Naquele tempo do Julinho
A história do colégio que guardou o mundo junto à porta da sala de aula para não parar no tempo e estar sempre aberto a mudanças
O apelido foi dado em meados da década de 1940 por rivais de campeonatos estudantis de futebol.
Certa feita, a equipe de alunos do Colégio Júlio de Castilhos foi recebida pela torcida adversária com vaias e gritos de “Julinho! Julinho! Julinho!”, numa tentativa de apequenar o ânimo dos guris para a pelada. Só que a gozação surtiu efeito contrário e, diante do estrilo com o diminutivo, os atletas se sentiram ainda mais motivados. Como resultado, se sagraram campeões do torneio.
Depois disso, a expressão pejorativa se transformou num apelido carinhoso, que identifica uma das mais tradicionais instituições de ensino do RS, berço de personalidades políticas, intelectuais e das ciências que participaram ativamente da vida brasileira durante mais de um século.
Uma guardiã protege o passado e o presente do estabelecimento da rede estadual de ensino – a Fundação de Apoio ao Colégio Júlio de Castilhos, que em setembro completou 19 anos de atividades. É uma das raras entidades privadas de apoio a uma escola pública do País.
Uma de suas tarefas é preservar e divulgar a história centenária do Julinho, uma história repleta de exemplos que fortalecem uma ideia republicana de democracia e liberdade.
Até a década de 1980, o Júlio de Castilhos foi considerado o “colégio padrão” do RS.
O reconhecimento se devia não só à excelência do ensino, mas também ao ambiente político e cultural que transformou a escola num reduto de resistência frente a ideologias, autoridades e normas que, de algum modo, confrontassem o processo democrático e os direitos sociais e individuais.
– No século passado, o colégio formou as principais lideranças políticas do Estado, observa Ione Antonieta Osório, ex-professora de História, que atualmente ocupa a vice-presidência da Fundação.
De fato, a relação de líderes políticos inclui desde Leonel Brizola (que participou da primeira diretoria do grêmio estudantil, em 1943) até Paulo Brossard de Souza Pinto, passando por Ibsen Pinheiro, Antonio Britto, Germano Bonow e Luciana Genro, entre outros.
Já a lista de escritores e jornalistas abrange Moacyr Scliar (que dá nome à biblioteca da escola), Paulo Sant’Ana, Ivette Brandalise, Tatata Pimentel, Caco Barcelos, Antonio Hohlfeldt, Sérgio Jockymann e Ruy Carlos Ostermann, além de Dante de Laytano e Joaquim José Felizardo.
Leões em labaredas
O Julinho surgiu como curso preparatório para a Escola de Engenharia ao apagar das luzes do século XIX.
Em 23 de março de 1900, se constituiu como colégio com a designação de Gymnásio do Rio Grande do Sul. Oito anos depois, passou a se chamar Instituto Gymnasial Júlio de Castilhos para homenagear o principal político do RS da época de fundação da escola. Em 1923, virou simplesmente Instituto Júlio de Castilhos.
A denominação atual, Colégio Estadual Júlio de Castilhos, é de 1942.
A princípio, as aulas eram realizadas no andar térreo da Escola de Engenharia. Com a crescente adesão de estudantes, muitos dos quais vindos do interior do Estado, atraídos pela fama de boa qualidade do ensino, ficou evidente que se fazia necessário erguer uma edificação própria para o ginásio.
Em 1911, foi inaugurada a primeira sede, um imponente palácio em estilo renascentista alemão projetado pelo engenheiro Manoel Barbosa Itaqui. Postava-se na Avenida João Pessoa, em frente à antiga Praça Independência (atual Praça Argentina) e ao lado da Escola de Engenharia. No local, hoje está a Faculdade de Economia da UFRGS.
Além de formar sucessivas gerações de porto-alegrenses, o Julinho também foi responsável por fornecer o primeiro serviço de hora certa à população nas ruas da capital gaúcha.
