assim como a Villa Balnear Nova Belém. Aqui nesta, porém, há para todos os homens uma vantagem – podem comer todas as maçãs que quiserem.
Corria o ano de 1932 quando a Revista do Globo divulgou, dessa forma, as benesses da Villa Balneária Nova Belém, loteamento residencial recém construído às margens do Morro da Cuíca, em Belém Novo, zona sul de Porto Alegre.
De lá para cá, os encantos da paisagem descrita pela publicação quinzenal, que marcou época na imprensa gaúcha de 1929 a 1967, continua atraindo novos moradores em busca de paz e sossego, além de visitantes vindos de outros bairros e da região metropolitana de Porto Alegre.
Recentemente, jovens adotaram uma clareira junto à mata na Praia do Veludo, nas bordas do Morro da Cuíca, especialmente aos fins de semana, para assistir ao pôr-do-sol, que se reflete sobre as águas do Guaíba.
— É uma região da cidade com vocação para o lazer e a recreação, quem sabe até pudesse se transformar em ponto turístico, mas sofre com o descaso e a falta de cuidado do poder público — afirma a arquiteta e urbanista Clarissa Maroneze Garcia, autora da dissertação Ver o presente, revelar o passado e pensar o futuro: A evolução urbana do bairro Belém Novo em Porto Alegre – RS para o mestrado em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS.
Só que, nos últimos anos, esse quadro de calmaria e abandono vem sendo impactado pela proposta de construção de um condomínio de luxo na antiga Fazenda do Arado Velho. Para se ter ideia, a área de 426 hectares da propriedade equivale à soma dos bairros Moinhos de Vento, Rio Branco, Independência, Bom Fim, Farroupilha e Cidade Baixa.
Até 2010, a fazenda pertencia à família de Breno Caldas, fundador do Correio do Povo. Nos áureos tempos, o proprietário recebia ministros de Estado, que se deslocavam até lá para debater os destinos do Brasil. Em 2010, as terras foram adquiridas pela Arado Empreendimentos, que pretende ali construir 2,3 mil casas acompanhadas de unidades de comércio e serviços, além de chácaras para produção de alimentos.
Como há banhados e nascentes de água, além de fauna e flora, que estão sob proteção dentro da propriedade, o megaempreendimento é alvo de inquérito civil público aberto pela promotoria de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre.
Além disso, o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) identificou pelo menos seis sítios arqueológicos indígenas no local, datados da era pré-colonial. Para completar, a fazenda é reivindicada como território ancestral pelos índios Mbyá Guarani, que solicitaram a demarcação de reserva indígena.
— Há registros que confirmam a ligação dos guaranis com a zona sul do município e, em particular, com a região da Ponta do Arado, onde realizavam, principalmente, atividades de pesca — afirma o antropólogo José Otávio Catafesto de Souza, coordenador do LAE – Laboratório de Arqueologia e Etnologia da UFRGS.
Como se tudo isso fosse pouca coisa, de uma hora para outra, Belém Novo poderá ganhar quase 8 mil novos moradores, o que corresponde a quase 50% da atual população do bairro, estimada entre 14 mil 15 mil habitantes.
— É como construir um novo bairro dentro de um bairro já existente — diz Clarissa Garcia, hoje doutoranda de Planejamento Urbano e Regional na UFRGS.
Nos últimos dias 12 e 13 de agosto, foi realizada audiência pública na sede da CEFAL (Centro dos Funcionários da Assembleia Legislativa) para debater projeto de lei do prefeito Sebastião Mello, que modifica a densidade populacional permitida pelo Plano Diretor na região com a finalidade de regularizar o empreendimento imobiliário da Fazenda do Arado.
Há dúvidas, porém, sobre a consistência do estudo apresentado pela prefeitura acerca dos impactos da operação imobiliária sobre o bairro, conforme a advogada Michele Rian, moradora de Belém Novo.
— É um trabalho de apenas 17 páginas, que não esclarece muitas dúvidas. Não podemos decidir no escuro — expõe Michele, que faz parte do movimento Preserva Arado.
Cavalos, passarinhos, figueiras
No início de 2021, Eduardo Titton, sócio do Agulha (um dos bares mais badalados do Quarto Distrito, na zona norte de Porto Alegre), se mudou para Belém Novo com a mulher, a designer e relações públicas Juliana Macedo, e o filho Chico. Um episódio de violência urbana fez com que a família buscasse novos ares.
