A despedida do Dinarte
Figura lendária da noite de Porto Alegre, garçom do Bar do Beto aposenta a bandeja e se prepara para lançar biografia
A data da despedida está marcada para 22 de outubro, quando a estreia de Dinarte Valentini como garçom do Bar do Beto vai completar exatos 26 anos.
– A ideia é dar um abraço nos amigos que fiz ao longo desses anos, antecipa a figura lendária da noite de Porto Alegre, que passará a se dedicar exclusivamente à advocacia, profissão na qual já vem atuando desde 2011.
Ele promete que vai ser uma noite de adeus “entre aspas”, já que pretende, sempre que puder, dar uma passadinha no Bar do Beto após sair do escritório para “tomar um chope e reencontrar a turma”.
Na noite de confraternização, serão feitas as vendas antecipadas da biografia de Dinarte, a ser lançar em dezembro pelo jornalista Marcello Campos (*), um dos mais atentos e minuciosos pesquisadores da cena urbana de Porto Alegre.
No caso de Dinarte, não faltarão boas histórias para contar.
Antes de equilibrar a bandeja do Bar do Beto, o geminiano nascido em 23 de maio de 1970 em Doutor Ricardo – na época, um distrito rural de Encantado (a emancipação do município é de 1967) –, no Vale do Taquari, gastou boa parte da vida manejando uma enxada na propriedade de 25 hectares dos pais, Seu Paulino e Dona Anair.
A família de ascendência italiana plantava soja, milho, feijão e arroz até render-se ao assédio da indústria fumageira.
– Eu duvido que exista cultura que absorva tanto veneno quanto a da plantação de fumo. Fulmina a saúde de qualquer um, observa Dinarte, com conhecimento de causa.
Não é de admirar que, aos 17 anos, ele tenha decidido tentar a sorte na capital do Estado.
– Não éramos pobretões, nunca nos faltou comida na mesa. Mas ali eu não via futuro.
As perspectivas em Doutor Ricardo eram mesmo escassas.
O Vale do Taquari é rasgado por morros e aclives, o que dificulta o uso do trator nas lavouras – é preciso puxar o carro de boi nas encostas para arar a terra. Fora isso, o solo é cheio de pedregulhos. Ademais, a propriedade familiar era insuficiente para assegurar renda aos cinco filhos de Seu Paulino e Dona Anair.
Um camarada da região que tinha conseguido emprego de garçom na churrascaria São Rafael, em Porto Alegre, mandou avisar:
– Pode vir que abriu vaga aqui.
Recebida a mensagem, Dinarte criou coragem para pedir carona ao tio Dilvo, que por coincidência estava vindo de carro para Porto Alegre.
Na boca da noite
Tio Dilvo deixou Dinarte na calçada em frente à churrascaria, na Avenida Protásio Alves, no final de uma daquelas tardes abafadas de fevereiro.
Antes que a boca da noite o engolisse, o guri lembrou-se da frase que ouvira do pai:
– Já que queres tanto ir, então, vai. Mas não me volta mais para casa.
É verdade que Seu Paulino havia relutado até o último instante em permitir que o filho se mudasse para a capital, mas a frase não era expressão de raiva ou desabono. Dinarte a interpretou mais como um incentivo para não desistir facilmente dos planos que havia traçado.
Seja como for, a voz do pai ainda ressoava em sua mente quando um dos donos da São Rafael explicou:
– Infelizmente, não vou precisar dos teus serviços. Tínhamos, de fato, duas vagas, mas ontem chegaram três rapazes vindos de Encantado e acabei empregando os três.
Com a malinha nas mãos, o jovem se viu sozinho naquela longa avenida, que parecia não ter fim, esticando-se do desconhecido até o infinito. Suava em bicas, não tanto pelo calor sufocante, mas de pavor. Até então, Dinarte mal conhecia as ruas de Encantado.
– No interior, se precisasse de médico, tinha que percorrer 30 quilômetros. Só ia até a cidade em casa de extrema necessidade.
Menos mal que o pessoal da churrascaria deixou que ficasse alguns dias no alojamento do segundo andar até arrumar um teto. O local servia para abrigar novos funcionários procedentes do interior do Estado. A sorte virou alguns dias depois, quando um dos garçons da São Rafael foi demitido. Com isso, finalmente, abria-se uma vaga para ele. Por volta das dez da noite, recebeu a notícia:
– Pode te vestir e descer para trabalhar.
Dinarte ficou apenas dez meses empregado na São Rafael, mas a passagem pela churrascaria marcaria sua vida para sempre. Não fosse por outro motivo, lá conheceu Nestor Fontana, que também atuava como garçom e com o qual estabeleceria estreitos vínculos profissionais no futuro.