Em 1912, por obra dos técnicos do antigo Instituto Astronômico e Meteorológico (Observatório Astronômico da UFRGS na atualidade), uma lâmpada encarnada foi posta sobre a abóboda de telhas metálicas que cobria o bloco central do edifício.
Pontualmente, a lâmpada acendia-se às sete horas e 55 minutos da noite para apagar-se cinco minutos depois, indicando que eram oito horas. Em 1918, o sinal foi transferido para o Paço Municipal e, em ocasiões posteriores, para a Confeitaria Rocco e a Casa Masson. Até a II Guerra Mundial era esse o sistema público que informava a hora certa para a cidade.
Nos fundos do colégio, os alunos tinham aulas de ginástica sueca e alemã, além de instrução militar, que abrangia desde exercícios de tiro de fuzil até esgrima de baionetas. As atividades inspiravam-se nos ditames do positivismo, ideologia que predominava no Estado no começo do século XX – não à toa, Júlio de Castilhos foi um dos principais ideólogos positivistas.
Talvez pela índole militar das aulas práticas, criou-se a falsa ideia de que o Instituto Júlio de Castilhos fosse uma escola exclusivamente masculina.
Não é verdade, como constatou a dissertação O Ensino de Matemática no Instituto Júlio de Castilhos: um Estudo Sobre as Provas do Curso Complementar, de Antonio Cesar dos Santos Esperança, escrita para o PPG em Ensino de Matemática da UFRGS, em 2011.
Ao pesquisar os livros de matrícula, Esperança – que foi diretor do Julinho no começo da década de 2010 – comprovou a presença de meninas já em 1904, apesar da maioria esmagadora de rapazes nos bancos escolares. Inclusive, a primeira mulher contratada como professora em 1912 tinha estudado no colégio alguns anos antes. A ex-aluna Pepita Leão foi chamada para dar aulas de Leitura, Contabilidade, Ditado, Geografia e Caligrafia.
A primeira fase da história da instituição desaguou num infortúnio. O palácio do Julinho foi engolido por labaredas na madrugada de 16 de novembro de 1951. O incêndio pegou de surpresa os estudantes, que se preparavam para iniciar os exames finais na manhã seguinte. Léa Oliveira Teixeira, que completava o curso clássico naquele ano, lembra-se de receber em casa a visita inesperada da colega Lia, que trazia um recado:
– Pode parar de estudar, porque não vai ter prova. O colégio pegou fogo.
As provas pendentes de 1951 foram feitas no Arquivo Público do Estado, na Rua Riachuelo, onde o Julinho funcionaria em caráter provisório durante os sete anos seguintes.
As histórias a respeito do sinistro são comoventes. As chamas ainda ardiam por volta de 11 horas da manhã, quando uma brigada de incêndio improvisada sob o comando do aluno Ney Moura invadiu o saguão de entrada para resgatar os dois leões de cobre oxidado, que guarneciam a escadaria de mármore, bem como o busto em bronze de Júlio de Castilhos.
Sãs e salvas, as esculturas estão de prontidão até hoje no hall de entrada da sede atual do Julinho, junto à Praça Piratini, no bairro Santana.
além de pátios e muros
O dia 29 de junho de 1958 foi especial para os brasileiros – na oportunidade, Pelé, Garrincha & Cia. conquistaram para o País, pela primeira vez, a Copa do Mundo de futebol, na Suécia.
Para os julianos, foi mais especial ainda. A data marcou a inauguração do novo prédio do colégio. A construção de três andares marca como poucas a implantação da arquitetura modernista em Porto Alegre. Desde 2016, está tombada como patrimônio histórico da cidade.
O edifício foi projetado pelo casal de arquitetos Demétrio e Enilda Ribeiro com a ideia de integração à paisagem externa. A estrutura sustentada por pilares e paredes envidraçadas, que lhe conferem leveza e transparência, se abre generosamente com suas largas sacadas para a praça, as ruas e os prédios ao redor. De tal modo que o cenário exterior parece fazer parte do ambiente interno do colégio.