— Chico tinha dois meses de vida quando viu pela primeira vez uma arma apontada para a cara — conta Eduardo, que, à época, vivia na parte de cima de um sobrado entre os bairros Floresta e Moinhos de Vento.
Além do assalto a poucas quadras de casa, pesou também na decisão de procurar refúgio na região sul da capital do RS o aperto do orçamento doméstico por conta da pandemia da covid-19, que causou uma drástica diminuição do movimento nos bares em 2020 (a proprietária do sobrado queria até aumentar o valor do aluguel).
Na busca por um novo lar, um dos filtros que o casal utilizou para pesquisar imóveis em sites de imobiliárias foi a opção de um pátio para tomar sol e praticar exercícios. Mas, quando apareceu a casa com parreiral em Belém Novo, a primeira reação foi descartar o anúncio por causa da distância em relação à área central da cidade.
Ainda assim, por via das dúvidas, Eduardo e Juliana pegaram o carro e passaram em frente à residência com a placa de aluga-se na Rua Desembargador Jorge Mello Guimarães. Ao passear pelo bairro, de imediato Eduardo imaginou o filho crescendo entre plantas, passarinhos e cavalos soltos na paisagem quase campestre.
— Hoje, sabemos que a distância do Centro não impede que tenhamos o que é básico por perto, como padaria, supermercado, farmácia, ferragem etc. — reconhece.
Chama atenção também a dinâmica das relações com a vizinhança, muito diferente da que Eduardo e Juliana estavam habituados antes.
Quando realizaram pequenas obras, assim que tomaram posse da moradia, foram surpreendidos pelo morador da casa ao lado, que ofereceu um carrinho de mão para ajudar na empreitada. Outra vizinha trouxe café da tarde para o pedreiro.
Já adaptado ao bairro, Eduardo se desloca diariamente até a parte norte da cidade para administrar o Agulha e o Vasco da Gama, 1020 (outro bar do qual é sócio). Às vezes, sente um certo desgosto de enfrentar o trânsito congestionado quando volta para a residência, no começo da noite, a tempo de dar banho no filho e fazê-lo dormir.
Só que, na manhã seguinte, o empresário recobra o ânimo ao saltar da cama para passear com Chico à beira do Guaíba, que fica a menos de um quarteirão do portão de casa.
— Aí acredito que estou vivendo num paraíso e nunca vou sair de Belém Novo.
A igreja desabou
Cenas de Belém Novo na década de 1930 (Acervo das famílias de Álvaro Oliveira e Paula Krausneck)
Com 28 km² de extensão e distante 26 km do Centro de Porto Alegre, o bairro da zona sul de Porto Alegre teve diferentes nomes ao longo do tempo – Rincão Grande, Arado Velho, Belém do Guaíba, Nova Belém e, finalmente, Belém Novo.
Consta que, na primeira metade do século 18, a região era ocupada pela estância do casal Diogo da Fonseca Martins e Ana Guerra Peixoto, natural de Laguna (SC). A propriedade ganhou o nome de Morrinho ao ser adquirida, por volta de 1860, por Inácio Antônio da Silva, considerado o fundador de Belém Novo
A ascensão de Belém Novo está ligada ao declínio de Belém Velho, que foi a primeira sede da Freguesia Nossa Senhora de Belém, como aponta a arquiteta Clarissa Garcia em sua pesquisa de mestrado.
Na segunda metade do século 19, o declínio de Belém Velho se configurou com o abandono da igreja do arraial, que não só ficou sem vigário a partir de 1858, como desabou parcialmente na madrugada de 22 de fevereiro de 1872, por causa de defeitos estruturais do prédio.
Dá para imaginar o alvoroço.
Liderados por Inácio Antônio, os moradores do Arado Velho aproveitaram a ocasião para convencer o governo da Província a transferir a freguesia para as margens do Guaíba.
É claro que havia também uma justificativa econômica para a mudança.
Belém Velho não tinha porto, ao contrário de Belém Novo.
De barco, viajavam pelas águas do Guaíba produtos como trigo, farinha de mandioca, tijolos e telhas, além de cavalos, mulas e éguas, para comercialização em praças públicas de Barra do Ribeiro, Tapes, Rio Pardo, Triunfo e Rio Grande.
Outras mercadorias seguiam pela antiga Estrada da Cavalhada para feiras a céu aberto nos campos da Azenha, em Porto Alegre.
