Eis que chega a Roda Viva
Há 14 anos, banda faz sucesso com um trabalho contínuo e consistente de celebração da obra de Chico Buarque em Porto Alegre
Quando Chico Buarque pisou o palco do Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre, para iniciar o espetáculo da turnê Caravanas, na sexta-feira, dia 17 de agosto, estava diante de um público que guarda na ponta da língua o repertório de um dos maiores compositores brasileiros.
Não bastasse a popularidade do artista com mais de meio século de carreira – desde a estreia, em Belo Horizonte, em dezembro do ano passado, Caravanas já foi assistido por mais de 130 mil pessoas no Brasil e em duas cidades de Portugal –, as canções de Chico Buarque vêm sendo continuamente revisitadas e reverenciadas no circuito de teatros, bares e cafés da capital gaúcha.
A banda Roda Viva, que desde 2004 produz um trabalho consistente de tributo à obra de Chico, sempre com casa cheia, é em grande parte responsável por isso. Nos espetáculos, os arranjos originais das gravações são preservados até o limite para que o público possa reconhecer de imediato cada uma das canções.
– As pessoas gostam de ouvir o repertório do Chico do jeito como elas o conheceram. Quando conseguimos copiar, ficamos felizes, mas nem sempre isso é possível. É preciso adaptar arranjos produzidos para grandes orquestras para o formato da banda, ressalta Felipe Bohrer, um dos sete integrantes da Roda Viva.
Além de clássicos bastante conhecidos do grande público, como Roda Viva, Construção e Meu Caro Amigo, o grupo não esquece das amostras do “lado B” de Chico, casos das composições assinadas com o pseudônimo de Julinho da Adelaide para fugir do assédio da censura:
– É inegável que algumas músicas geram maior repercussão e, por isso, têm presença garantida nos shows, mas nunca deixamos de tocar as menos conhecidas, ressalta Felipe.
Além de encantar e divertir a plateia com as letras e melodias buarqueanas, a Roda Viva também busca contextualizá-las com informações acerca da época em que as produções surgiram e, se for o caso, com quais parceiros e para qual finalidade (trilha de cinema ou teatro, por exemplo) foram compostas.
Esse trabalho de formação de um público atento e qualificado ganha mais espaço ainda nas apresentações temáticas, que destacam algumas das vertentes da obra de Chico Buarque.
Assim, determinados shows sublinham o universo feminino do autor, presente em Mulheres de Atenas, Folhetim e Teresinha, ao passo que outros enfatizam a face de folião expressa em Quando o Carnaval Chegar, Noite dos Mascarados e Sonho de Um Carnaval.
Um dos espetáculos temáticos de maior impacto é Apesar de Você, Chico e a Ditadura, que apresenta boa parte do repertório vetado pela censura do regime militar. Mais uma vez, a banda procura aqui agregar informações relevantes sobre a vida e a obra do compositor. que complementam o set list:
– A gente pesquisa para mostrar ao público as versões iniciais com as letras que foram censuradas, relata Felipe.
Como exemplo, dá para mencionar o verso Pede perdão pela omissão um tanto forçada, de Samba de Orly, de Chico, Toquinho e Vinicius de Moraes. O trecho censurado (aliás, escrito por Vinícius) fazia menção ao autoexílio de Chico na Itália no começo dos anos 1970 – em seu lugar, ficou registrado o verso Pede perdão pela duração dessa temporada na faixa gravada pela primeira vez no álbum Construção, em 1971.
A Roda Viva é formada basicamente pela junção de duas turmas de irmãos – de um lado, a família Luz representada por Zé Leandro (voz) e Juliano (contrabaixo e voz); de outra parte, o clã dos Bohrer, com Felipe (violão, flauta e voz), Fábio (violão, cavaquinho e voz) e Rafael (bateria).
Completam a atual formação dois amigos de longa data que, praticamente, já fazem parte das duas famílias: Jeferson Azevedo (percussão) e Vanderlei Fontanella, também conhecido como Maestro Nambu (sax e clarinete).
Juliano e Nambu são os únicos que vivem exclusivamente da música. O primeiro dando aulas para formar novos instrumentistas, enquanto Nambu atua como regente da Banda Municipal de Farroupilha, além de integrar o corpo de músicos da Banda Municipal de Porto Alegre.
Os demais desenvolvem carreiras profissionais paralelas, algumas delas bem distantes das notas musicais.
Zé Leandro, por exemplo, é engenheiro mecânico.
– A música é um contraponto importante na minha vida. É o que me dá mais alegria, diz o vocalista.