Segundo Demétrio Ribeiro (falecido em 2003, aos 87 anos), já ao final da década de 1958 o modelo de escolas enclausuradas em muros e pátios não mais servia.
Em contraponto, ele estava convencido de que a abertura do novo Julinho para a paisagem do lado de fora impediria que os alunos “parassem no tempo e cristalizassem suas opiniões, pois o mundo estaria na porta da sala de aula exigindo mudanças”.
A bem da verdade, o Julinho mostrava-se aberto aos ventos impetuosos da modernidade desde quando funcionava na Avenida João Pessoa.
Léa Teixeira afirma que o tempo em que frequentou a escola contribuiu como nenhum outro período para a sua formação pessoal e intelectual. Antes de pisar pela primeira vez na escola como estudante, em 1949, desfrutava de uma “vida pacata”, típica das moças de classe média de sua época.
– O Julinho mudou a minha cabeça, muito mais do que a opção que adotei, anos mais tarde, de trabalhar fora de casa {como professora de Português e Inglês, inclusive no próprio Julinho, a partir de 1958}, que não era comum para as mulheres.
O depoimento de Léa mostra que a vocação do Júlio de Castilhos como palco de liberdade de pensamento e até mesmo de contestação aberta aos poderes constituídos se manifestou muito antes da turbulenta década de 1960.
– De repente, algum aluno subia num banco ou classe no meio do saguão durante o recreio para discursar contra a direção do colégio. Eu ficava abobada, recorda, referindo-se a cenas que presenciou nos anos 1950.
Além da agitação política, o Julinho cedo viveu também uma ebulição cultural e artística.
Léa recorda da figura do jovem ator e diretor Walmor Chagas à frente de uma mesa num canto do pátio externo, concentrado em selecionar o elenco de uma peça teatral em vias de ser montada na escola. Na lembrança dela, Walmor aparece como um rapaz esquálido e um tanto mal-humorado.
As forças acumuladas nas décadas anteriores explodiram nos anos 1960, quando o Julinho foi palco da revolução de costumes que se abateu sobre o planeta.
Conta-se que, certo dia, inconformado com a moda de cabelos longos adotada por um número cada vez maior de meninos, um diretor do colégio convocou um barbeiro para cortar as melenas. A poda foi feita numa sala de aula especialmente requisitada para aquela finalidade.
Com a radicalização do cenário político, em especial depois do golpe militar de 1964, o Julinho passou a alojar as lideranças mais combativas do movimento estudantil em Porto Alegre.
Entre elas, estava Luiz Eurico Lisbôa, o Ico, irmão do cantor e compositor Nei Lisboa, expulso do colégio por causa da atividade política.
Ico foi morto pelas forças de segurança do regime militar aos 24 anos de idade, em 1972. Sete anos depois, o corpo foi localizado no Cemitério Dom Bosco, no bairro de Perus, em São Paulo, onde fora sepultado pelos agentes da repressão com nome falso – Nelson Bueno. Foi o primeiro desaparecido político que teve os restos mortais identificados na década de 1970.
Atualmente, o ex-aluno tem a memória eternizada no auditório Luiz Eurico Lisbôa, no bloco B da escola. Alem disso, Ico nomeia ruas de Porto Alegre, Caxias do Sul (onde nasceu) e Criciúma.
Guasca de fora
Por sinal, não apenas na política o Júlio de Castilhos esteve à frente de movimentos marcantes e inovadores ao longo da história do RS e do País.
Nem todo mundo sabe que a Semana Farroupilha nasceu graças à mobilização de alunos que criaram o Departamento de Tradições Gaúchas do Julinho. Entre eles, figuravam João Carlos D’Ávila Paixão Côrtes e Luiz Carlos Barbosa Lessa, os principais representantes da promoção do folclore do Sul no século passado.