A princípio, o novo núcleo urbano deveria se assentar no alto do Morrinho, conforme propôs o engenheiro Antônio Telles de Freitas, enviado ao local para escolher o lugar mais apropriado para a nova freguesia.
Só que justamente ali estava situada a casa de Inácio Antônio. Ainda por cima, se fosse aceita a sugestão do engenheiro, a praça brotaria dentro da olaria, uma das principais atividades econômicas do fazendeiro.
Com o impasse, o projeto adormeceu em gavetas dos órgãos públicos por três anos, até que o estancieiro propôs que a vila fosse construída pouco mais ao norte, em terras que ele próprio doou junto com uma quantia de 500 mil réis.
Nem todo mundo concordou. Um manifesto de 153 moradores alegou que as áreas sugeridas eram baixas e muito próximas ao rio, mas a vontade de Inácio Antônio se impôs. Assim, no dia 14 de fevereiro de 1880, o vice-presidente (na ocasião, ocupando interinamente a presidência) da Província, Carlos Thompson Flores, decretou a transferência da freguesia Nossa Senhora de Belém para o Arado Velho.
Nascia Belém Novo.
Em abril daquele ano, a igreja-matriz, a praça central e o trapiche às margens do Guaíba se iluminaram para comemorar a chegada da imagem de Nossa Senhora de Belém, trazida de Belém Velho.
O jornal A Reforma convidou o povo de Porto Alegre para embarcar em vapores da Companhia Fluvial a fim de participar do acontecimento “longamente almejado pelos belemnistas, que veem nesse acto uma nova era de prosperidade para aquela ubérrima parte do globo”.
Em tempo: Inácio Antônio da Silva morreu em 1915, aos 86 anos, sendo enterrado no cemitério de Belém Novo, que ele próprio mandou construir.
Ouriço no fio de luz
Uílson Xavier, o Wilbor, acorda toda a manhã com a cantoria dos pássaros junto à janela do quarto.
Um deles é o cardeal, que eriça o topete vermelho ao soltar a voz. Outro é o aracuã, de canto espalhafatoso. Tem ainda a saracura, ave sagrada dos guaranis.
— Os índios retiram as patas da saracura para fazer colares, como amuletos de cura — conta o dono da casa localizada na Rua Heitor Vieira, para lá da “curva da morte”, como o povo chama o desvio para a estrada que conduz até o Lami..
Nascido e criado em Belém Novo, ele tem ainda a companhia do ouriço, que cruza o pátio para subir no poste e correr pelos fios de eletricidade até o outro lado da rua, atrás de frutas nas copas das árvores.
Quando Wilbor veio ao mundo, o pai, Vilson, achou que era hora de pisar em terra firme para ficar mais perto da criança e da mulher, Horacina. Assim, abandonou a pesca para trabalhar no setor de limpeza urbana da prefeitura. Só que, depois que se aposentou, quis voltar para o Guaíba e o destino fez com que, tragicamente, morresse afogado.
Vilson era um homem curioso. De tanto ouvir as lendas sobre a existência de ouro deixado pelos jesuítas na região da Fazenda do Arado, construiu um detector de metais caseiro para achar o tesouro. Certo dia, a geringonça soou o alarme.
— Talvez fosse um prego ou algum pedaço de metal enterrado. O fato é que ele escavou até encontrar machados de pedras e vasos de cerâmicas dos índios. Estavam inteirinhos! — relata o filho.
Os achados contribuíram para a comprovação do sítio arqueológico indígena no Arado. Bem que Wilbor tentou doá-los para o MARGS ou o Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo, mas desistiu quando soube que ele próprio teria que conduzi-los até as instituições.
— Imagina a responsabilidade de carregar peças que podem ter até 800 anos!
Wilbor herdou a curiosidade do pai. Mas, em vez de remexer a terra em busca de tesouros perdidos, se dedica a pesquisar a história de Belém Novo. Tem guardados livros-caixa de um antigo armazém do bairro, datados de 1902 e 1921.
— É uma preciosidade com nomes de antigos moradores e o que eles consumiam na época — conta, entusiasmado.
Sobre o presente, o que mais incomoda é o desapreço do poder público com Belém Novo. Ele reclama dos serviços precários e da estagnação econômica do bairro:
— Belém Novo já teve fábricas de papelão e termômetros. Hoje, é a menina dos olhos da especulação imobiliária — lamenta.