Felipe já não se afasta tanto da arte musical quando está fora dos palcos. Como pesquisador, se dedica ao estudo da história da música em Porto Alegre – além de escrever artigos sobre o tema, é autor da dissertação A Música na Cadência da História: Raça, Classe e Cultura em Porto Alegre no Pós-Abolição elaborada para o PPG em História da UFRGS, em 2014.
Quem juntou as famílias Luz e Bohrer foi Anelise, hoje casada com Zé Leandro.
No tempo em que estavam só namorando, a moça era colega de Felipe e Jéferson no colégio Bom Conselho, o que gerou a aproximação.
Os jovens passaram a se reunir com frequência para cantar e tocar juntos, na casa de um ou de outro. Acabou o colégio e os laços de amizade persistiram. Numa escapada até a praia de Retiro dos Padres, perto de Bombinhas (SC), Felipe pôs na mochila uma leva de vinis de Chico Buarque.
Os discos haviam sido doados pela mãe de um conhecido, que estava se desfazendo de tralhas que considerava dispensáveis em meio a uma reforma da casa.
– Sabe como é, discos de vinil ocupam muito espaço. E ela já tinha aquele material em CD, justifica Felipe. Em seguida, ele complementa: – Ficamos eu, o Zé Leandro e o Jeferson lá na praia escutando a obra do Chico, que nos impressionou muito.
Daí surgiu a ideia de fazer uma apresentação informal com aquelas canções, quase como uma brincadeira, na casa de Jeferson, para uma plateia de amigos.
– O início da banda foi literalmente caseiro, comenta Zé Landro.
A audiência formada por amigos adorou o show e incentivou os rapazes a mostrá-lo a um público maior.
A estreia de verdade, então, ocorreu no palco da Companhia de Arte, na subida da Rua da Praia, no Centro de Porto Alegre. Foi o pontapé inicial para um projeto bem-sucedido que, 14 anos depois, se amolda a diferentes ambientes e públicos com pequenas e suaves alterações.
– Nos bares noturnos, a plateia é, naturalmente, mais festiva, então, procuramos ali tocar os números mais dançantes, mas nunca deixamos de lado os sambas mais lentos, afiança Zé Leandro.
Até agora, a Roda Viva não lançou nenhum registro do trabalho em áudio ou vídeo como produto no mercado. Em 2014, foram gravadas imagens do show no Bar Opinião em comemoração aos dez anos da banda, que não chegaram a ser editadas para que pudessem ser disponibilizadas para o público.
– Talvez o aniversário de 15 anos, em 2019, seja uma boa ocasião para lançarmos algo neste sentido, adianta Felipe.
Antes disso, é possível conferir algumas exibições da Roda Viva no canal da banda no YouTube, como esta realizada em 2012, no Bar Ocidente.
Melhor ainda é acompanhar a agenda de shows concentrada, nas próximas semanas, em bares da Cidade Baixa – Boteco Matita Perê (16 de agosto), Espaço Cultural 512 (6 de setembro) e Bate (14 de setembro).
Uma apresentação especial será feita na programação de comemoração dos 51 anos do Teatro de Arena, no dia 17 de outubro.
Em função da data, que reverencia um dos espaços mais importantes de resistência cultural de Porto Alegre, é provável que, neste show, excepcionalmente, a Roda Viva não se limite ao repertório de Chico Buarque.
– Ainda não está definido, mas é provável que a gente cante também músicas de Milton Nascimento e Caetano Veloso, entre outros compositores, antecipa Felipe.
Mais para o fim do ano, nos dias 4 e 5 de dezembro, a Roda Viva voltará ao palco do Arena com o espetáculo Apesar de Você, Chico e a Ditadura.
Até hoje, criador e criatura nunca se encontraram pessoalmente. Zé Leandro não sabe ainda se vai assistir ao show de Chico Buarque no Araújo Vianna.
– A gente toca há quase 15 anos as músicas dele porque gosta. Nunca procuramos fazer contato. Seria um prazer, é lógico, mas não rolou, diz o vocalista, com ar de encabulado.
Felipe, que talvez nem esteja em Porto Alegre neste fim de semana, acredita que o ideal seria ter a oportunidade de apresentar ao ídolo o trabalho de pesquisa que a banda produz com cuidado e esmero:
– Tocar à noite é divertido e prazeroso, mas é um trabalho menos significativo para a obra do Chico. Se fosse o caso, me sentiria mais à vontade de mostrar os espetáculos temáticos, que envolvem um conteúdo mais elaborado e de maior qualidade, conclui ele.