Foi Nestor quem fez o convite para que ambos se transferissem para Balneário Camboriú, em Santa Catarina, onde o Kakfa Bar, de Porto Alegre, tinha aberto filial. Em território catarinense, trabalharam também no Chico’s Bar, na Avenida Beira-Norte, em Florianópolis.
Em 1991, Dinarte enjoou da maresia e retornou a Porto Alegre para atender os clientes do Tia Dulce, restaurante famoso pela sopa de cebola que – rezava a lenda – levantava até defunto nas horas tardias da madrugada.
No período, o restaurante ocupava um casarão da Avenida Cristóvão Colombo em frente à antiga fábrica da Brahma (onde hoje se localiza o Shopping Total), que tinha alojado no início dos anos 1970 o Batelão, bar e restaurante de Lupicinio Rodrigues.
No Tia Dulce, certa feita apareceu Batista Fontana, irmão de Nestor. Ele havia se desfeito da lancheria Chaparral, na Rua Riachuelo, no Centro Histórico, para adquirir o Bar do Beto. Batista recorda-se bem daquela noite:
– Eu tinha sido convidado para uma festa oferecida pela Brahma aos donos de botecos da cidade. Na saída, atravessei a Cristóvão Colombo para falar com o Dinarte, do qual tinha boas referências dadas pelo Nestor.
Talvez para testar o garçom, o empresário a princípio não abriu o jogo. Sentou-se como um cliente qualquer e pediu a sopa de cebola acompanhada de um cálice de vinho tinto. Já com a conta nas mãos, chamou Dinarte em voz baixa:
– Estou precisando de alguém para trabalhar comigo no Bar do Beto. Tenho recomendações muito boas do Nestor a teu respeito. Topas?
O Bar do Beto original, que ficava na esquina da Avenida Venâncio Aires com a Rua Vieira de Castro, no bairro Farroupilha, foi um dos botecos mais cults de Porto Alegre. Frequentado por atores, músicos, escritores e jornalistas, que se misturavam a figuras folclóricas da noite, tinha o charme e a autenticidade que só botequins do tipo pé sujo adquirem.
Fundado em 1952 por José Alberto Cravo – o Beto que emprestou o apelido ao bar –, tinha passado pelas mãos de um uruguaio conhecido como Zé Careca antes de ser comprado por Batista ao final de 1989. Algum tempo depois, os irmãos Nestor e Fabiano aderiram ao empreendimento.
Entre as figuras ilustres que visitaram o antigo Bar do Beto, está o escritor uruguaio Eduardo Galeano (falecido em 2015), autor do clássico As Veias Abertas da América Latina, como comprova o registro eternizado pela lente do fotógrafo Luiz Eduardo Robinson Achutti na imagem abaixo (a foto é de 1985).
Torpedos na mesa
O cenário do velho Bar do Beto está guardado com carinho na memória de Dinarte:
– Como as janelas que davam para a Vieira de Castro ficavam trancadas, a fumaça dos cigarros subia pelo pé direito de quatro metros das paredes e flutuava numa nuvem espessa. Ninguém dava bola. Sinto saudades, mas as coisas evoluem, resigna-se.
Em 1994, o bar se transferiu para o lado oposto da Venâncio Aires, inicialmente para o prédio que tinha recebido antes um restaurante de comida chinesa. Em seguida, os irmãos Fontana compraram três casas velhas das imediações para demoli-las e construir o amplo e confortável bar e restaurante que se mantém até hoje.
Dinarte acompanhou as mudanças de endereço e perfil do Bar do Beto ao longo de quase três décadas, mas pouca gente se lembra de que esse percurso teve um breve desvio.
Corria o ano de 1997 quando o garçom resolveu pedir as contas para abrir o Dinarte Bar & Restaurante, na Venâncio Aires, mas algumas quadras adiante, para lá da esquina com a Avenida João Pessoa.
Os donos do Beto não ficaram magoados. Pelo contrário, resolveram dar uma força, emprestando 80 litros de bebidas para que o ex-funcionário desse o pontapé inicial no negócio.
Apesar da ajuda, o bar do Dinarte não durou mais do que um ano. Ele atribui o fracasso à localização geográfica – o boteco ficava embaixo de uns inferninhos de má reputação. Ao meio dia, até que registrava movimento, entre 120 a 150 refeições diárias.
– Mas, à noite, só os brothers mesmo apareciam para dar uma força. Estou certo de que teria dado certo em outro local, lastima Dinarte.