Por sinal, Wilbor está sendo processado pela empresa responsável pelo projeto imobiliário na Ponta do Arado sob a acusação de incentivar a invasão da propriedade pelos índios.
— Tive que pedir auxílio à Defensoria Pública para me socorrer — relata ele.
Wilbor diz que a sua relação com os índios se dá numa dimensão espiritual e bem longe daqui. Conta que participou de rituais com plantas de poder com cariris e pataxós em outras regiões do Brasil.
— Em busca da ancestralidade, me encontrei no xamanismo — afirma.
As ruínas do Poleto
Se, ao final do século 19, as pessoas eram convidadas a visitar Belém Novo para participar de festas religiosas, nas primeiras décadas do século 20, o bairro foi adotado como balneário – do latim balnearis, a palavra remete ao ato de banhar-se.
— No Brasil, o prazer de nadar ou mergulhar se popularizou apenas no início do século 20. Antes disso, o banho de mar era mais indicado como terapia para a cura de males do corpo — salienta Clarissa Garcia.
Cabe lembrar que, na época, os porto-alegrenses não tinham fácil acesso às praias marítimas. Muito antes pelo contrário: na década de 1910, uma viagem até Torres, por exemplo, durava até dois dias pelas más condições das estradas de chão batido.
Não é de admirar que a proximidade das praias de água doce de Belém Novo tenha estimulado o lançamento de loteamentos como o Villa Balneária Nova Belém, inspirado no modelo europeu de “bairros-jardins”, com ruas curvilíneas ladeadas de pracinhas.
No projeto, constavam equipamentos que nunca foram construídos, como um estádio esportivo de 12 hectares (“um dos maiores do mundo”, destacou a propaganda do condomínio), além de aquário, piscinas de natação e torres de saltos.
Em compensação, a escadaria de pedestres até o topo do Morro da Cuíca está lá até hoje, assim como a Avenida Beira-Rio, a principal de Belém Novo, ambas previstas na planta do loteamento.
O Restaurante Leblon, junto à atual Praça Almerindo Lima, também constava na proposta do Villa Balneária Nova Belém.
A obra é do italiano Armando Boni, responsável pela Concha Acústica do antigo auditório Araújo Vianna, na Praça da Matriz (demolido para a construção da Assembleia Legislativa), o Cemitério São Miguel e Almas e a Livraria do Globo, na Rua da Praia.
O restaurante de Belém Novo ficou mais conhecido como Poleto, em função do sobrenome do proprietário, Almiro Poleto, que administrou a casa por cerca de 30 anos. Durante esse tempo, foi um dos pontos de convívio social de moradores e veranistas. Até bailes de carnaval aconteciam lá.
Depois que o Poleto fechou, há quatro décadas, o prédio em ruínas passou a fazer parte da paisagem da orla, quase como uma atípica atração turística. Em 2012, a prefeitura chegou a apresentar um projeto de revitalização da estrutura, como parte de ambicioso plano de retomada do desenvolvimento de Belém Novo, que jamais saiu do papel.
A área do restaurante foi cercada em outubro de 2020 por tapumes para a construção de duas linhas adutoras, que avançam dois quilômetros Guaíba adentro para ampliar o sistema de captação de água. Após a conclusão da obra, a prefeitura promete devolvê-la com equipamentos de lazer, como bancos e churrasqueiras, além de brinquedos infantis.
Consultada por Rua da Margem, a assessoria de imprensa do Paço Municipal informou que “o prédio do antigo restaurante deverá passar por estudos técnicos quanto às condições estruturais da edificação. Em havendo possibilidade, serão propostas parcerias (com a iniciativa privada) para recuperação”.
Outro loteamento de casas de veraneio lançado na década de 1930 foi o Belém Novo Balnear, obra do engenheiro belga Charles de Baumont, que projetou também a Vila Jardim, na zona norte de Porto Alegre, igualmente repleta de áreas verdes.
Na planta do Belém Novo Balnear, se destacava o Hotel Cassino, construído no topo do Morrinho, onde ficava a residência de Inácio Antônio.
Hoje desativado, o Cassino se vangloriava de oferecer “38 quartos, amplo salão de refeições, hall elegante, quadras esportivas, instalações elétricas próprias e ótimas instalações sanitárias”. Além de turistas, atraía casais em lua de mel e também times de futebol, como Internacional e Renner, que usavam o hotel como local de concentração antes das partidas.