Na casa dos 20 anos de idade, na década de 1940 Paixão Côrtes frequentava as aulas pilchado. “Quando fazia frio, ia de poncho. Chovia, botava um chapéu”, contou ao Sul21, em 2010. Os colegas zombavam: “Olha o guasca de fora”.
– Naquela época, vestir-se como gaúcho era quase proibitivo. Até mesmo a pessoa era presa, pois entendiam ser alguém de maus antecedentes, apesar de não realizar absolutamente nada de errado, comentou Paixão (que morreu em agosto deste ano, aos 91 anos), em entrevista ao Jornal do Turismo, em 2008.
E as origens da Semana Farroupilha? Essa história merece ser recontada.
No dia 7 de setembro de 1947, três rapazes (entre eles, Paixão Côrtes) montados em cavalos e empunhando as bandeiras do Brasil, do RS e do Julinho retiraram uma centelha da Pira da Pátria no Parque da Redenção para trazê-la até o saguão do colégio, onde ela permaneceu acesa até o dia 20 daquele mês. Assim, deram início às comemorações farroupilhas, que a partir daí se repetiriam a cada ano.
O Julinho foi também pioneiro ao abrigar o primeiro grupo ecológico criado dentro de uma escola do RS, o Kaa-Eté (mata virgem, no idioma dos guaranis), em abril de 1979, por cerca de dez alunos com idades entre 15 e 17 anos.
A fundação do Kaa-Eté coincide com a primeira greve do magistério no Estado após o golpe militar de 1964.
Com as aulas paralisadas, os alunos se envolveram numa série de atividades extra-classe, como a palestra do agrônomo José Lutzenberger, um dos precursores do movimento ambientalista brasileiro, que retornava ao País após um período no Exterior.
Entusiasmados com o que ouviram da voz de Lutz, os estudantes procuraram a professora Neiva Schäffer de Geografia, com a proposta de criação do grupo ecológico, do qual ela foi a primeira coordenadora.
– O Kaa-Eté expressou o envolvimento dos jovens alunos com um tema que abria um viés para uma participação política mais ativa, que de outro modo seria inviável naquele período {por conta das restrições impostas pela ditadura militar}, salienta Neiva.
Além de produzir murais, jornais, ciclos de palestras, gincanas, jogos e exposições, o Kaa-Eté plantou mudas em praças públicas e participou de manifestações de rua do movimento ecológico. O grupo atuou de modo ininterrupto até 1992. Hoje, encontra-se desativado.
Toda essa rica histórica é guardada com zelo e carinho pela Fundação de Apoio ao Colégio Júlio de Castilhos, que também não poupa esforços para ajudar a manter o patrimônio físico da instituição, em constante desgaste devido à precariedade das políticas públicas em vigor. A entidade foi responsável, por exemplo, pela informatização da biblioteca e a reforma do auditório, entre outras contribuições. Além disso, ajudar a divulgar e contribui financeiramente com a Banda Marcial Juliana, retomada em 2006 por iniciativa do ex-aluno e médico Carlos Rizzonapós, após um período de inatividade que durou 32 anos.
Com a ex-professora de Física Márcia Lopes da Costa à frente da diretoria executiva e o advogado e ex-aluno Marciano Lisbôa da Silva na presidência do Conselho Deliberativo, a Fundação conta hoje com cerca de 600 associados – entre ex e atuais estudantes e professores, além de colaboradores que não passaram pelo colégio –, os quais compartilham o sentimento de fascínio e orgulho pela trajetória juliana:
– É uma paixão centenária por essa instituição que move a todos nós, diz a professora Neiva Schäffer.
Essa paixão está presente também na canção Aquele Tempo do Julinho, de Nelson Coelho de Castro, composta em 1974 e gravada em disco em 1981, que destaca o protagonismo da escola num período histórico conflituado, ao mesmo tempo em que traduz a relevância do colégio na cena política e cultural do País.
Ouça a canção aqui.