Como não adianta chorar o leite derramado, a solução foi passar o ponto adiante e recuperar o posto no Bar do Beto, onde. aliás, foi muito bem acolhido de volta.
– Tenho uma dívida impagável com os gestores do Beto, diz ele, comovido.
Para o retorno ao doce lar, além da amizade, pesou o talento nato do garçom para angariar clientes.
– Ele se dá com muita gente. É bom de papo e tem a simpatia de todos, acentua Batista.
Disso ninguém duvida. Dinarte não precisa fazer esforço para conquistar a confiança e a amizade das pessoas. É um dom natural que aperfeiçoou ao longo da vida.
O ambiente da madrugada facilitou a aproximação entre o garçom e seus clientes.
– Eles falam de alegrias e dissabores, abrem o coração. Alguns até fazem confidências e pedem conselhos sobre assuntos pessoais, relata Dinarte, já com ar saudosista. Em seguida, acrescenta: – São pessoas educadas, de um nível intelectual diferenciado, elogia.
Essa intimidade também permitia que o garçom exercesse papel de cupido no salão. Na década de 1990, era moda no Bar do Beto o atendente intermediar o envio de bilhetes de paquera – os famosos “torpedos” – de uma mesa para outra.
– Fiz a ponte para que casais se conhecessem e passassem a namorar. Alguns tiveram filhos que, hoje, já adultos, também se tornaram meus clientes no bar. Nessas ocasiões, me dou conta de que estou ficando velho, comenta, rindo.
Numa só oportunidade, Dinarte deixou de ser mensageiro para virar protagonista do bombardeio de “torpedos”. Foi quando uma moça chamada Cláudia pisou pela primeira vez no Bar do Beto, junto com algumas amigas.
Foi amor à primeira vista. O garçom pediu ao colega André que entregasse um bilhete para Cláudia. Não demorou para que a cliente desse um jeito de ficar sozinha na mesa, solicitando às amigas que fossem até o banheiro.
Dinarte se aproximou com o coração aos pulos. Explicou que, caso ela não tivesse gostado de sua atitude intempestiva, por favor, não levasse a mal. O assunto estaria encerrado ali e ele voltaria a atendê-la como se nada tivesse acontecido.
– Quando ela respondeu que tinha adorado o bilhete, eu pensei: “Que golaço!”.
Para encurtar a história, estão casados há 20 anos – Cláudia Graça Valentini é dona do Espaço Mulher, centro de estética feminina na Cidade Baixa.
A drástica mudança profissional que está prestes a se concluir não aconteceu por mero acaso na vida de Dinarte. Na terra natal, ele havia estudado só até o 4º ano do ensino fundamental por causa da necessidade de trabalhar nas plantações.
– Sentia um vazio enorme por dentro por não ter completado os estudos, reconhece.
Para preencher a lacuna, formou-se na modalidade EJA (Educação de Jovens e Adultos) no Colégio Mauá no começo dos anos 2000.
Em 2004, passou no vestibular para o curso de Direito da UniRitter, em Canoas, com aulas à tarde para compatibilizar com os afazeres noturnos.
A formatura se deu em agosto de 2009. Hoje, advoga na área do Direito Civil com ênfase em processos que envolvem a legislação do trânsito.
Dinarte confessa que está saindo da cena boêmia com dois corações.
– Amo atender as pessoas nesse lugar. Ao mesmo tempo, sinto falta de estar em casa à noite com a esposa e as filhas {Caroline, de 25 anos, e Paola, de 22} ou passear com a família aos fins de semana. Quem trabalha à noite não tem vida social, argumenta.
Com o tempo livre, quer também viajar mais com a família, outra de suas predileções que ficaram suspensas nos últimos anos pelo acúmulo de atividades. Já está planejada uma viagem para Espanha e Portugal no início do próximo ano.
Com dois corações também estão os clientes com os quais ele conviveu ao longo de mais de duas décadas. Afinal, sentirão falta deste que foi um dos mais queridos e populares garçons de Porto Alegre. Nem por isso, deixarão de torcer pelo sucesso do amigo. Seja feliz, Dinarte!
(*) Marcello Campos é autor de Week-End no Rio sobre o Conjunto Melódico Norberto Baldauf, um dos mais populares conjuntos de bailes do RS, que marcou época nas décadas de 1950 e 1960. Escreveu também as biografias de dois amigos e parceiros de Lupicinio Rodrigues: o compositor Alcides Gonçalves (Minha Seresta) e o dublê de cantor e boxeador Orlando "Johnson" Silva (Johnson: O Boxeur-Cantor). Para completar, registrou a vida do próprio Lupicinio em O Almanaque do Lupi.