No esplendor de Belém Novo como balneário, a vida cultural era animada. Para quem não sabe, o bairro já teve dois cinemas de calçada, os Cine Arte e Belgrano. Nesta época, os mais ricos promoviam garden parties em mansões como a de endereço bem no comecinho da Avenida Beira-Rio, em frente à atual Praça Desembargador Vieira Pires.
Há apontamentos em redes sociais indicando que o casarão pertenceu a Ricardo Eichler, dono do requintado bar Cotillon (fundado em 1949 no primeiro andar do Edifício Paraguay, na antiga Rua 10 de novembro, atual Salgado Filho, no Centro de Porto Alegre).
Em postagem no Facebook, Neuza Barreto conta que frequentou a casa quando criança, por ser amiga das filhas do proprietário.
— Tinha uma sala com piano e sofás estofados com veludo inglês – anotou Neuza, lembrando que, depois, o imóvel foi alugado para uma casa geriátrica e, atualmente, encontra-se abandonado.
Na mesma postagem, Raquel Marques Schorn comenta que a madeira entalhada nas paredes do salão de festas veio da Itália, assim como o profissional contratado para montá-la.
Quando, então, teve início a decaída do balneário de Belém Novo?
Certamente, a perda do glamour já vinha se registrando nos anos 1960, com a queda de qualidade dos serviços públicos, como iluminação e limpeza urbana, mas ela se acentuou com o avanço da poluição sobre as águas do Guaíba pela falta de tratamento de esgoto.
A gota d’água foi a inauguração da Freeway (autoestrada de Porto Alegre a Osório), em setembro de 1973, quando os porto-alegrenses ganharam um atalho asfaltado e de alta velocidade para chegar às praias do Litoral Norte.
A novidade causou “uma perda da função balneária do bairro e uma dificuldade em adequar-se a uma nova atividade econômica, pois sua localização estava distante também do eixo de crescimento que se dava ao norte de Porto Alegre e onde a atividade industrial desenvolvia-se amplamente”, pontua a arquiteta Clarissa Garcia.
Paisagem na janela
Criado em Santiago do Boqueirão, na região das missões jesuítas, o fotógrafo Luiz Abreu gosta de morar em casas com “pátio para criar cachorros”. Ao se mudar para Porto Alegre, na década de 1970, viveu na Cidade Baixa, bairro que, à época, tinha “cara de interior”.
Em meados dos anos 1990, com a mulher, a jornalista Rosina Duarte, comprou um terreno na Volta do Veludo, onde instalou uma casinha pré-fabricada.
— Como existia uma favela ali perto, as ditas “pessoas de bem” se sentiam incomodadas e, com isso, os preços dos terrenos eram baratinhos. Pura bobagem. Convivi muito bem com aquela gente que morava nos arredores — diz Abreu.
No início, a principal dificuldade era o transporte. Rosina trabalhava em São Leopoldo e precisava pegar três ônibus para ir e três para voltar. Não raramente, os coletivos quebravam no meio do caminho. Já Abreu se virava com o fusca. Aliás, teve três fusquinhas.
— Um deles foi roubado em plena Praça da Matriz. Fiquei tão brabo que resolvi comprar outro. Vermelho, para provocar. Eu chamo de Pitanguinha. É um modelo 1994, lançado pelo Itamar (quando ocupou a Presidência da República, Itamar Franco pediu à Volkswagen que voltasse a fabricar o modelo), que está comigo até hoje.
Amaro Abreu, único filho do casal, estudou na Escola Estadual de Ensino Fundamental Evarista Flores da Cunha, plantada no miolo da Praça Inácio Antônio da Silva.
— Amigos diziam que era um erro, porque as crianças precisam estudar em colégio particular para passar no vestibular. O que posso dizer é que, para o Amaro, foi uma experiência e tanto. Se perdeu em competitividade, ganhou em vida.
Artista reconhecido internacionalmente pelos grafites que desenha em ambientes urbanos (tem painéis até nas ruínas do Muro de Berlim), Amaro hoje mora no Centro da capital gaúcha.
Junto ao Veludo, ficaram os pais, com três cachorros – Amarelão, Cuíca e Butiá – e cinco gatos, além do bugio que, volta e meia, aparece em galhos trançados na paisagem junto à janela.
— Mudar para cá foi a melhor escolha que podia ter feito — assegura Abreu, que tem no quintal de casa a matéria-prima para produzir imagens de primeiríssima linha, como é possível constatar nas fotografias que ilustram essa reportagem do Rua da Margem.